Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

UM DOS MELHORES LIVROS DA SÉRIE MAIGRET

Num autor regular como Georges Simenon (1903-1989), capaz de escrever até seis romances num só ano, e todos mesclando com eficiência funcionalidade narrativa e estilo literário, não raras vezes com descrições de atmosfera em deliberada prosa poética, é de surpreender que um livro específico, quer seja da série Maigret quer seja do gênero que ele chamava de roman dur, se destaque perante os demais. Mas é o que acontece com Maigret no Picratt's (Maigret au Picratt's, 1951). E causa ainda mais impressão o fato de que, ao olharmos detidamente a capa da edição brasileira, descobrirmos através da informação "inédito" que este romance demorou exatos 61 anos para ser traduzido no Brasil.

Desde o seu início (um dos mais perfeitos primeiros capítulos de um relato policial) até o seu desfecho, este romance é a um só tempo deleite e assombro. De pronto, a narrativa principia sem que Maigret ou o Quai des Orfèvres sejam mencionados. É fim de noite, uma boate cerra as portas, músicos e dançarinas partem para as suas casas, o proprietário e a esposa se recolhem ao leito. A dançarina Arlette, no entanto, não vai para casa. Escora-se num bar, bebe dois cafés com rum e, dali, resolve ir à delegacia fazer uma denúncia: "Um homem vai matar uma condessa". Mais tarde, sóbria, nem ela mesma acredita no que disse. E sua descrença acaba por contribuir para que a polícia não a leve a sério. O resultado é que ainda naquele mesmo dia Arlette será assassinada.

Antes, porém, os colaboradores de Maigret terão a chance ou sorte de poder se impressionar com Arlette, especialmente Lapointe e Lucas, que viu na moça mais do que uma mulher bonita: "Ele lhe abriu a porta, viu-a afastar-se no amplo corredor e hesitar no alto da escada. As pessoas se viravam para olhá-la. Via-se que ela saía do outro mundo, o mundo da noite, e parecia quase indecente à luz crua de um dia de inverno. Na sala, Lucas aspirou o cheiro que ela deixara atrás de si, um cheiro de mulher, quase de cama".

Daí por diante, o crime em si não tem tanta importância. É mais urgente saber quem é a vítima; o que fazia, além de dançar até a nudez total, todas as noites, no Picratt's. Tais informações talvez conduzam ao assassino. Ou talvez sirvam apenas para fazer realizar, no plano mental, as curiosidades ou necessidades eróticas de todos os que se envolvem no caso, civis e policiais. Lapointe, inclusive, estava sentimentalmente envolvido com a vítima. O jovem colaborador de Maigret apaixonara-se por Arlette e, invariavelmente, ia vê-la na boate todas as noites: "Lapointe, naquela noite, havia enterrado seu primeiro amor. E matado seu primeiro homem".

Maigret se estabelece na boate e de lá conduz a investigação. Aos poucos, descobre os segredos de Arlette e compreende que, para alguns, quando o assunto era "sexo por sexo", ela era a única, sem rivais: "Jamais houve uma mulher como ela", é o que se diz, sem sombra de exagero. Tal condição levará Maigret a buscar um sujeito que é a contradição de si mesmo, e certamente foi ele que cometeu os dois assassinatos.

Com um final surpreendente e trepidante, num nível de ação que poucas vezes se vê num relato de Simenon, e com mais uma ironia ao mal-ajambrado inspetor Lognon, Maigret no Picratt's demonstra o quanto seu autor era virtuoso e variado, um escritor de amplos recursos. Não é senão por isso que seus romances permanecem atuais nas estantes, proporcionando proveito e prazer a qualquer leitor, dos mais ingênuos aos mais exigentes.

terça-feira, 16 de junho de 2015

PUNIÇÃO PARA A INOCÊNCIA: ERROS LAMENTÁVEIS

CHRISTIE, Agatha. Punição para a inocência. Porto Alegre: L&PM, 2010. 272p.

O livro é um dos melhores romances de Agatha Christie. A editora, uma das melhores e mais criteriosas do Brasil. A edição, bonita, charmosa, atraente, em formato de bolso. Mas o texto, bem, não se sabe se os erros são oriundos de deslizes do tradutor ou da incompetência da revisora. Ou de ambos. O fato é que o leitor atento, que não se deixa atrair apenas pelo entrecho de suspense, se decepciona com a quantidade incomum de falhas num texto que deveria, salvo casos específicos, devidamente sinalizados pela autora, reproduzir o português padrão, de acordo com as regras da ortografia vigente. Não é o que acontece.

A bem da verdade, os equívocos começam pela capa. No dorso, há a indicação de que esta é mais uma aventura em que o crime é solucionado pelo célebre detetive Hercule Poirot. Mas não é. O solucionador do caso acaba por ser um detetive amador, profissional de outra área, que, durante a trama, se interessa pela história.

Na página 68, um erro crasso: "Já havia um fundo beneficiário em funcionamento, que provinha as crianças de sua parte, mesmo antes de sua morte". A forma correta aqui é "provia", pretérito imperfeito do indicativo do verbo "prover", no sentido de "abastecer" ou "dotar". E não de "provir": "derivar", "resultar", "advir". Se foi o tradutor quem falhou, a revisora deveria ter corrigido o erro.

Na página 99: "embora você possa pensar que conhece alguém com a palma da mão". "Como" seria o correto.

Na 219: "e ele sabia muito bem que os maus elementos da cidade encorajavam os jovens a fornecê-los as flores que eles mesmos vendiam". Corrigindo, "fornecer" no sentido de "abastecer", "guarnecer" ou "prover" pede dupla regência, é transitivo direto e indireto, exige dois complementos, um direto (as flores) e outro indireto (eles), que, neste caso, transforma-se em "lhes", assim: "encorajavam os jovens a lhes fornecer as flores".

Na página 233, esqueceu-se o artigo "o" na frase: "De súbito, [o] brilho da manhã pareceu se ofuscar".

Na 235, dois erros: 1) esquecimento da preposição "de" em "você precisa admitir que tenho chance [de] descobrir algo"; e 2) do pronome "se" em "ninguém [se] importa com o que vai acontecer".

Mais dois erros na página 236: 1) mesmo caso de uso inadequado do pronome "o", quando o correto seria "lhe", na frase "tinha algum elemento que o havia escapado". O verbo "escapar" pede complemento indireto, portanto: "tinha algum elemento que lhe havia escapado"; 2) na frase "Uma Mary que não se importava com ninguém ao não ser com ela mesma", o correto é "a não ser", sem o artigo "o".

Na página 241, mais um equívoco de uso do pronome oblíquo: "Talvez para agradecê-la e para pedir desculpas". O correto, neste caso, é "agradecer-lhe".

Na 243, esquecimento da preposição "para", na frase: "É possível que ele estivesse dizendo a Gwenda [para] sair dali".

Na 249, uso inadequado da palavra "quarto" na frase "Saiu correndo do quarto e subiu as escadas"; o certo, no contexto, seria "aposento" ou "cômodo", pois os personagens não estavam no "quarto". Foi um deslize do tradutor, que a revisora, mais uma vez, não percebeu. Na página 250 a falha se repete: o correto, no contexto, seria usar "recobrar a consciência", mas o tradutor (ou a autora, talvez, e, se for isso, cabia uma nota de pé de página) usou "aparecer": "Dê a ela um chá bem quente ou um café assim que ela aparecer", o que é estranho, pois a pessoa, ferida e desacordada, está ali, diante do personagem que fala.

Na página 257, esta frase quase surreal: "É um bastante esquisito". O "um" está sobrando, claro! Na 261, tradutor e revisora parecem desconhecer que "e" mais "não" resultam em "nem": "Os inocentes não devem sofrer e não podem sofrer". Ora, vamos escrever mais preciso e simples: "Os inocentes não devem sofrer nem podem sofrer".

O fato de esse não ser o primeiro livro deste tradutor a apresentar falhas semelhantes me faz supor que, muito embora ele domine o idioma original da obra, possui deficiências quanto ao registro do português, ao passo que os revisores da L&PM, por sua vez, não estão fazendo seu serviço direito, o que só contribui para arranhar o prestígio tanto da editora quanto dos seus profissionais envolvidos, sem falar no que, por rebarba, vai resvalar na autora, já uma vítima constante de julgamentos equívocos.