Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

PERSEGUIDO

O primeiro livro de Luiz Alfredo Garcia-Roza tendo o delegado Espinosa como personagem, O silêncio da chuva, recebeu os prêmios Nestlé e Jabuti, manipulando desde já como mestre as "regras" e estilos do gênero, aliando a aventura e o suspense com uma análise aguda da realidade do Rio de Janeiro e, por conseguinte, do Brasil. Achados e perdidos, Vento sudoeste e Uma janela em Copacabana, continuaram com o mesmo ímpeto e qualidade.
Em Perseguido, porém, Garcia-Roza realiza um passo a mais. Sem favor nenhum, é seu melhor livro e uma das melhores obras de suspense psicológico!
O Dr. Artur Nesse é um psiquiatra de um hospital universitário que está no início do tratamento de um novo paciente. De imediato, somos confrontados com o fato, que o doutor vai percebendo aos poucos, de que o rapaz possui algo dentro de si bem diferente dos demais pacientes. Há algum fator que liga a vida de Isidoro Cruz, o paciente que se diz chamar na verdade Jonas, ao médico. Não possui nenhuma resposta objetiva a suas perguntas e, embora faça questão de se tratar com ele, nunca lhe diz a que veio. Insidiosamente, vai desequilibrando a harmonia pessoal, psicológica e familiar do doutor, mistura-se com sua vida íntima e começa a namorar sua filha, sabe-se lá com que verdadeiros intuitos.
À primeira vista, parece que estamos diante de um repeteco dos roteiros de filmes. Já vimos isso várias vezes. No entanto, o labirinto psicológico a que nos conduz Garcia-Roza é profundo e inusitado. Ele brinca com nossas expectativas, zomba de nossas conceituações primitivas, alargando os termos do romance policial, a ponto de não sabermos se realmente acontece o tal assassinato. Não sabemos quem é o assassino, por certo, mas na verdade não sabemos sequer se podemos denominar alguém de "assassino"! A loucura, a morte e a paranóia atingem ao doutor, sua mulher, suas filhas, mas onde está a premeditação, quem está planejando tudo? Quem é o verdadeiro louco, o assassino, Nesse ou Jonas?
Nada mais pode ser dito. Em um dos finais mais instigantes que conheço, ficaremos como o delegado Espinosa, diante do fato concreto da morte e da tragédia, mas sem sabermos sequer como começar a entender o que está acontecendo.

CLAUDINEI VIEIRA, UM INFILTRADO.

domingo, 25 de abril de 2010

MESTRE DE FUGAS

De vez em quando lemos um romance policial que não se parece com nenhum outro. É o caso de Piloto de fuga (The getaway man), de Andrew Vachss. A história de Eddie é contada em ritmo e tom de fábula, desde seus dias de delinquência juvenil até a época em que ele se torna um motorista profissional de quadrilhas: o cara que fica no carro, com o motor ligado, à espera dos companheiros que assaltam, para fugir. Neste sentido, ele passa pela "educação primária", pelo "segundo grau", pela "graduação", "mestrado", até atingir o estágio de "doutoramento", quando começa a colaborar para o aperfeiçoamento de sua profissão, com novas ideias, novos métodos e práticas. A rigor, o romance não tem uma trama, o que pode frustrar e desestimular muitos leitores do gênero. Parece mais um livro das memórias de um bandido que, aposentado, resolve contar sua história, dos primeiros dias àquele momento que significou, para ele, o ápice de sua carreira. É, portanto, um romance policial de ação: os bandidos estão em primeiro plano e só eles importam. Policiais e juízes, sempre esvaziados de qualquer psicologismo, são quase autômatos, encarregados apenas de prender e condenar. O narrador parece, com isso, querer afirmar que as verdadeiras pessoas, as mais humanas e complexas, são os bandidos. É nesse cenário onírico e sem contornos, nessa realidade opaca e definida com um mínimo de recursos, através de uma escrita direta e elíptica, que Eddie "trabalha", se envolve ingenuamente com três mulheres, adquire gosto pelo cinema (em especial, filmes sobre motoristas e carros em fuga) e projeta sua aposentadoria. Mas algo inesperado acontece... E a questão que se coloca não é se ele, mestre de fugas, vai conseguir escapar, mas "como" vai escapar e "com o quê", pois, uma vez que a história é narrada em primeira pessoa, não resta dúvida de que ele sobreviveu. Ou está gozando dos benefícios que a riqueza proporciona, livre do trabalho e do assédio da polícia, a ponto de escrever sobre si mesmo e suas experiências, ou apodrecendo na cadeia, com todo o tempo do mundo para relembrar sua vida.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

GEORGES SIMENON

Como Maigret, seu mais famoso personagem, Georges Simenon era em si uma figura ímpar. Nascido em 1903 na Bélgica, foi para a França e se tornou um dos maiores escritores de todos os tempos. Construiu sua carreira de forma determinada, planejada, dirigida. Consciente da necessidade de criar um estilo e uma arte particulares, durante vários anos "treinou", escrevendo centenas de livrinhos obscuros de vendagem imediata, o que garantia sua sobrevivência e o obrigava a testar seus limites. Nesta época, utilizou dezenas de pseudônimos, sendo os mais freqüentes Georges Sim e Jean du Perry. Quando sentiu que estava preparado, deixou os pseudônimos e organizou O lançamento.
Foi numa sexta-feira, 20 de fevereiro de 1931, em Montparnasse, coração de Paris. Festa para o lançamento de dois romances de um novo detetive, anunciada como a Noitada Carcerária. Simenon confeccionara e espalhara pela cidade milhares de cartões postais, com frases instigantes retiradas das obras. Os "convites" eram fichas de intimação judicial com o nome do indiciado, isto é, convidado. A decoração do salão era sistemática: algemas, mãos ensanguentadas, corpos decapitados. Os porteiros estavam à caráter: uma prostituta, um cafetão e um açougueiro com um facão manchado de sangue. Pierre Assouline, um dos biógrafos de Simenon, conta que, para entrar, os convidados ainda eram obrigados a preencher uma ficha e deixar as impressões digitais. A festa foi um sucesso estrondoso.
Georges Simenon está por inteiro neste episódio. Misto de showman com escritor clássico, mexendo com temas perenes e eternos da literatura mundial, ferrenho defensor dos rendimentos que o tornaram um dos homens mais ricos de sua época e uma verdadeira usina de produção literária: escrevia com uma velocidade, quantidade e qualidade impressionantes. Escrevia romances em uma semana e publicava vários por ano. Ao final de sua vida, deixou por volta de quatrocentos livros escritos, sendo que destes "somente" setenta e cinco eram de Maigret. Foi traduzido para mais de cinquenta línguas, vendeu mais de quinhentos milhões de exemplares, foi transposto para o cinema, televisão, teatro e quadrinhos.
Maigret, portanto, mais do que um simples personagem de literatura, faz parte do patrimônio cultural da humanidade.


CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista, com incursões também pelo relato policial. Publicou Desconcerto (São Paulo: Demônio Negro, 2008).

domingo, 18 de abril de 2010

UM OUTRO MAIGRET

Em Maigret se diverte (Maigret s'amuse), Simenon, fazendo jus à fama de virtuose, promove uma inversão: o comissário Maigret está de férias, mas não sai de Paris; nesse ínterim, um terrível crime acontece, e ele resolve acompanhá-lo pelos jornais, incógnito. Esse deslocamento permite que experimente o outro lado da investigação, o ponto de vista das pessoas comuns, que, nos anos 1950 muito mais que atualmente, compravam os jornais para acompanhar o andamento das investigações policiais, como se estivessem diante de um folhetim ou de uma série de cinema, gêneros que em nossa época se converteram nas telenovelas e nos seriados de tevê, apesar do próprio Simenon afirmar que "a gente nunca pode acreditar no que dizem os jornais". E, como um fã fervoroso, Maigret se irrita, faz conjecturas, não se contém de expectativa por novas notícias e chega a escrever mensagens anônimas aos seus colegas da polícia encarregados da investigação. O desfecho, definitivamente um dos mais originais que Simenon imaginou, é quase um hino à amizade e à colaboração mútua entre policiais e colegas de trabalho, não importando quem é o chefe e quem é o subordinado. Publicado em 1957, Maigret se diverte é um excelente exercício de ponto de vista e, sem dúvida, um dos mais criativos romances com o comissário. Eu, que já havia feito a minha lista com meus 10 livros preferidos da série Maigret, tive que excluir um para acrescentar este, uma obra-prima de virtuosismo e imaginação. Imperdível!