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L&PM, 2011, a mais recente edição. |
Noir francês
A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.
sábado, 28 de dezembro de 2013
O NATAL DE POIROT
domingo, 27 de outubro de 2013
FOGO NA CARNE, DAVID GOODIS
O número 655 da Série Policial, da saudosa editora Tecnoprint Gráfica S. A., é Fogo na carne (Fire in the flesh). E confirma o que dissemos em postagem anterior: David Goodis vem sendo publicado no Brasil desde pelo menos os anos 1960, talvez meados do anos 1950. A dificuldade de encontrar estes livros está em que as edições eram de bolso, populares, em papel ordinário, à venda em rodoviárias, estações de trem, de bonde e aeroportos, bem como nas lojas da própria editora. No Rio de Janeiro, a principal loja da Tecnoprint ficava na Cinelândia, próxima à Perfumaria Carneiro. Em São Paulo, na Rua Conselheiro Crispiniano, 403, em frente ao Cinema Marrocos. Em Salvador, na esquina da Av. Sete de Setembro com a Rua Politeama de Cima. Havia ainda lojas em Belo Horizonte, Porto Alegre e Juiz de Fora, entre outras cidades. Hoje, não existem mais, a Tecnoprint transformou-se em Ediouro Publicações, que, nos últimos anos, abandonou as edições de bolso, tornou-se uma editora comum, igual a qualquer outra, sem nenhum diferencial, engolindo outras casas tradicionais, como a Nova Fronteira e a Agir. Nesta edição de Goodis, não há nenhuma menção a ano de publicação, nem aqui nem nos EUA. A editora, no entanto, esclarece que "Este romance é inteiramente novo, não tendo sido publicado ainda em português, sob nenhuma forma". E na capa esta a sinopse, breve, misteriosa, com a intenção de fisgar o leitor passageiro, em trânsito: "No turbilhão das chamas, ele buscava alguma coisa que não conseguia encontrar". Algumas horas ou minutos de leitura dentro do bonde, ônibus, trem ou avião, com David Goodis e seu Fogo na carne, que começa assim: "No beco calçado de paralelepípedos, e cheio de buracos, a moça tropeçava, ao correr, com a cabeça baixa, para enfrentar o frio cortante. Era fevereiro, em Filadélfia, a altas horas da noite, e o mercúrio descera quase a zero. A moça, porém, não estava preocupada com as condições meteorológicas; estava atenta a um som que vinha de longe. E, como o som se aproximasse, ela aumentou a rapidez da corrida. Era o som de sirenas". Uma abertura bem característica do estilo do autor: alguém em apuros, na noite, sob o frio intenso, a ameaça ao longe. Estamos fisgados. A tradução é de David Jardim Júnior.
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
DUAS VEZES CAIN
Uma edição que constitui um dos mais felizes acertos de um
editor de literatura policial no Brasil. Em 1984, na Série Mistério e Suspense, a Abril Cultural reuniu, nada mais nada
menos, que os dois mais célebres e controversos romances do norte-americano
James M. Cain (1892-1977): O destino bate
à sua porta (The postman always rings twice, 1934) e Dupla indenização (Double indemnity, 1936). O curioso é que o
primeiro ― também o primeiro livro de Cain ― comemorava cinquenta anos de
publicado. Não há, porém, nesta edição, nenhuma referência ao cinquentenário.
Ambos narram histórias de assassinatos
premeditados, e ambos reúnem esposas que, friamente, auxiliadas por seus
amantes, se livram de seus maridos. O palco do primeiro é uma lanchonete de
beira de estrada, enquanto, no segundo, é um trem em movimento, embora o crime
tenha sido elaborado, com bastante antecedência, numa mansão de Hollywood,
Califórnia. Em ambos tira-se proveito monetário da morte alheia, e em ambos o
leitor se identifica com os assassinos, torce para que sejam bem sucedidos em
sua empresa, não demonstrando a mínima consideração pelos que morrem e pouco se
importando se os culpados serão punidos ou não. Tal inversão, ou perversão, de
valores impôs às duas obras um destino a um só tempo duradouro e obsceno, pois
são até hoje consideradas excessivamente pesadas e sem similares que se lhes
equiparem, tampouco que as superem.
O racionalismo na preparação dos
crimes e a frieza de sua execução ainda são capazes de chocar, mesmo que
romances mais atuais e filmes bem mais apelativos no gênero invistam, ano após
ano, em entrechos semelhantes. Talvez o estilo de Cain, cru e meio cínico,
colabore em acentuar a brutalidade das duas histórias, autênticos estudos de
comportamento dos indivíduos da moderna sociedade americana, presas fáceis do irrefreável
desejo de enriquecer e conseguir, a todo custo, um lugar ao sol na tão badalada
american way of life.
As traduções, ainda fluentes e fieis
ao estilo do autor, são, respectivamente, de Evelyn Kay Massaro e Aldo Bocchini
Neto. E a capa reproduz imagens do filme O
destino bate à sua porta, de Bob Rafelson, com Jessica Lange e Jack
Nicholson nos papeis dos amantes assassinos; simplesmente a quarta adaptação
cinematográfica do livro, em quase oito décadas de ininterruptas edições. Ano
que vem, aos 80 anos, o carteiro voltará a bater? Talvez.
Publicado originalmente na Verbo 21.
terça-feira, 27 de agosto de 2013
MAIGRET E A JOVEM MORTA
Publicado em 1954, Maigret et la jeune morte promove uma inesperada
disputa entre o comissário Maigret e Lognon, o inspetor dito Mal-Ajambrado, que
tem complexo de inferioridade e vive com mania de perseguição. Ao mesmo tempo
que durante a investigação auxilia o comissário, Lognon tenta superá-lo e,
desse modo, ser reconhecido como um excelente detetive, sem saber que na
opinião de Maigret já o é. O pretexto para essa emulação é a história da jovem
Louise Lamboine, que foge de casa em Nice e vai para Paris, onde, depois de
passar por muitas privações, é assassinada na solidão de uma noite. Quem era
Louise Lamboine? Por que foi morta? Quem a matou? E por quê? O fim da competição entre os dois
policiais é marcado por uma sutil ironia: a mesma pista que despacha Lognon
para Bruxelas, atrás de um viajante improvável, permite a Maigret resolver o
mistério ali mesmo, em Paris. O comissário, contudo, não se vangloria, pois
Lognon não cometera nenhum erro: “não há curso de polícia que ensine a
colocar-se na pele de uma jovem educada em Nice por uma mãe semilouca”. Mais
que uma investigação policial, este romance apresenta um interessante estudo
sobre a inadaptação ao mundo, o abandono e a dor de estar vivo.
Publicado originalmente na Verbo 21.
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
A PRIMEIRA INVESTIGAÇÃO DE MAIGRET
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Nova Fronteira, 1983. |
Publicado originalmente na Verbo 21.
terça-feira, 30 de julho de 2013
MEMÓRIAS DE MAIGRET
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L&PM, 2006. |
Neste relato, publicado em 1951, Simenon inova
e se renova. Deslocando a narrativa da terceira pessoa onisciente e fria para a
primeira, emotiva e confessional, o autor promove o acerto de contas do
personagem Maigret com o seu criador, Simenon. Na ficção imaginada pelo autor,
Maigret decide escrever suas memórias e começa exatamente pelo dia em que ele e
Simenon se conheceram, no Quai des Orfèvres. A construção da pessoa Maigret por
ele próprio, personagem, coincide com a desconstrução do autor, Simenon,
rebaixado à condição de aproveitador e mentiroso. Como acontece a muitos
leitores, Maigret se esquece de que, ao ser transformado em personagem, ele se
tornou outra pessoa, um ser ficcional; que apenas serviu como matriz de outra
vida, que não é mais a sua, e de outro ser, seu duplo, seu outro-mesmo. É só
por isso, esse detalhe trivial, que a empreitada de Maigret fracassa. Mas não a
de Simenon, que escreve um dos livros mais originais da primeira metade do
século XX, e sobretudo no caso de personagem em série e de um gênero ― o
policial ― que prima pela repetição, pela convergência a fórmulas e pelo
cumprimento rígido de suas regras internas. O desfecho, irônico, envolve a Sra.
Maigret, que preenche com seus bilhetinhos providenciais as lacunas de memória
do marido, meio embaraçado com sua empreitada literária.
Publicado originalmente na Verbo 21.
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segunda-feira, 29 de julho de 2013
AS FÉRIAS DE MAIGRET
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L&PM, 2004. |
O
comissário Jules Maigret, gozando férias em Sables-d'Olonne com a esposa, vê sua
rotina mudar radicalmente quando a Sra. Maigret é hospitalizada às pressas para
uma cirurgia. Este evento fortuito altera o cotidiano ocioso de Maigret, que,
mesmo desinteressado dos acontecimentos que o enredam e insatisfeito com o rumo
de sua diletante investigação, vai solucionar mais um mistério e agarrar mais
um criminoso. Neste romance, publicado em 1948, e que é um dos melhores da
série, Simenon reflete sobre as consequências do ciúme amoroso na vida de um
homem, bem como sobre o aprisionamento a que o excesso de beleza pode conduzir
uma mulher. Uma das melhores personagens do livro ― e em torno da qual toda a
trama se constrói ― ironicamente não aparece nem para Maigret nem para o
leitor. Quando afinal se obtém a chave que dá acesso aos seus aposentos
íntimos, “onde se ouvia a respiração regular de uma mulher adormecida", o romance termina. Tal
característica faz deste relato um dos mais simbólicos e subjetivos já escritos
por Simenon.
Publicado originalmente na Verbo 21.
quarta-feira, 24 de julho de 2013
O ALVO MÓVEL
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L&PM, 2007. |
Com este romance, publicado em 1949, Ross Macdonald, considerado por muitos o autor que refinou o material deixado por Dashiell Hammett e Raymond Chandler, inaugurou a saga de Lew Archer, "um novo tipo de detetive", como ele próprio se define. O enredo é simples e foi por demais imitado, tanto por Macdonald quanto por seus epígonos. Lew Archer é contratado por uma ricaça para investigar o paradeiro de seu marido, que fugiu ou foi sequestrado. Tal empresa coloca Archer em contato com uma linda adolescente mimada, seu pretendente atlético, um advogado apaixonado, uma atriz decadente, um guru idiota e uma súcia de malfeitores, dispostos a qualquer ação para ganhar alguns milhares de dólares. O estilo de Macdonald é seco, direto, como Hammett, mas inclinado a reflexões, muitas vezes poéticas, à maneira de Chandler: "O dinheiro é a energia vital desta cidade. Se você não tem, só está meio vivo". Do primeiro, absorveu ainda a tendência a criar personagens ambíguos, pendentes entre o bem e o mal, a verdade e a mentira; do segundo, certa propensão à melancolia e à piedade. Outra das características marcantes dos romances e contos de Ross Macdonald é a movimentação constante. Archer jamais para, está sempre em movimento, ou de carro, o que é mais comum, ou a pé. O autor parece indicar com isso que, de uma vez por todas, os detetives abandonaram a dedução em favor da observação in situ. É no calor dos fatos que o mistério se esclarece. Além disso, um destino específico é reservado às mulheres, que deixam de ser meros coadjuvantes, objetos de prazer ou motores de desejos fatais e interferem diretamente na trama, ou com ações e reações ou através de falas que enriquecem a narrativa ou a desviam do curso comum: "Gostaria de não ter dinheiro nem sexo. Para mim os dois dão mais problemas do que valem", dispara uma das mulheres de O alvo móvel, que inspirou o filme Harper (1966), com Paul Newman interpretando o detetive. Para os leitores que apreciam começar do princípio, este é o livro de entrada para o universo das investigações nada ortodoxas de Lew Archer.
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domingo, 7 de julho de 2013
A CASA DO PENHASCO
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L&PM, 2011. |
Hercule Poirot, já aposentado, passa os dias ensolarados de verão no litoral da Cornualha. Hastings, de volta de uma longa temporada na América do Sul, encontra-se ao seu lado e o auxilia a resolver o enigma do assassinato de uma jovem, prima da proprietária da Casa do Penhasco. Supostamente, a moça foi morta em lugar da prima, que vinha sofrendo atentados, um dos quais na presença de Poirot. Em trama bem urdida, e cheia de surpresas, Agatha Christie consegue, com A casa do penhasco (Peril at end house), publicado em 1932, deter a atenção dos leitores e, ao mesmo tempo, desafiar a sua perspicácia. Numa situação em que todos os envolvidos são potencialmente suspeitos, apontar o criminoso é tão difícil para o leitor quanto para Poirot, que, em alguns momentos, sente-se impotente e ludibriado, a ponto de proferir o seguinte desabafo metalinguístico: "Por que ninguém nunca tem certeza de nada? Nos livros de detetives, tudo é líquido e certo, claro. Mas a vida real é uma eterna confusão. Será que eu mesmo tenho certeza de alguma coisa? Não, não, mil vezes não!" Sem chegar a ser um dos romances mais celebrados da autora, A casa do penhasco proporciona, sobretudo aos leitores aficionados pelo gênero, algumas horas de autêntico prazer.
domingo, 30 de junho de 2013
OS CRIMES ABC
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L&PM, 2010. |
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segunda-feira, 10 de junho de 2013
NOITE SEM FIM
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Capa: Victor Burton. |
terça-feira, 4 de junho de 2013
UM ASSASSINO ENTRE NÓS
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L&PM, 2007. |
terça-feira, 28 de maio de 2013
MAIGRET E O MAIO CORAL
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Porto Alegre: L&PM, 2004. |
"Era um glorioso mês de maio, desses que a gente vê apenas duas ou três vezes na vida e que têm o esplendor, o sabor e o perfume de lembranças da infância. Maigret chamou-lhe um maio 'coral'. Lembrava-lhe, ao mesmo tempo, sua primeira comunhão e sua primeira primavera em Paris, quando tudo parecia novo e maravilhoso.
"Na rua, no ônibus, no escritório, acontecia-lhe parar de repente, tocado por um som distante, um sopro de ar tépido, a cor viva de uma blusa de mulher que o levavam de volta à magia perdida de vinte ou trinta anos atrás.
"Ainda na véspera, ao saírem para jantar com os Pardon, a sra. Maigret lhe perguntara, enrubescendo, confusa: Não fico ridícula, na minha idade, com um vestido assim, estampado de flores?
"Nessa noite, os Pardon inovaram. Ao invés de convidá-los ao apartamento, levaram os Maigret a um pequeno restaurante do Boulevard de Montparnasse, onde os quatro jantaram no terraço.
"Os Maigret trocaram olhares cúmplices. Pois ali, naquele mesmo terraço, os dois tinham jantado pela primeira vez, há quase trinta anos."
Poucos romances policiais se abrem com tanta vida e tanta informação aparentemente sem importância. Poucos também exalam tamanha poesia e apresentam tanto, em tão poucas linhas, sobre os personagens e o ambiente que os cerca.
Temos a representação da primavera em Paris, o fascínio que esta estação promove em Maigret; o caráter sagrado, simbolizado pela lembrança da primeira comunhão e da infância, e o profano, pela recordação da primeira primavera em Paris... Penetramos os sentidos de Maigret, que vê tudo de outra forma e inclinado às cores, percebe os odores e ouve os sons mais cotidianos com uma percepção nova. E, por fim, adentramos a intimidade do casal, suas relações sociais, seu amor de muitos anos e suas lembranças de quando jovens.
A história policial ainda não começou, mas já começou, pois um crime vai acontecer e macular a beleza daquele maio, que o comissário Maigret chamou, poeticamente, um maio coral.
Também publicado na revista Verbo 21. A tradução do texto de Simenon é de Raul de Sá Barbosa.
"Nessa noite, os Pardon inovaram. Ao invés de convidá-los ao apartamento, levaram os Maigret a um pequeno restaurante do Boulevard de Montparnasse, onde os quatro jantaram no terraço.
"Os Maigret trocaram olhares cúmplices. Pois ali, naquele mesmo terraço, os dois tinham jantado pela primeira vez, há quase trinta anos."
Poucos romances policiais se abrem com tanta vida e tanta informação aparentemente sem importância. Poucos também exalam tamanha poesia e apresentam tanto, em tão poucas linhas, sobre os personagens e o ambiente que os cerca.
Temos a representação da primavera em Paris, o fascínio que esta estação promove em Maigret; o caráter sagrado, simbolizado pela lembrança da primeira comunhão e da infância, e o profano, pela recordação da primeira primavera em Paris... Penetramos os sentidos de Maigret, que vê tudo de outra forma e inclinado às cores, percebe os odores e ouve os sons mais cotidianos com uma percepção nova. E, por fim, adentramos a intimidade do casal, suas relações sociais, seu amor de muitos anos e suas lembranças de quando jovens.
A história policial ainda não começou, mas já começou, pois um crime vai acontecer e macular a beleza daquele maio, que o comissário Maigret chamou, poeticamente, um maio coral.
Também publicado na revista Verbo 21. A tradução do texto de Simenon é de Raul de Sá Barbosa.
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domingo, 26 de maio de 2013
A COLEÇÃO VERTIGO CRIME
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Capa: Lee Bermejo. New Pop, 2012. |
Vejamos agora um resumo de cada um dos gibis. Calafrio é uma história de assassinato em série, mas com uma deliberada incursão pelo fantástico. A arte de Mick Bertilorenzi é um primor e desenvolve com arrojo o estranho mundo apresentado pelo roteiro de Jason Starr. É, de todas, a trama mais sensual, com imagens de um erotismo franco e sem pudor. A cidade da neblina, talvez a mais noire das seis histórias, pela reprodução dos aspectos que consagraram tal gênero, envereda, no entanto, por questões mais contemporâneas, como homossexualidade e tráfico de imigrantes. O roteiro, de Andersen Gabrych, parece às vezes meio confuso e forçado, defeitos compensados pela arte de traços caricatos, muito embora convencionais, de Brad Rader. Morte no Bronx é a história de um escritor atormentado pelo desaparecimento de sua esposa, com roteiro instigante e fluido de Peter Milligan, e arte sedutora de James Romberger. A rica indecente reelabora um dos assuntos recorrentes da narrativa policial, com roteiro assinado pelo aclamado Brian Azzarello: empresário rico designa empregado para vigiar e proteger sua filha, uma jovem tão bela quão perigosa. A arte, de Victor Santos, é burlesca, alternando humor e drama, claro e escuro. Área 10 é mais uma trama de serial killer, mas introduz temas oriundos da psicologia e da medicina experimental, enriquecendo-se e ao leitor. A arte de Chris Samnee é a menos empolgante das seis, limitando-se à eficiente exposição visual do roteiro de Christos N. Gage. Em O executor, o roteiro (Jon Evans) e a arte (Andrea Mutti) pecam por não seduzir o leitor. O primeiro soa inconvincente, e a segunda, funcional demais, destituída de qualquer audácia. A trama, meio débil, devolve um ex-atleta à sua cidade natal, onde ele reencontra seus antigos colegas de escola, todos de alguma forma envolvidos nos crimes que, nos últimos anos, abalaram a região.
O projeto gráfico é bonito, a impressão em papel branco de 90g é perfeita, e os volumes, no formato 14x20cm, são fáceis de manusear e guardar, como livros. As capas, contudo, assinadas por Lee Bermejo, são horrendas, sem qualquer atração, nem em traço nem em cor, exceção talvez a de A rica indecente e a de Calafrio. Em todos os volumes, há erros aqui e ali, alguns bem graves, como a troca dos autores por outros na quarta capa de Área 10. E o português, de responsabilidade de Ana Luísa Casas! É cada frase mal feita, cada construção bizarra, mesmo quando a intenção é ser coloquial, que passa pela cabeça do leitor sugerir que a mocinha seja devolvida, com urgência, ao curso primário. Faltou um bom revisor à editora, que, infelizmente, confiou demais na competência da tradutora.
Recomenda-se a leitura sobretudo de Morte no Bronx e Calafrio. O primeiro capítulo deste último, aliás, tem uma das mais bonitas aberturas dos quadrinhos atuais. Da página 5 à 20, o leitor vibra, se excita e se comove, sem saber que está diante de uma história a um só tempo sensualíssima e imponderável.
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terça-feira, 21 de maio de 2013
INSTINTO SECRETO OU MR. BROOKS NO CÉU
O fascínio dos leitores ou espectadores por Dexter e Ripley, para citar apenas dois dos mais célebres heróis-assassinos, advém do fato de que todas as pessoas alimentam a fantasia de guardar, sob muitas capas e máscaras, um segredo terrível, que chocasse a família, os amigos, o mundo. Ou seja, através destes personagens damos vazão aos nossos desejos secretos e nos expurgamos para uma vida mais limpa entre os mortais. Nesta linha, um filme surpreendente é Mr. Brooks (2007), que recebeu no Brasil o manjado título Instinto secreto.
O Sr. Brooks é rico, bem-sucedido, bem-apessoado, bom marido, bom pai e bom patrão. Jamais perde a paciência ou sai da linha. É um negociador nato. Sabe quando falar e o que falar, sem que ninguém saia ferido do diálogo. Tem, portanto, uma ficha incorrigível. E, talvez por isso, necessitasse de um segredo, um vida dupla: ele mata por vício, em busca de prazer, como qualquer outro jogador. Estuda as vítimas, sempre pessoas desconhecidas, fora do seu cículo pessoal ou profissional, pessoas quase achadas ao acaso, e numa noite previamente marcada invade suas casas e as mata, num ritual bárbaro mas viciante, pois lhe confere enorme satisfação, a ponto de levá-lo quase ao orgasmo. De repente, por força das circunstâncias, e por ironia da trama, obviamente, ele passa a matar por necessidade, o que demonstra que ele não era assim tão autossuficiente. É como se um ser maior, pai espiritual do Sr. Brooks, decidisse intervir para lhe interpor uma parede entre sua condição de ser humano e a possibilidade divina, com a qual todo homem muito poderoso acaba por flertar, mais cedo ou mais tarde, para tão somente sentir o peso e tombar.
A narrativa costura habilmente cinco destinos, todos manipulados com cruel maestria pelo Sr. Brooks, mas que serão, afinal, o seu calcanhar de Aquiles: sua filha Jane; o Sr. Smith, o bobalhão da história; a detetive Tracy Atwood, encarregada de investigar os Crimes das Digitais; seu ex-marido, do qual está se divorciando com visíveis perdas financeiras; e o bandido que ela mandou para a prisão e que agora, depois de fugir, pretende matá-la. Ao fim, o Sr. Brooks, mais do que nunca, atinge o patamar de demiurgo, a conduzir os cordões de suas marionetes e ler nos jornais as consequências benéficas de seus feitos. Contudo, na cama, ele não é mais o mesmo. Sonha, e seus sonhos são ruins. Não seria demais cogitar que ele agora sofre, de fato, porque sente culpa. Porque o que era vício, um jogo apenas, tornou-se necessidade, paixão, e ele foi obrigado, a sangue e segredo, e com alguma empáfia, a esculpir destinos, entre os quais o seu e o de sua filha. Talvez, ao atingir esta condição, mais próxima de Deus, o Sr. Brooks tenha enfim compreendido sua fraqueza de homem e chegado, por ele mesmo, à cura do seu vício.
Com fotografia noire, ritmo ágil, mas sem exageros, cenas de ação com pretensões estéticas, roteiro irônico, boa direção (de Bruce A. Evans) e performances satisfatórias de todos os atores, Mr. Brooks é um espécime do gênero policial que, passado algum tempo, voltamos a assistir por e com deleite, já sabedores do desfecho e buscando, no curso dos acontecimentos, a coerência de suas afirmações, por mais perversas que sejam.
segunda-feira, 13 de maio de 2013
CLÁSSICOS SCI-FI | AS POSSUÍDAS
As possuídas,
de Ira Levin (São Paulo: Círculo do Livro, 1987; há uma edição mais recente, de
2004, pela Bertrand Brasil, com o título Mulheres perfeitas, que,
infelizmente, entrega muito da história), constitui uma ousada metáfora do
automatismo das relações, sobretudo entre os cônjuges. Ao ironizar a excessiva
dedicação das mulheres ao lar e a expectativa masculina de dominação das
esposas, insere-se na linhagem de obras destinadas a levantar as feministas e
fazer pensar os machões. Mas sem panfleto, com a elegância que só os grandes
clássicos alcançam. O estilo do autor é uma atração à parte: contido e
envolvente, límpido e irônico, semeia pela narrativa (não raro, através da fala
de um homem) provocações como esta, "Gosto de ver as mulheres no desempenho de pequenas
tarefas domésticas", afirmação que representa, de uma feita, um elogio
sensual e um indisfarçável desejo de condenação. Inspirou dois filmes. Destaque
para Esposas em conflito, de 1975, dirigido por Bryan Forbes, tão
controverso e cultuado quanto o livro.
Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da Verbo 21.
segunda-feira, 6 de maio de 2013
JAMILE SOB OS CEDROS
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"Pertenço sempre a Omar." (Jamile) |
Jamile, seu noivo Khalil Khoury e, de repente, durante um passeio de verão, Omar. Os olhos de Jamille e Omar se encontram e, num tempo único, deles próprios, e que talvez seja a eternidade, mesclam-se, numa união que vai mudar suas vidas e, consequentemente, a do noivo preterido, narrador da história. Este é o argumento de Jamile sob os cedros, uma história supostamente verídica passada no Líbano do século XIX e que inspirou o escritor francês Henry Bordeaux (1870-1963) a escrever um de seus melhores romances. Embora seja uma história de amor, em que os amantes, arrebatados, tudo fazem para ficar juntos, é igualmente um relato policial, pois envolve perseguição, prisão, julgamento, condenação e execução. Semelhantes a Romeu e Julieta, cujas famílias eram inimigas, Jamile e Omar estão separados pela fé, pela raça e pelas tradições que estas duas condições impõem. Ele é muçulmano, e ela, maronita. No período da narrativa, segunda metade de século XIX, os maronitas formavam uma comunidade árabe cristã ligada à Igreja Católica desde o século XII, regida por uma patriarcado autônomo, com sede no Líbano. Neste contexto, os enamorados não poderiam se amar, muito menos casar. Mas ela foge com ele, e seu ato, de amor, deflagra um abalo que vai atingir a todos os envolvidos. Uma punição é preparada pela família da moça e tem que ser imposta, mais cedo ou mais tarde, a qualquer preço. Esta é a história que lemos, numa velocidade de filme de ação, o que demonstra a modernidade de seu autor, bem como a qualidade da boa tradução de Mansour Challita, embora as falhas que o texto apresenta, aqui e ali. Aliás, esta edição, da Associação Cultural Internacional Gibran, merece uma postagem à parte, tanto pelos acertos quanto pelos equívocos. Leitura obrigatória para quem gosta de livros que abordam culturas divergentes da ocidental, quase sempre tomada como regra.
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quarta-feira, 1 de maio de 2013
QUATRO MULHERES E MAIGRET
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Porto Alegre: L&PM, 2009. |
1) Maigret tenta evitar um assassinato que se anuncia no seio de uma família burguesa; 2) Maigret investiga o atentado a um policial fracassado, que está internado em estado grave; 3) um homem procura Maigret num sábado e lhe confessa que pretende matar a esposa infiel e seu amante; 4) Maigret investiga a morte de um jogador profissional, frequentador dos grandes cassinos da Europa; 5) embora aposentado, Maigret decide investigar o assassinato de um bandido, pois o suspeito do crime é seu sobrinho, lotado no Quai des Orfèvres; 6) Maigret investiga a morte de um jovem estudante de Letras, que tinha o hábito de gravar as conversas alheias em público; 7) suspenso de suas atribuições, sob acusação de ter molestado sexualmente a sobrinha de um ministro, Maigret perpetra uma investigação pessoal para se defender; 8) um mendigo sofre tentativa de assassinato, e o fato desperta em Maigret a desconfiança de que a vítima detém o segredo de algum crime antigo; 9) um casal procura Maigret para lavar a roupa suja matrimonial e desperta no comissário a certeza de que um crime está por acontecer; 10) numa Paris vazia, pois boa parte da população goza as férias de verão, uma pista leva Maigret à Taberna dos Dois Tostões, onde um crime deverá acontecer.
De maneira geral, os dez livros são de alto nível. Simenon era um virtuose. Dominava sua arte e não abandonava suas escolhas pessoais. Dificilmente escrevia um romance ou um conto que não estivessem acima da média geral. E, mesmo quando se limitava a escrever uma história policial, era diferenciado, porque não hesitava em criar situações reais, com atmosferas convincentes e personagens que pareciam saltar da vida comum para a dimensão das páginas. E seus climas, suas reflexões, os mergulhos psicológicos cheios de nuances e ambiguidades... a ironia, o sarcasmo, o humor... a pintura colorida de cenários vivos, bares, hoteis, ruas, praças, repartições públicas, os lares onde os dramas ocorrem com frequência e que, às vezes, conduzem ao crime, tudo isso colabora para fazer de seus livros documentos humanos que não resistimos bisbilhotar. Dos dez livros, somente um não me empolgou: A taberna dos dois tostões. Os demais são extraordinários, exatamente porque Simenon não admite escrever uma história ao acaso, sem um argumento preciso e que, de imediato, conquiste e impacte o leitor. Neste sentido, Maigret hesita, Maigret e o cliente do sábado, Maigret e a morte do jogador, Maigret se defende e Os escrúpulos de Maigret são os destaques, por causa dos argumentos de exceção que apresentam e por cunhar personagens femininas que, de simples coadjuvantes, se tornam protagonistas; incômodas, diga-se de passagem. Elas exasperam tanto o comissário com sua eloquência, seu silêncio e suas idiossincrasias, que, ao fim, em Os escrúpulos de Maigret, ele perde as estribeiras e, por pouco, não vocifera: "Que ela se f..." Quatro destas mulheres letais, e que se contrapõem à esposa que Maigret tem em casa, sempre pronta a recebê-lo com a melhor das intenções e o melhor prato, são Srta. Vague, Renée Planchon, Evelina Nahour e Gisele Marton. Uma secretária e três esposas, todas amantes. Que o leitor, ao ler, descubra e entenda os motivos. Não são poucos e não são banais.
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domingo, 28 de abril de 2013
A NOVA TERRA
Uma nova Terra. Artificial, programada e que visa a se
tornar antípoda da atual. São convidadas a integrá-la somente pessoas que
possuam um mínimo de vínculo com seu planeta, de modo que laços não se partam,
e sentimentos conflitantes não aflorem e atrapalhem a fundação daquela nova
humanidade. É neste contexto que Clarisse é escolhida e acolhida, até que fica
grávida e, nesta condição, mais sensível a tudo, torna-se uma voz dissonante. A
vida perfeita que os líderes da nova Terra prometem tem seu preço, como tudo, e
Clarisse pouco a pouco o compreende. Escrito por Walmir Ayala (1933-1991), que
praticava com êxito muitos gêneros, este breve romance de ficção científica é
uma surpresa, tanto pelo entrecho quanto pelas reflexões que apresenta. Se
escrito em inglês ou francês, seria um livro cultuado, já com muitas edições e talvez até arrebatasse algum prêmio importante. Mas, sendo o idioma o português e o país o
Brasil, ao que parece teve só esta edição (Belo Horizonte: Leitura, 2012) e
muito mal cuidada. Os defeitos são inúmeros, desde negligência técnica ― ficha catalográfica centralizada, ausência da
falsa folha de rosto, papel e capa grossos demais e opção por fonte sem serifa,
o que dificulta a leitura ― até
erros grosseiros de revisão. Sem contar o fato de que o leitor não sabe se é
uma obra póstuma ou uma nova edição. Que o leitor releve, no entanto, estes
percalços do editor Sebástian Justo e desfrute o que o livro tem de melhor: seu
ótimo texto literário.
Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da Verbo 21, em abril.
sábado, 27 de abril de 2013
TORMENTA
O escritor inglês Conn Iggulden é mais conhecido pelos
seus romances históricos, especialmente Os
portões de Roma, best-seller
internacional. Em 2006 escreveu e publicou, por encomenda, em comemoração ao
Dia Internacional do Livro, a noveleta Tormenta
(Rio de Janeiro: Best Bolso, 2012). Classificada erroneamente como thriller ― gênero mais afeito ao cinema
―, constitui um relato policial de ação, envolvendo rivalidade entre irmãos e
traição conjugal. É particularmente bem elaborada a forma como o narrador põe
em choque o meio familiar, apático, protagonizado por David, e o mundo
exterior, hostil, cujo representante, Denis Tanter, é tão forte e agressivo quanto
o gigante bíblico Golias. Deste embate, surge a oportunidade de David se
superar como indivíduo ou desmoronar definitivamente, ele, que desde a infância
sofre com as ofensas e provocações alheias. Para que este breve relato
compusesse um livro com 144 páginas, o editor optou por uma fonte enorme, para
míopes, e usou um papel fino demais, quase transparente. Nem oito, nem oitenta.
Com uma fonte menor e papel mais espesso, ficaria uma edição mais oportuna e
vistosa, com mais ou menos cem páginas. Relevando-se tudo isso, porém, Tormenta é puro entretenimento, para se ler
no ônibus, no trem, na fila do banco ou dentro de um café, diante de uma
fumegante xícara de cappuccino ―, se a humanidade em volta permitir.
Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da Verbo 21, em abril de 2013.
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quinta-feira, 21 de março de 2013
O CAIR DA NOITE
Publicado originalmente em Crítica Rasteira, da revista Verbo 21, em fevereiro de 2013.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
NOSSO HOMEM EM HAVANA
O
serviço de espionagem britânico, com o propósito de marcar presença na Havana
pré-Fidel, recruta como espião um pacato cidadão inglês, o Sr. Wormold,
proprietário na capital cubana de uma loja de aspiradores de pó. Ele não
entende nada de espionagem, mal conhece o assunto, mas, por amor à filha de 16
anos, a quem, com o dinheiro da espionagem, poderá oferecer uma vida melhor,
redige falsos relatórios e frauda evidências da presença dos soviéticos em
Cuba. Paranoicos, como, aliás, todo o Ocidente na época, os ingleses acreditam
em tudo que o Sr. Wormold lhes envia. Sua audácia suprema se dá quando, sem
nada a oferecer aos seus patrões, ele desmonta um aspirador de pó, desenha suas
peças internas, uma a uma, e depois lhes envia “sua arte”, alegando que eram
aqueles os estranhos objetos que ele vira em determinado lugar da Ilha. O
entendimento é que certamente eram russos e, muito provavelmente, grandes peças
de um artefato atômico. Diz o ditado que, se quiser satisfazer a alguém, ofereça-lhe
o que ele deseja ver. Irônico e bem humorado, Nosso homem em Havana (L&PM,
2007) é um dos melhores livros de Graham Greene (1904-1991), detentor de uma
legenda rara entre os escritores: foi ele, ao mesmo tempo, um grande escritor,
de estilo pessoal e reflexivo, e um autor popular, capaz de ser profundo, sem
ser enfadonho, e “fácil”, sem abrir mão dos valores literários, num gênero polêmico como o policial. “Há muitos
países em nosso sangue, não é verdade? Mas apenas uma pessoa. Seria o mundo a
bagunça que é se fôssemos leais ao amor, e não aos países?”, reflete uma das
personagens. Publicado em 1958, vertido para o cinema e com inúmeras edições em
vários idiomas, este romance policial de espionagem tornou-se um dos mais célebres de seu autor, que
fez da literatura um plenário para as discussões de seu tempo, sem jamais
incorrer no panfleto.
Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da revista Verbo 21, em janeiro de 2013.
Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da revista Verbo 21, em janeiro de 2013.
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
VESTÍGIOS DA NUVEM DA MORTE
A obra de Sir Arthur Conan Doyle é vasta e variada.
É um erro associá-lo, terminantemente, ao personagem Sherlock Holmes e suas
aventuras de mistério policial. Conan Doyle dedicou-se também ao romance
histórico, com relativo êxito, e ainda mais freneticamente aos relatos
fantásticos e de ficção científica, dos quais uma de suas mais notáveis criações
é A nuvem da morte (The poison belt).
Grosso modo, seu argumento propõe o fim da humanidade, ameaçada de extermínio por
um gás venenoso, presente num cometa de passagem pela Terra. Deter-me na trama
implicaria revelar parte da história, o que poderia desestimular alguns
leitores mais afeitos a inícios e conclusões. Portanto, vou me ater aos
pormenores que me fizeram enxergar, neste livro, influências sobre alguns
afamados filmes de ficção científica e até de suspense. Tais evidências me obrigaram
a especular que este breve romance goza de muito mais prestígio entre os
leitores de língua inglesa do que lhe atribuem as edições brasileiras, quase
sempre destinadas ao público juvenil. Na minha edição (São Paulo: Nova
Alexandria, 1994), em tradução do escritor e editor Rodrigo Lacerda, à página
94, lê-se: “Elas tinham sido dispensadas por seus aterrorizados professores e
estavam correndo para suas casas quando o veneno agarrou-as em sua rede”. Um
leitor atento, e que aprecia o melhor do cinema mundial, há de reconhecer nesta cena a
origem de outra, de Os pássaros,
quando as crianças abandonam a escola e correm, perseguidas pelas aves. Mais
adiante, na página 98, reconhece-se na velha asmática que passou incólume pela
tragédia promovida pela nuvem a fonte de inspiração de M. Night Shyamalan no
desfecho de Sinais, ainda que indiretamente. No filme, o garoto só
sobrevive ao veneno alienígena porque também é asmático. Na mesma página, logo
a seguir, há um trecho que pode ter permanecido, em estado de suspensão, no
inconsciente dos criadores de Extermínio, dirigido por Danny Boyle: “Quando nos aproximamos do rio Tâmisa, o bloqueio nas ruas aumentou e os obstáculos
se tornaram mais espantosos. Foi com dificuldade que conseguimos atravessar a
ponte de Londres”. Por fim, na página 113, percebe-se na evocação do sono,
referido na fala de um dos personagens, o elemento norteador da trama de Cidade das sombras, de Alex Proyas. Além do mais, todo o
entrecho de A nuvem da morte parece subsistir
na construção de outro filme de Night Shyamalan, O
fim dos tempos. Neste caso, creio que a sugestão é explícita ― ou não será
uma pista o fato de que o filme se abre com nuvens, e a todo momento o vento é
evocado? A loucura que acomete os personagens e os conduz ao suicídio parece cair
do céu e, aos poucos, espalhar-se sob o efeito das correntes de ar. Conan
Doyle talvez não imaginasse o poderoso alcance que seu relato teria, e nem
talvez o escrevesse, se fosse este o propósito. Mas é evidente que seu vigor
persiste na imaginação dos leitores e, eventualmente, vem à superfície da
inspiração.
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sábado, 12 de janeiro de 2013
AS AVENTURAS DE SHERLOCK HOLMES
Esta é uma das mais bonitas edições deste livro no Brasil. O formato é de bolso (18x12cm), em capa dura, com 50 ilustrações originais, assinadas por Sidney Paget, e folhas de guarda em papel quadriculado verde e branco. De fato, uma edição luxuosa, com fonte tipográfica atraente (Kingfisher), mancha sedutora, entrelinha confortável e margens medianas, aspectos que conferem à leitura um duplo prazer: do texto em si e do objeto gráfico manuseado. O papel é o Pólen Soft de 70g. A editora Zahar, na verdade, reedita o mesmo livro que publicou, em 1987, na coleção O Creme do Crime. As mudanças são poucas, uma das quais, porém, muito relevante: naquela edição o tradutor foi Waltensir Dutra; nesta, Maria Luiza X. de A. Borges. Foi-se embora, também, o substantivo de tratamento respeitoso "sir", que, na edição de 1987, comparece à folha de rosto e às orelhas (apresentação e biografia), mas não à capa; e, na atual, bem discretamente, só à ficha catalográfica (que poucos leem) e à biografia interna, consultada sempre às pressas pela maioria dos leitores. Alguns dos contos mais célebres do autor (e, claro, do seu mais famoso personagem!) integram o volume, entre os quais Escândalo na Boêmia e A Liga dos Cabeças Vermelhas, frequentes presenças em muitas antologias do autor e do que a literatura policial produziu de melhor. O preço é altamente convidativo ainda, mesmo passado um ano desde seu lançamento, para um livro de tal requinte: R$22,00.
quarta-feira, 9 de janeiro de 2013
ASTRONAUTA MAGNETAR
Atualização do popular personagem Astronauta, de Maurício de Sousa, criado em 1963, há exatos 50 anos. Infelizmente, nem a história nem a arte de Danilo Beyruth empolgam o leitor, especialmemte aquele habituado à literatura canônica de ficção científica (Asimov, Bradbury, Clarke, Conan Doyle, Lem, Wells, Verne) ou ao que de melhor os quadrinhos do gênero produziram (Moebius, Bilal). Há na publicação, no entanto, alguns méritos, e o leitor juvenil menos exigente, de maneira geral, há de apreciá-la. Certos trechos se destacam pelos recursos narrativos empregados. O primeiro, entre as páginas 38 e 41, é a representação gráfica da jornada de rotina, tédio e solidão do personagem, confinado a uma região remota do espaço. As páginas se sucedem e se amiúdam, até que as cenas de atos triviais que definem a clausura de 146 dias mal podem ser reconhecidas. A segunda sequência narrativa a ressaltar é a que compreende as páginas 48 e 57. Num ápice de desespero, o Austronauta começa a delirar e, ato contínuo, faz um balanço de sua existência. Por fim, o desfecho, que, muito embora constitua um clichê da literatura romântica (e posteriormente do cinema), ainda funciona, e não sabemos ao certo se o personagem viveu realmente aquela aventura ou a sonhou. Danilo Beyruth é mais conhecido pela premiada HQ Bando de dois e Necronauta, e demonstra em Astronauta magnetar toda a sua versatilidade. O gibi abre a coleção Graphic MSP (coedição da Panini Comics e Maurício de Sousa Editora), que vai publicar atualizações dos personagens do artista ilustre por grandes nomes contemporâneos dos quadrinhos brasileiros. Como o próprio Maurício diz, na introdução: "As sementinhas que plantei, décadas atrás, germinaram".
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terça-feira, 8 de janeiro de 2013
CLÁSSICOS SCI-FI: AS CRÔNICAS MARCIANAS
Foram As crônicas marcianas (The martian chronicles) que revelaram o autor Ray Bradbury e definiram seu estilo, de tramas fantásticas, orientadas pela livre imaginação, e linguagem poética, aspectos que o fizeram único e singular entre os autores de ficção científica. Publicado nos EUA em 1950, As crônicas marcianas colheram elogios imediatos de Adous Huxley e Christopher Isherwood. Ao longo das décadas, a obra granjeou prestígio junto a escritores tão diversos quanto Mário Quintana, no Brasil, e Jorge Luis Borges, na Argentina, que lhe dedicou um prólogo elogioso, no qual expressa seu fascínio pela obra e ressalta o estilo do autor. E, de fato, este exemplar da literatura fantástica é uma das mais importantes obras literárias do século XX e transcende em muito seu gênero, constituindo-se num clássico da ficção americana e mundial. É, inclusive, uma obra de difícil classificação, pois pode ser avaliada como um conjunto de contos ou um romance, formado por várias histórias, e cujo assunto seria a suposta colonização de Marte pelos terráqueos. Algumas histórias, por sua beleza poética e conteúdo fantástico, seduzem os leitores mais exigentes, enquanto outras, mais movimentadas, encerram os leitores numa espécie de vórtice que só se detém com o desfecho. A obra é, ainda, uma profunda reflexão sobre o protagonismo do ser humano no Universo, caso ele, algum dia, alcançasse outros planetas e chegasse a colonizá-los. Em suma, Marte só é Marte para nós. Um "marciano", se existisse, só seria marciano para nós e, certamente, teria dado outro nome ao seu planeta, ao passo que o nosso, para ele, também não se chamaria Terra. Portanto, quando os terráqueos chegam a Marte, deparam-se com "o outro" como ele verdadeiramente é, muito diferente de como a imaginação do homem o moldou e suas expectativas de expansão espacial o consagraram. No curso das aventuras de As crônicas marcianas, os terráqueos se alarmam duplamente: com o que não encontram e com o que veem e lhes é por demais estranho. A melhor edição brasileira é a da Editora Globo, de 2005, com o Prólogo de Borges e um prefácio assinado por Donizete Galvão. A tradução é de Ana Ban, reproduzida pela editora, em formato de bolso com propósitos didáticos, no ano seguinte.
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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
MALET POR TARDI
O
escritor francês Léo Malet, nascido em Montpellier em 2009 e morto
em 1996 em Paris, jamais teve suas obras regularmente publicadas no
Brasil. Talvez o único livro de que se tem notícia seja É
sempre noite (La vie est dégueulasse), da Trilogia negra,
publicado pela Companhia das Letras em 1991 e jamais completada pela editora. Como os romances estrangeiros policiais tradicionalmente eram
publicados no Brasil por casas editoriais de vida efêmera e em edições
baratas, que mais cedo ou mais tarde desapareciam na poeira dos sebos
e das bibliotecas, não se pode afirmar que nenhuma outra obra do
autor não tenha vindo a público por aqui, em algum momento dos últimos
cinquenta anos. Malet deixou de escrever nos anos 1960, mas seus
livros, na França, continuaram populares e exaltados pela crítica,
tanto a mais exigente quanto a específica do gênero policial. Isso
se deve ao fato de ele mesclar, com eficiência, a ação rápida do romance policial
americano com a tendência, na qual a literatura francesa é
insuperável, de refletir sobre a realidade e filosofar sobre a
condição humana. Neste sentido, Malet não se parece com ninguém.
Talvez um pouco com Simenon. Para o deleite de seus raros
apreciadores no Brasil (tenho quase certeza de que este grupo não
é legião!), a editora de HQ Zarabatana Books acaba de lançar
Brumas sobre a Pont de Tolbiac, adaptação para os quadrinhos
por Jacques Tardi do romance homônimo de Léo Malet. O próprio
Malet afirma, no prefácio, que este é um de seus livros mais
apreciados, por ele e pelo público, com edições sucessivas.
Curiosamente não foi aproveitado pelo cinema, mas se tornou uma
belíssima HQ, pelas mãos de um astro dos quadrinhos franceses. A
edição brasileira, em P&B sobre papel couché e dimensão
confortável de 16x23cm, impressiona pelo requinte e pela beleza, e o estilo de Tardi parece perfeitamente assentado ao de Malet, seja na
caracterização física dos personagens seja nos retratos em
claro-escuro das ruas de Paris. Dá até vontade de ir lá, tamanho é o realismo! Para a nossa
decepção, infelizmente, os protagonistas Nestor Burma e a cigana
Belita são só de papel. A edição compreende o volume 1 da Coleção
Nestor Burma. Torçamos para que a editora cumpra o prometido e
publique mais adaptações de Malet por Tardi.
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