Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O OUTRO GUME DA FACA


O outro gume da faca integra o volume de novelas de Fernando Sabino intitulado A faca de dois gumes, publicado em 1985 e que, rapidamente, em dez anos apenas, atingiu a 11ª edição, tendo sido reeditado, também, pelo extinto Círculo do Livro, em 1993. A popularidade do conjunto pode, grosso modo, ser atribuída a esta novela, uma das mais lidas do autor e que, além do mais, foi adaptada para o cinema com o título Faca de dois gumes. Muito embora compreenda um relato policial, sem muita tradição no Brasil, cujos leitores, quando se dedicam a ler obras do gênero, dão preferência aos autores estrangeiros ― alguns deles fortemente amparados pelo marketing editorial, tanto a novela quanto o livro foram muito bem recebidos pela crítica e pelo público. A trama, o autor arrancou-a do romance O assassino, de Georges Simenon, e, de forma a confessá-lo e, ao mesmo tempo, homenagear aquele que é, nos meios literários, o mais refinado dos autores do gênero policial, Fernando Sabino cria, ao fim do capítulo 5, o seguinte acróstico: Se Isso Me Era Necessário Ou Não. Aldo Tolentino, ao descobrir que sua mulher o trai com seu sócio, projeta matá-los e, num crime perfeito, ficar impune. Mas, no fluxo da vida, as coisas dificilmente saem como foram planejadas, e, se no romance de Simenon as consequências são de fundo psicológico, na novela de Sabino descambam para as peripécias cotidianas e existenciais, à maneira das grandes tragédias gregas, o que já está previsto na exemplar epígrafe que abre a novela, de autoria de Kierkegaard: “Ai daquele que sabe: há de pagar pela culpa de ter sabido pouco”. Em linguagem exata e analítica, fartamente dialogada, como é comum às novelas literárias, com ritmo veloz, quase hipnótico, irônica e implacável quanto ao que se propõe ― narrar as agruras de um humilde advogado vítima do adultério: “Agora que ele sabia tudo, tornava-se senhor da situação, capaz de dominá-la à vontade, sentia-se onipotente. Sabia tudo. Podia tudo” ―, O outro gume da faca é daquelas obras que esculpem a fama de qualquer autor e o projetam para além da crítica mais complacente, obrigando a mais ferina a parecer despeitada. Na edição em separata, publicada pela Ática, em 1996, e precedida por uma entrevista com o autor, este, ao resumir o espírito da novela, acaba por oferecer, tout court, uma definição para o relato policial de ação, em contraponto ao relato policial de mistério: “(...) nas histórias policiais em geral já se sabe qual o crime e procura-se descobrir o criminoso. No caso desta novela (...) pode-se dizer que se passa o contrário: o criminoso é conhecido, o que se procura descobrir é que espécie de crime cometeu ― se é que cometeu”. Ao longo da entrevista, Sabino expõe todo o seu conhecimento acerca do gênero policial e de outros, consideravelmente mais literários, mas que, ainda assim, narram um crime e suas consequências. Ao fim, ele afirma que, embora não tenha matado ninguém, O outro gume da faca decorre, de certo modo, de uma experiência pessoal, pois o escritor é, “como todo mundo, inconscientemente, um criminoso potencial”. A única exceção seria... Jesus Cristo! E, por isso mesmo, “olha só o que fizeram com ele...”. Na Obra reunida de Fernando Sabino (Nova Aguilar, 1996) ― O outro gume da faca está no volume 2, entre as páginas 845 e 885 ―, Reynaldo Bairão assim se refere a esta novela: “(...) é a mais realista, a mais próxima da literatura policial que estamos acostumados a ler. A trama é excelente. Parece correr sobre carretéis. A ação vai num crescendo admirável, até chegar a um final dramático, incongruente como a própria vida”. Fernando Sabino vive, a despeito de Ferreira Gullar, que no velório do autor o definiu como "escritor menor".

Um comentário:

Lidi disse...

Mayrant, fiquei feliz por você ter escrito sobre essa novela, uma das minhas preferidas. Fernando Sabino não é menor, tampouco a narrativa policial. "O outro gume da faca" é uma prova disso e nem precisa de grandes investigações, basta uma leitura atenta e sem julgamentos prévios. Abraços.