Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

terça-feira, 16 de junho de 2015

PUNIÇÃO PARA A INOCÊNCIA: ERROS LAMENTÁVEIS

CHRISTIE, Agatha. Punição para a inocência. Porto Alegre: L&PM, 2010. 272p.

O livro é um dos melhores romances de Agatha Christie. A editora, uma das melhores e mais criteriosas do Brasil. A edição, bonita, charmosa, atraente, em formato de bolso. Mas o texto, bem, não se sabe se os erros são oriundos de deslizes do tradutor ou da incompetência da revisora. Ou de ambos. O fato é que o leitor atento, que não se deixa atrair apenas pelo entrecho de suspense, se decepciona com a quantidade incomum de falhas num texto que deveria, salvo casos específicos, devidamente sinalizados pela autora, reproduzir o português padrão, de acordo com as regras da ortografia vigente. Não é o que acontece.

A bem da verdade, os equívocos começam pela capa. No dorso, há a indicação de que esta é mais uma aventura em que o crime é solucionado pelo célebre detetive Hercule Poirot. Mas não é. O solucionador do caso acaba por ser um detetive amador, profissional de outra área, que, durante a trama, se interessa pela história.

Na página 68, um erro crasso: "Já havia um fundo beneficiário em funcionamento, que provinha as crianças de sua parte, mesmo antes de sua morte". A forma correta aqui é "provia", pretérito imperfeito do indicativo do verbo "prover", no sentido de "abastecer" ou "dotar". E não de "provir": "derivar", "resultar", "advir". Se foi o tradutor quem falhou, a revisora deveria ter corrigido o erro.

Na página 99: "embora você possa pensar que conhece alguém com a palma da mão". "Como" seria o correto.

Na 219: "e ele sabia muito bem que os maus elementos da cidade encorajavam os jovens a fornecê-los as flores que eles mesmos vendiam". Corrigindo, "fornecer" no sentido de "abastecer", "guarnecer" ou "prover" pede dupla regência, é transitivo direto e indireto, exige dois complementos, um direto (as flores) e outro indireto (eles), que, neste caso, transforma-se em "lhes", assim: "encorajavam os jovens a lhes fornecer as flores".

Na página 233, esqueceu-se o artigo "o" na frase: "De súbito, [o] brilho da manhã pareceu se ofuscar".

Na 235, dois erros: 1) esquecimento da preposição "de" em "você precisa admitir que tenho chance [de] descobrir algo"; e 2) do pronome "se" em "ninguém [se] importa com o que vai acontecer".

Mais dois erros na página 236: 1) mesmo caso de uso inadequado do pronome "o", quando o correto seria "lhe", na frase "tinha algum elemento que o havia escapado". O verbo "escapar" pede complemento indireto, portanto: "tinha algum elemento que lhe havia escapado"; 2) na frase "Uma Mary que não se importava com ninguém ao não ser com ela mesma", o correto é "a não ser", sem o artigo "o".

Na página 241, mais um equívoco de uso do pronome oblíquo: "Talvez para agradecê-la e para pedir desculpas". O correto, neste caso, é "agradecer-lhe".

Na 243, esquecimento da preposição "para", na frase: "É possível que ele estivesse dizendo a Gwenda [para] sair dali".

Na 249, uso inadequado da palavra "quarto" na frase "Saiu correndo do quarto e subiu as escadas"; o certo, no contexto, seria "aposento" ou "cômodo", pois os personagens não estavam no "quarto". Foi um deslize do tradutor, que a revisora, mais uma vez, não percebeu. Na página 250 a falha se repete: o correto, no contexto, seria usar "recobrar a consciência", mas o tradutor (ou a autora, talvez, e, se for isso, cabia uma nota de pé de página) usou "aparecer": "Dê a ela um chá bem quente ou um café assim que ela aparecer", o que é estranho, pois a pessoa, ferida e desacordada, está ali, diante do personagem que fala.

Na página 257, esta frase quase surreal: "É um bastante esquisito". O "um" está sobrando, claro! Na 261, tradutor e revisora parecem desconhecer que "e" mais "não" resultam em "nem": "Os inocentes não devem sofrer e não podem sofrer". Ora, vamos escrever mais preciso e simples: "Os inocentes não devem sofrer nem podem sofrer".

O fato de esse não ser o primeiro livro deste tradutor a apresentar falhas semelhantes me faz supor que, muito embora ele domine o idioma original da obra, possui deficiências quanto ao registro do português, ao passo que os revisores da L&PM, por sua vez, não estão fazendo seu serviço direito, o que só contribui para arranhar o prestígio tanto da editora quanto dos seus profissionais envolvidos, sem falar no que, por rebarba, vai resvalar na autora, já uma vítima constante de julgamentos equívocos.