Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

domingo, 30 de junho de 2013

OS CRIMES ABC

L&PM, 2010.
Os crimes ABC é uma das melhores e mais populares obras de Agatha Christie. Muito de sua fama como A Dama do Crime se deve a este livro, O assassinato de Roger Ackroyd (1926), O caso dos dez negrinhos (1939) e às peças A ratoeira (1952) e Testemunha de acusação (1953). Publicado em 1936, dez anos após Roger Ackroyd, Os crimes do ABC diverge dos demais livros com o personagem Hercule Poirot, pois, em lugar de o detetive colocar sua inteligência a serviço da solução dos crimes, ele deve usá-la para evitar que assassinatos pré-anunciados em ordem alfabética sejam cometidos. Em ritmo trepidante, que lembra os filmes atuais de ação, Poirot, seu fiel amigo Hastings e a polícia britânica saltam de uma cidade a outra à caça do assassino. Ao fim, aparentemente solucionados os crimes e preso o criminoso, algo intriga Poirot, que, argutamente, emborca a panela e mostra que a realidade não passa de simples aparência, numa referência indireta a Platão, também citado numa fala-chave da narrativa: "Normalmente é quando estamos falando sobre as coisas que parecemos vê-las com clareza. A nossa mente às vezes se fecha numa ideia sem saber como isso aconteceu. Conversar leva a muitas coisas, de um jeito ou de outro". A dialética é o princípio de toda compreensão. Que belo filme de serial killer não daria esta obra, se houvesse mais leitores sérios e sem preconceito com relação à Dama do Crime; e se ela, muito embora sua popularidade, não estivesse restrita a um grupo de leitores aficionados do gênero policial, numa época em que qualquer picuinha política ou do mundo dos espetáculos (incluindo o esporte) tem muito mais importância do que uma boa história. 

segunda-feira, 10 de junho de 2013

NOITE SEM FIM

Capa: Victor Burton.
É provável que Noite sem fim (Endless night, 1950) não seja um dos 10 romances favoritos da imensa legião de leitores de Agatha Christie. Tampouco é provável que seja um dos mais comentados pela crítica especializada. Aliás, este é um livro incomum, tanto se avaliado em face do estilo da autora quanto a partir das regras do relato policial de mistério, que a tornou a mais cultuada escritora do gênero em todos os tempos. Noite sem fim é, grosso modo, uma história de amor. Narrado em primeira pessoa, reúne uma jovem milionária e um motorista, que se conhecem, se casam e vão morar no campo, numa casa construída especialmente para eles. É ali que, em convivência, surgirão os primeiros problemas de adaptação com os supersticiosos habitantes do local e, por fim, uma morte. Os detetives recorrentes da autora não comparecem para solucionar o crime, que fica a cargo da polícia do lugar, e boa parte da história se passa durante o cotidiano do casal. Obviamente que, se não houvesse uma surpresa final, não seria um livro de Agatha Christie. E a surpresa causa impacto no leitor, que fecha o livro com um certo mal-estar, sentindo-se, digamos, ludibriado. Todavia, todos os autores fazem isso, mais cedo ou mais tarde, em especial aqueles que produzem em larga escala e com os quais os leitores se mantêm vigilantes, sedentos, à espera da próxima obra. Descansam de seu método ou de suas incursões mais frequentes. Foi, a meu ver, o que sucedeu a Agatha Christie com Noite sem fim. Ela saiu de si mesma para tentar escrever uma obra livre de amarras e com a qual pudesse exercitar a imaginação, o que não deixa de atestar seu virtuosismo. E Noite sem fim é, sem dúvida, uma de suas obras em que ela mais se detém em reflexões pessoais do narrador e análises do mundo à sua volta: "Ninguém reconhece na própria vida, a não ser tarde demais, os momentos que são realmente importantes". Se tivesse se mantido nos trilhos de um entrecho mais policialesco, isso não seria possível. E só o foi porque ela se permitiu variar.

terça-feira, 4 de junho de 2013

UM ASSASSINO ENTRE NÓS

L&PM, 2007.
"Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever", assim começa um dos melhores romances policiais de Ruth Rendell: Um assassino entre nós (A judgement in stone, 1977). É uma história cujo desfecho já se conhece, enunciado na primeira frase, portanto a narrativa se concentra nos fatos que conduzem ao crime e suas consequências. É um relato policial de ação. Não se fixa propriamente na investigação do assassinato, mas na tentativa (e tentação) de se compreender por que uma empregada doméstica, aparentemente pacífica e eficiente no seu trabalho, comete uma chacina contra seus patrões, matando a sangue frio quatro pessoas com as quais ela convivia diariamente e que a respeitavam. Dizem que os cegos confiam em todos, e os surdos, em ninguém. Quem não lê nem escreve talvez seja como um surdo na escuridão: sofre com uma dupla desconfiança, pois não tem meios imediatos de compensar sua deficiência. E, incomodado, apreensivo, envergonhado, só lhe restam duas opções: ou se corrige, alfabetizando-se (mas para isso precisa confessar-se), ou elimina as pessoas que o fazem diferente e inferior. Foi esta a escolha de Eunice Parchman. Matou aqueles que a faziam sentir-se complexada, por não poder decifrar as palavras, nem com elas, através da escrita, transmitir suas ideias. Matou para manter intacto o seu humilhante segredo.