O outro gume da faca integra o volume de novelas de Fernando Sabino
intitulado A faca de dois gumes,
publicado em 1985 e que, rapidamente, em dez anos apenas, atingiu a 11ª
edição, tendo sido reeditado, também, pelo extinto Círculo do Livro, em 1993. A popularidade do
conjunto pode, grosso modo, ser atribuída a esta novela, uma das mais lidas do
autor e que, além do mais, foi adaptada para o cinema com o título Faca de dois gumes. Muito embora
compreenda um relato policial, sem muita tradição no Brasil, cujos leitores,
quando se dedicam a ler obras do gênero, dão preferência aos autores
estrangeiros ― alguns deles fortemente amparados pelo marketing editorial, tanto a novela quanto o livro foram muito bem recebidos pela crítica e pelo público. A trama, o autor arrancou-a do romance O assassino, de Georges Simenon, e, de
forma a confessá-lo e, ao mesmo tempo, homenagear aquele que é, nos meios
literários, o mais refinado dos autores do gênero policial, Fernando Sabino
cria, ao fim do capítulo 5, o seguinte acróstico: Se
Isso Me Era Necessário Ou Não. Aldo Tolentino,
ao descobrir que sua mulher o trai com seu sócio, projeta matá-los e, num crime
perfeito, ficar impune. Mas, no fluxo da vida, as coisas dificilmente saem como foram planejadas, e, se no romance de Simenon as consequências são de fundo psicológico, na
novela de Sabino descambam para as peripécias cotidianas e existenciais, à
maneira das grandes tragédias gregas, o que já está previsto na exemplar
epígrafe que abre a novela, de autoria de Kierkegaard: “Ai daquele que sabe: há
de pagar pela culpa de ter sabido pouco”. Em linguagem exata e analítica, fartamente
dialogada, como é comum às novelas literárias, com ritmo veloz, quase
hipnótico, irônica e implacável quanto ao que se propõe ― narrar as agruras de
um humilde advogado vítima do adultério: “Agora que ele sabia tudo, tornava-se senhor
da situação, capaz de dominá-la à vontade, sentia-se onipotente. Sabia tudo.
Podia tudo” ―, O outro gume da faca é
daquelas obras que esculpem a fama de qualquer autor e o projetam para além da
crítica mais complacente, obrigando a mais ferina a parecer despeitada. Na
edição em separata, publicada pela
Ática, em 1996, e precedida por uma entrevista com o autor, este, ao resumir o
espírito da novela, acaba por oferecer, tout
court, uma definição para o relato policial de ação, em contraponto ao
relato policial de mistério: “(...) nas histórias policiais em geral já se sabe
qual o crime e procura-se descobrir o criminoso. No caso desta novela (...) pode-se
dizer que se passa o contrário: o criminoso é conhecido, o que se procura
descobrir é que espécie de crime cometeu ― se é que cometeu”. Ao longo da
entrevista, Sabino expõe todo o seu conhecimento acerca do gênero policial e de
outros, consideravelmente mais literários, mas que, ainda assim, narram um
crime e suas consequências. Ao fim, ele afirma que, embora não tenha matado
ninguém, O outro gume da faca
decorre, de certo modo, de uma experiência pessoal, pois o escritor é, “como
todo mundo, inconscientemente, um criminoso potencial”. A única exceção seria...
Jesus Cristo! E, por isso mesmo, “olha só o que fizeram com ele...”. Na Obra reunida de Fernando Sabino (Nova
Aguilar, 1996) ― O outro gume da faca está
no volume 2, entre as páginas 845 e 885 ―, Reynaldo Bairão assim se refere a
esta novela: “(...) é a mais realista, a mais próxima da literatura policial
que estamos acostumados a ler. A trama é excelente. Parece correr sobre carretéis.
A ação vai num crescendo admirável, até chegar a um final dramático,
incongruente como a própria vida”. Fernando Sabino vive, a despeito de Ferreira Gullar, que no velório do autor o definiu como "escritor menor".
Um comentário:
Mayrant, fiquei feliz por você ter escrito sobre essa novela, uma das minhas preferidas. Fernando Sabino não é menor, tampouco a narrativa policial. "O outro gume da faca" é uma prova disso e nem precisa de grandes investigações, basta uma leitura atenta e sem julgamentos prévios. Abraços.
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