Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

UM DOS MELHORES LIVROS DA SÉRIE MAIGRET

Num autor regular como Georges Simenon (1903-1989), capaz de escrever até seis romances num só ano, e todos mesclando com eficiência funcionalidade narrativa e estilo literário, não raras vezes com descrições de atmosfera em deliberada prosa poética, é de surpreender que um livro específico, quer seja da série Maigret quer seja do gênero que ele chamava de roman dur, se destaque perante os demais. Mas é o que acontece com Maigret no Picratt's (Maigret au Picratt's, 1951). E causa ainda mais impressão o fato de que, ao olharmos detidamente a capa da edição brasileira, descobrirmos através da informação "inédito" que este romance demorou exatos 61 anos para ser traduzido no Brasil.

Desde o seu início (um dos mais perfeitos primeiros capítulos de um relato policial) até o seu desfecho, este romance é a um só tempo deleite e assombro. De pronto, a narrativa principia sem que Maigret ou o Quai des Orfèvres sejam mencionados. É fim de noite, uma boate cerra as portas, músicos e dançarinas partem para as suas casas, o proprietário e a esposa se recolhem ao leito. A dançarina Arlette, no entanto, não vai para casa. Escora-se num bar, bebe dois cafés com rum e, dali, resolve ir à delegacia fazer uma denúncia: "Um homem vai matar uma condessa". Mais tarde, sóbria, nem ela mesma acredita no que disse. E sua descrença acaba por contribuir para que a polícia não a leve a sério. O resultado é que ainda naquele mesmo dia Arlette será assassinada.

Antes, porém, os colaboradores de Maigret terão a chance ou sorte de poder se impressionar com Arlette, especialmente Lapointe e Lucas, que viu na moça mais do que uma mulher bonita: "Ele lhe abriu a porta, viu-a afastar-se no amplo corredor e hesitar no alto da escada. As pessoas se viravam para olhá-la. Via-se que ela saía do outro mundo, o mundo da noite, e parecia quase indecente à luz crua de um dia de inverno. Na sala, Lucas aspirou o cheiro que ela deixara atrás de si, um cheiro de mulher, quase de cama".

Daí por diante, o crime em si não tem tanta importância. É mais urgente saber quem é a vítima; o que fazia, além de dançar até a nudez total, todas as noites, no Picratt's. Tais informações talvez conduzam ao assassino. Ou talvez sirvam apenas para fazer realizar, no plano mental, as curiosidades ou necessidades eróticas de todos os que se envolvem no caso, civis e policiais. Lapointe, inclusive, estava sentimentalmente envolvido com a vítima. O jovem colaborador de Maigret apaixonara-se por Arlette e, invariavelmente, ia vê-la na boate todas as noites: "Lapointe, naquela noite, havia enterrado seu primeiro amor. E matado seu primeiro homem".

Maigret se estabelece na boate e de lá conduz a investigação. Aos poucos, descobre os segredos de Arlette e compreende que, para alguns, quando o assunto era "sexo por sexo", ela era a única, sem rivais: "Jamais houve uma mulher como ela", é o que se diz, sem sombra de exagero. Tal condição levará Maigret a buscar um sujeito que é a contradição de si mesmo, e certamente foi ele que cometeu os dois assassinatos.

Com um final surpreendente e trepidante, num nível de ação que poucas vezes se vê num relato de Simenon, e com mais uma ironia ao mal-ajambrado inspetor Lognon, Maigret no Picratt's demonstra o quanto seu autor era virtuoso e variado, um escritor de amplos recursos. Não é senão por isso que seus romances permanecem atuais nas estantes, proporcionando proveito e prazer a qualquer leitor, dos mais ingênuos aos mais exigentes.

terça-feira, 16 de junho de 2015

PUNIÇÃO PARA A INOCÊNCIA: ERROS LAMENTÁVEIS

CHRISTIE, Agatha. Punição para a inocência. Porto Alegre: L&PM, 2010. 272p.

O livro é um dos melhores romances de Agatha Christie. A editora, uma das melhores e mais criteriosas do Brasil. A edição, bonita, charmosa, atraente, em formato de bolso. Mas o texto, bem, não se sabe se os erros são oriundos de deslizes do tradutor ou da incompetência da revisora. Ou de ambos. O fato é que o leitor atento, que não se deixa atrair apenas pelo entrecho de suspense, se decepciona com a quantidade incomum de falhas num texto que deveria, salvo casos específicos, devidamente sinalizados pela autora, reproduzir o português padrão, de acordo com as regras da ortografia vigente. Não é o que acontece.

A bem da verdade, os equívocos começam pela capa. No dorso, há a indicação de que esta é mais uma aventura em que o crime é solucionado pelo célebre detetive Hercule Poirot. Mas não é. O solucionador do caso acaba por ser um detetive amador, profissional de outra área, que, durante a trama, se interessa pela história.

Na página 68, um erro crasso: "Já havia um fundo beneficiário em funcionamento, que provinha as crianças de sua parte, mesmo antes de sua morte". A forma correta aqui é "provia", pretérito imperfeito do indicativo do verbo "prover", no sentido de "abastecer" ou "dotar". E não de "provir": "derivar", "resultar", "advir". Se foi o tradutor quem falhou, a revisora deveria ter corrigido o erro.

Na página 99: "embora você possa pensar que conhece alguém com a palma da mão". "Como" seria o correto.

Na 219: "e ele sabia muito bem que os maus elementos da cidade encorajavam os jovens a fornecê-los as flores que eles mesmos vendiam". Corrigindo, "fornecer" no sentido de "abastecer", "guarnecer" ou "prover" pede dupla regência, é transitivo direto e indireto, exige dois complementos, um direto (as flores) e outro indireto (eles), que, neste caso, transforma-se em "lhes", assim: "encorajavam os jovens a lhes fornecer as flores".

Na página 233, esqueceu-se o artigo "o" na frase: "De súbito, [o] brilho da manhã pareceu se ofuscar".

Na 235, dois erros: 1) esquecimento da preposição "de" em "você precisa admitir que tenho chance [de] descobrir algo"; e 2) do pronome "se" em "ninguém [se] importa com o que vai acontecer".

Mais dois erros na página 236: 1) mesmo caso de uso inadequado do pronome "o", quando o correto seria "lhe", na frase "tinha algum elemento que o havia escapado". O verbo "escapar" pede complemento indireto, portanto: "tinha algum elemento que lhe havia escapado"; 2) na frase "Uma Mary que não se importava com ninguém ao não ser com ela mesma", o correto é "a não ser", sem o artigo "o".

Na página 241, mais um equívoco de uso do pronome oblíquo: "Talvez para agradecê-la e para pedir desculpas". O correto, neste caso, é "agradecer-lhe".

Na 243, esquecimento da preposição "para", na frase: "É possível que ele estivesse dizendo a Gwenda [para] sair dali".

Na 249, uso inadequado da palavra "quarto" na frase "Saiu correndo do quarto e subiu as escadas"; o certo, no contexto, seria "aposento" ou "cômodo", pois os personagens não estavam no "quarto". Foi um deslize do tradutor, que a revisora, mais uma vez, não percebeu. Na página 250 a falha se repete: o correto, no contexto, seria usar "recobrar a consciência", mas o tradutor (ou a autora, talvez, e, se for isso, cabia uma nota de pé de página) usou "aparecer": "Dê a ela um chá bem quente ou um café assim que ela aparecer", o que é estranho, pois a pessoa, ferida e desacordada, está ali, diante do personagem que fala.

Na página 257, esta frase quase surreal: "É um bastante esquisito". O "um" está sobrando, claro! Na 261, tradutor e revisora parecem desconhecer que "e" mais "não" resultam em "nem": "Os inocentes não devem sofrer e não podem sofrer". Ora, vamos escrever mais preciso e simples: "Os inocentes não devem sofrer nem podem sofrer".

O fato de esse não ser o primeiro livro deste tradutor a apresentar falhas semelhantes me faz supor que, muito embora ele domine o idioma original da obra, possui deficiências quanto ao registro do português, ao passo que os revisores da L&PM, por sua vez, não estão fazendo seu serviço direito, o que só contribui para arranhar o prestígio tanto da editora quanto dos seus profissionais envolvidos, sem falar no que, por rebarba, vai resvalar na autora, já uma vítima constante de julgamentos equívocos.

domingo, 16 de março de 2014

AS AVENTURAS DE NICOLAU & RICARDO

Fazer literatura policial não é fácil. São ingênuos os que acham que o gênero policial é uma arte menor e de fácil acesso, em termos de criação. Seus aspectos bem específicos e suas leis quase inalteráveis exigem que o autor, ao mesmo tempo, incorra em repetições e promova algum tipo de variação ou renovação. Neste aspecto, é sempre um caminho menos árduo enveredar pelo conto ou mesmo pelo miniconto. Foi o que fiz, por alguns anos, com os personagens Nicolau & Ricardo, cujos textos enfeixo agora em As aventuras de Nicolau & Ricardo: detetives (Penalux, 2014). O volume reúne duas temporadas (como nas séries de tevê) de 22 minicontos cada. O tom é de humor e farsa, e as histórias, muito breves, estruturam-se como pretextos para que os detetives desfiem sua verve e sua ironia, promovendo no leitor um duplo interesse: pela solução do crime e pela paródia ao gênero de mistério. O lançamento será dia 4 de abril, na RV Cultura e Arte, Rua Barro Vermelho, 32, Rio Vermelho, Salvador, BA, das 18:30 às 21:00. Pedidos de fora da Bahia podem ser feitos diretamente à editora Penalux.

domingo, 2 de março de 2014

A ILHA NO ESPAÇO

Esta novelinha de Osman Lins é uma das mais interessantes incursões de um autor brasileiro no gênero do suspense. A trama, desde o princípio, se apresenta como um enigma, que, pelos aspectos e motivos explorados, conduz a uma experiência fantástica ou de entrecho policial. Num condomínio residencial, ocasionalmente aparecem moradores mortos em circunstâncias estranhas. A polícia não consegue desvendar as mortes, e pouco a pouco os moradores debandam do prédio, no qual resta, ao fim, um único morador, Cláudio Arantes Marinho, abandonado pela esposa e pela filha, à espera da morte. Até que, um dia, ocorre-lhe uma grande ideia: desaparecer sem deixar vestígios, livrando-se, a um só tempo, daquela situação absurda e da própria família, que impiedosamente o descartou. Mal sabia ele que, ao ter êxito, desvendaria as insólitas mortes e, de quebra, puniria o responsável. (Ler a postagem na íntegra)

domingo, 16 de fevereiro de 2014

OS AMORES DA PANTERA

Um romance, como gênero narrativo, será sempre a representação de um tempo e de um lugar. Os costumes de uma sociedade, os hábitos de um grupo. Não importa que pareçam hoje, ao nosso olhar, anacrônicos ou imprecisos. Sendo ou não verdade o seu assunto, feita a representação romanesca, torna-se a trama um relato e uma realidade possíveis, de modo que, durante a leitura, possamos voltar àquele espaço e compreendê-lo e aos seus indivíduos, que circulam em seu momento como numa eternidade.
 
Em cores impressionistas, é este o efeito que nos transmite a leitura do romance Os amores da Pantera, de José Louzeiro.  Recriação de um dos mais célebres crimes ocorridos do âmago da alta sociedade carioca, seu relato não se contenta em reproduzir a verdade e a representa em tons artísticos, eminentemente literários, obtendo, assim, uma perenidade que poucos romances, e ainda mais os policiais, alcançam. Não somente acreditamos no que lemos como nos sentimos incomodados com suas cenas mais corajosas e violentas.
 
Podemos dividir, para efeito de análise, Os amores da Pantera em três partes: a festa, durante a qual, em meio a um alto consumo de drogas e excessos sexuais, duas moças são assassinadas, como prelúdio do que vai acontecer; a vida, período em que os personagens presentes àquela festa voltam "limpos" ao cotidiano comum, muito embora conscientes de que não serão mais os mesmos, depois de tudo o que aconteceu; e, por fim, a morte, consequência e síntese daquelas duas primeiras incursões, ou períodos, e ponto extremo a que a narrativa deve conduzir o leitor, renunciando a qualquer senso de justiça, pois, num país como o nosso, é assim que acontece: os criminosos ficam impunes, especialmente se integram determinadas classes sociais, como a esfera da política ou a "realeza" franqueada pelo dinheiro. 
 
José Louzeiro não põe maquiagem no fato. Mantém a Pantera como vítima de seus carrascos, mas não deixa de sugerir que, por sua conduta, ela teve igualmente a sua parcela de culpa. Quem não quer se afundar não se acerca da areia movediça. Se no crime americano da Dália Negra moviam-na a solidão e o desespero, no da Pantera, ao contrário, o que a faz se perder é o dinheiro e, em dosagem não menos decisiva, certo prazer pelo risco, alimentado por longas imersões alucinógenas e frequentes orgias.
 
Os criminosos ficaram impunes, mas a vítima, não. Tanto na vida quanto na literatura, há certa coerência nos fatos, sacramentada pela relação de causa e efeito. Qualquer passo dado ou a ausência dele levarão a um termo, a uma consequência. O provérbio não falha: se vou morrer nas montanhas, nem preciso ir lá. Foi esta a lógica da Pantera, que, em certo trecho da narrativa, a intui e não parece se abalar. A sabedoria do não-agir pode ter também as suas consequências nefastas. Ou nosso percurso sobre a Terra, nas palavras de Henri Borel, não é senão isto: "Um homem surge das trevas, sorri por um instante ao clarão da existência, e logo desaparece". Curta ou longa, a vida é a mesma vida.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

ELIZABETH SHORT, A DÁLIA NEGRA

Cartaz do filme, de 2006.
Há 67 anos, em 15 de janeiro de 1947, às 10:45 da manhã,  um telefonema anônimo de uma mulher conduz a polícia de Los Angeles a um terreno baldio entre a Rua 39 e a Av. Coliseu. A poucos metros da calçada, em meio ao mato tocado pelo vento, repousa o corpo despido de um moça de mais ou menos vinte anos, separado ao meio à altura do ventre. Como num filme de horror, ela apresentava um sorriso macabro, pois sua boca fora lascada quase de uma orelha a outra. Torturada, talvez ao longo de dias, com marcas em todo o corpo, fora, por fim, eviscerada, restando muito pouco dos seus órgãos internos para a análise dos legistas. Um detalhe surpreendeu a todos: além de cruel e impiedoso, o assassino era higiênico, pois lavou o corpo de tal modo, que não havia sequer uma mancha de sangue.

A moça era Elizabeth Short, de 22 anos, 1,60m, cabelos castanhos, nascida em Hyde Park, Massachusetts, EUA, em 29 de julho de 1924, sob o signo de leão. Estava em Los Angeles para se tornar atriz e ser famosa, uma estrela. Porque se vestia toda de preto, recebeu de vizinhos e transeuntes o apelido de Dália Negra. Desde que chegara a Los Angeles, mudava constantemente de endereço e procurava, junto a companhias masculinas, um romance, um sustento temporário e alguma oportunidade. Nada conseguiu, e qualquer um que a viu passar ou a usou pode ter se tornado o seu assassino.

Surpreendentemente, tudo o que se disse de Betty Short, desde que seu corpo foi encontrado, parece querer justificar o que lhe aconteceu, como se isso fosse possível. Foi dito que era confusa e volúvel, que estava em decadência, que apresentava temperamento impulsivo e não passava de uma sonhadora. Assegurou-se, ainda, que ela sentia medo, todo o tempo. Um medo de si mesma, talvez. Em sua correspondência, foram encontradas muitas cartas, algumas que ela jamais enviara, e outras que recebera. O tema era um só: o amor. E o tom, de desespero, perda, frustração, desesperança, derrota, dela para os remetentes, e destes para ela. Concluiu-se que Betty era uma moça angustiada e insatisfeita.

Todo o seu percurso em Los Angeles foi remontado, e se descobriu que ela estava sempre em trânsito. Não parava, nunca. Movia-se de um hotel para outro, de um bar para outro, na companhia de homens, mulheres e, não raro, sozinha. Um dos seus historiadores arremata, imbuído, talvez, do desejo de não deixar dúvidas quanto ao fato de que ela mesma cavou sua morte: "Incapaz de classificar pessoas e acontecimentos com discernimento, precipitava-se, com rapidez crescente, para a sua própria destruição".

O suprassumo desta teoria é o bilhete anônimo que chegou à delegacia, no curso das investigações. Depois de duas ou três frases de bravata, aquele que se denominava o Vingador da Dália Negra, e que escrevera algumas vezes à polícia,  rabiscou: "A morte de Dália foi justificada". O que ela fez e como fez justificaria que tivesse sido torturada, estuprada, sodomizada, retalhada, eviscerada, cortada ao meio, e ainda tivesse a boca rasgada de orelha a orelha...

A morte de Elizabeth Short sempre será um enigma, mas sempre será, sobretudo, uma ignomínia sem explicação nem justificativa.

sábado, 28 de dezembro de 2013

O NATAL DE POIROT

L&PM, 2011, a mais recente edição.
Neste romance de Natal de Agatha Christie, dedicado a um amigo que a acusou de ter refinado o crime em demasia, a autora transforma seu principal personagem, Hercule Poirot, num simples colaborador ou assistente de dois policiais que investigam o assassinato de um chefe de família tirânico e milionário, numa enorme casa de campo. A narrativa começa antes do Natal e o atravessa, em etapas que marcam a preparação do crime, sua execução, a investigação, o inquérito e, finalmente, sua solução, mais do que excêntrica, pois é uma das mais inventivas saídas da imaginação fértil da Dama do Crime.  Nove pessoas são suspeitas, entre as quais os quatro filhos do morto, sua neta e as esposas daqueles. A investigação pouco esclarece, as provas são poucas, e caberá a Poirot, que, como Maigret, de Simenon, não se prende apenas às evidências comuns, solucionar este que é um dos melhores casos arquitetados por Agatha Christie.  A abertura de O natal de Poirot, fluente e poética, e que prenuncia um caso de amor, deve ser lida em voz alta, em favor da autora, não raramente acusada de escrever simples literatura de consumo ou entretenimento. Aqui, as palavras são quase mágicas, e evocam atmosferas, climas, sentimentos. Ótima leitura, especialmente para um Natal diferente, mais sanguinolento que de hábito, afinal de contas estamos no Brasil.

domingo, 27 de outubro de 2013

FOGO NA CARNE, DAVID GOODIS

O número 655 da Série Policial, da saudosa editora Tecnoprint Gráfica S. A., é Fogo na carne (Fire in the flesh). E confirma o que dissemos em postagem anterior: David Goodis vem sendo publicado no Brasil desde pelo menos os anos 1960, talvez meados do anos 1950. A dificuldade de encontrar estes livros está em que as edições eram de bolso, populares, em papel ordinário, à venda em rodoviárias, estações de trem, de bonde e aeroportos, bem como nas lojas da própria editora. No Rio de Janeiro, a principal loja da Tecnoprint ficava na Cinelândia, próxima à Perfumaria Carneiro. Em São Paulo, na Rua Conselheiro Crispiniano, 403, em frente ao Cinema Marrocos. Em Salvador, na esquina da Av. Sete de Setembro com a Rua Politeama de Cima. Havia ainda lojas em Belo Horizonte, Porto Alegre e Juiz de Fora, entre outras cidades. Hoje, não existem mais, a Tecnoprint transformou-se em Ediouro Publicações, que, nos últimos anos, abandonou as edições de bolso, tornou-se uma editora comum, igual a qualquer outra, sem nenhum diferencial, engolindo outras casas tradicionais, como a Nova Fronteira e a Agir. Nesta edição de Goodis, não há nenhuma menção a ano de publicação, nem aqui nem nos EUA. A editora, no entanto, esclarece que "Este romance é inteiramente novo, não tendo sido publicado ainda em português, sob nenhuma forma". E na capa esta a sinopse, breve, misteriosa, com a intenção de fisgar o leitor passageiro, em trânsito: "No turbilhão das chamas, ele buscava alguma coisa que não conseguia encontrar". Algumas horas ou minutos de leitura dentro do bonde, ônibus, trem ou avião, com David Goodis e seu Fogo na carne, que começa assim: "No beco calçado de paralelepípedos, e cheio de buracos, a moça tropeçava, ao correr, com a cabeça baixa, para enfrentar o frio cortante. Era fevereiro, em Filadélfia, a altas horas da noite, e o mercúrio descera quase a zero. A moça, porém, não estava preocupada com as condições meteorológicas; estava atenta a um som que vinha de longe. E, como o som se aproximasse, ela aumentou a rapidez da corrida. Era o som de sirenas". Uma abertura bem característica do estilo do autor: alguém em apuros, na noite, sob o frio intenso, a ameaça ao longe. Estamos fisgados. A tradução é de David Jardim Júnior.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

DUAS VEZES CAIN

Uma edição que constitui um dos mais felizes acertos de um editor de literatura policial no Brasil. Em 1984, na Série Mistério e Suspense, a Abril Cultural reuniu, nada mais nada menos, que os dois mais célebres e controversos romances do norte-americano James M. Cain (1892-1977): O destino bate à sua porta (The postman always rings twice, 1934) e Dupla indenização (Double indemnity, 1936). O curioso é que o primeiro ― também o primeiro livro de Cain ― comemorava cinquenta anos de publicado. Não há, porém, nesta edição, nenhuma referência ao cinquentenário.
Ambos narram histórias de assassinatos premeditados, e ambos reúnem esposas que, friamente, auxiliadas por seus amantes, se livram de seus maridos. O palco do primeiro é uma lanchonete de beira de estrada, enquanto, no segundo, é um trem em movimento, embora o crime tenha sido elaborado, com bastante antecedência, numa mansão de Hollywood, Califórnia. Em ambos tira-se proveito monetário da morte alheia, e em ambos o leitor se identifica com os assassinos, torce para que sejam bem sucedidos em sua empresa, não demonstrando a mínima consideração pelos que morrem e pouco se importando se os culpados serão punidos ou não. Tal inversão, ou perversão, de valores impôs às duas obras um destino a um só tempo duradouro e obsceno, pois são até hoje consideradas excessivamente pesadas e sem similares que se lhes equiparem, tampouco que as superem.
O racionalismo na preparação dos crimes e a frieza de sua execução ainda são capazes de chocar, mesmo que romances mais atuais e filmes bem mais apelativos no gênero invistam, ano após ano, em entrechos semelhantes. Talvez o estilo de Cain, cru e meio cínico, colabore em acentuar a brutalidade das duas histórias, autênticos estudos de comportamento dos indivíduos da moderna sociedade americana, presas fáceis do irrefreável desejo de enriquecer e conseguir, a todo custo, um lugar ao sol na tão badalada american way of life.
As traduções, ainda fluentes e fieis ao estilo do autor, são, respectivamente, de Evelyn Kay Massaro e Aldo Bocchini Neto. E a capa reproduz imagens do filme O destino bate à sua porta, de Bob Rafelson, com Jessica Lange e Jack Nicholson nos papeis dos amantes assassinos; simplesmente a quarta adaptação cinematográfica do livro, em quase oito décadas de ininterruptas edições. Ano que vem, aos 80 anos, o carteiro voltará a bater? Talvez.

Publicado originalmente na Verbo 21. 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

MAIGRET E A JOVEM MORTA

Publicado em 1954, Maigret et la jeune morte promove uma inesperada disputa entre o comissário Maigret e Lognon, o inspetor dito Mal-Ajambrado, que tem complexo de inferioridade e vive com mania de perseguição. Ao mesmo tempo que durante a investigação auxilia o comissário, Lognon tenta superá-lo e, desse modo, ser reconhecido como um excelente detetive, sem saber que na opinião de Maigret já o é. O pretexto para essa emulação é a história da jovem Louise Lamboine, que foge de casa em Nice e vai para Paris, onde, depois de passar por muitas privações, é assassinada na solidão de uma noite. Quem era Louise Lamboine? Por que foi morta? Quem a matou?  E por quê? O fim da competição entre os dois policiais é marcado por uma sutil ironia: a mesma pista que despacha Lognon para Bruxelas, atrás de um viajante improvável, permite a Maigret resolver o mistério ali mesmo, em Paris. O comissário, contudo, não se vangloria, pois Lognon não cometera nenhum erro: “não há curso de polícia que ensine a colocar-se na pele de uma jovem educada em Nice por uma mãe semilouca”. Mais que uma investigação policial, este romance apresenta um interessante estudo sobre a inadaptação ao mundo, o abandono e a dor de estar vivo.

Publicado originalmente na Verbo 21.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A PRIMEIRA INVESTIGAÇÃO DE MAIGRET

Nova Fronteira, 1983.
Embora publicado em 1949, já na fase intermediária da série Maigret, La première enquête de Maigret enfoca o caso inaugural do comissário, ainda um simples secretário, e se passa no ano de 1913. O jovem, inexperiente e indeciso Maigret se vê às voltas com um assassinato sem corpo nem evidências concretas, e em pleno seio da alta burguesia parisiense. A história começa com um grito numa janela, seguido de um disparo. A única testemunha do evento é um músico, que se tornará o primeiro assistente de Maigret e, sem dúvida, o seu único arrimo nessa história em que fica patente o tratamento diferenciado que se confere às classes sociais, mesmo num país de ideais libertários como a França. Pobres são pobres; ricos são ricos e mais alguma coisa: “Compreendia agora que não era uma simples questão de dinheiro. A partir de determinado nível de fortuna, não é o dinheiro que importa, e sim o poder”. Maigret é convidado por seu chefe a fazer uma investigação pró-forma, que não leve a nada. Ao fim, porque desobedece, é afastado do caso e ignorado por todo o corpo policial, como se fosse um ser invisível e inumano. Mas tem a sua recompensa: é promovido. E, assim, silenciado. O jovem Maigret aprende então, e bem cedo, que há concessão para tudo neste mundo e que a vida, como diria Machado de Assis, é só uma operação de créditos e débitos.

Publicado originalmente na Verbo 21.


terça-feira, 30 de julho de 2013

MEMÓRIAS DE MAIGRET

L&PM, 2006.
Neste relato, publicado em 1951, Simenon inova e se renova. Deslocando a narrativa da terceira pessoa onisciente e fria para a primeira, emotiva e confessional, o autor promove o acerto de contas do personagem Maigret com o seu criador, Simenon. Na ficção imaginada pelo autor, Maigret decide escrever suas memórias e começa exatamente pelo dia em que ele e Simenon se conheceram, no Quai des Orfèvres. A construção da pessoa Maigret por ele próprio, personagem, coincide com a desconstrução do autor, Simenon, rebaixado à condição de aproveitador e mentiroso. Como acontece a muitos leitores, Maigret se esquece de que, ao ser transformado em personagem, ele se tornou outra pessoa, um ser ficcional; que apenas serviu como matriz de outra vida, que não é mais a sua, e de outro ser, seu duplo, seu outro-mesmo. É só por isso, esse detalhe trivial, que a empreitada de Maigret fracassa. Mas não a de Simenon, que escreve um dos livros mais originais da primeira metade do século XX, e sobretudo no caso de personagem em série e de um gênero ― o policial ― que prima pela repetição, pela convergência a fórmulas e pelo cumprimento rígido de suas regras internas. O desfecho, irônico, envolve a Sra. Maigret, que preenche com seus bilhetinhos providenciais as lacunas de memória do marido, meio embaraçado com sua empreitada literária.

Publicado originalmente na Verbo 21.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

AS FÉRIAS DE MAIGRET

L&PM, 2004.
O comissário Jules Maigret, gozando férias em Sables-d'Olonne com a esposa, vê sua rotina mudar radicalmente quando a Sra. Maigret é hospitalizada às pressas para uma cirurgia. Este evento fortuito altera o cotidiano ocioso de Maigret, que, mesmo desinteressado dos acontecimentos que o enredam e insatisfeito com o rumo de sua diletante investigação, vai solucionar mais um mistério e agarrar mais um criminoso. Neste romance, publicado em 1948, e que é um dos melhores da série, Simenon reflete sobre as consequências do ciúme amoroso na vida de um homem, bem como sobre o aprisionamento a que o excesso de beleza pode conduzir uma mulher. Uma das melhores personagens do livro ― e em torno da qual toda a trama se constrói ― ironicamente não aparece nem para Maigret nem para o leitor. Quando afinal se obtém a chave que dá acesso aos seus aposentos íntimos, “onde se ouvia a respiração regular de uma mulher adormecida", o romance termina. Tal característica faz deste relato um dos mais simbólicos e subjetivos já escritos por Simenon.

Publicado originalmente na Verbo 21.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O ALVO MÓVEL

L&PM, 2007.
Com este romance, publicado em 1949, Ross Macdonald, considerado por muitos o autor que refinou o material deixado por Dashiell Hammett e Raymond Chandler, inaugurou a saga de Lew Archer, "um novo tipo de detetive", como ele próprio se define. O enredo é simples e foi por demais imitado, tanto por Macdonald quanto por seus epígonos. Lew Archer é contratado por uma ricaça para investigar o paradeiro de seu marido, que fugiu ou foi sequestrado. Tal empresa coloca Archer em contato com uma linda adolescente mimada, seu pretendente atlético, um advogado apaixonado, uma atriz decadente, um guru idiota e uma súcia de malfeitores, dispostos a qualquer ação para ganhar alguns milhares de dólares. O estilo de Macdonald é seco, direto, como Hammett, mas inclinado a reflexões, muitas vezes poéticas, à maneira de Chandler: "O dinheiro é a energia vital desta cidade. Se você não tem, só está meio vivo". Do primeiro, absorveu ainda a tendência a criar personagens ambíguos, pendentes entre o bem e o mal, a verdade e a mentira; do segundo, certa propensão à melancolia e à piedade. Outra das características marcantes dos romances e contos de Ross Macdonald é a movimentação constante. Archer jamais para, está sempre em movimento, ou de carro, o que é mais comum, ou a pé. O autor parece indicar com isso que, de uma vez por todas, os detetives abandonaram a dedução em favor da observação in situ. É no calor dos fatos que o mistério se esclarece. Além disso, um destino específico é reservado às mulheres, que deixam de ser meros coadjuvantes, objetos de prazer ou motores de desejos fatais e interferem diretamente na trama, ou com ações e reações ou através de falas que enriquecem a narrativa ou a desviam do curso comum: "Gostaria de não ter dinheiro nem sexo. Para mim os dois dão mais problemas do que valem", dispara uma das mulheres de O alvo móvel, que inspirou o filme Harper (1966), com Paul Newman interpretando o detetive. Para os leitores que apreciam começar do princípio, este é o livro de entrada para o universo das investigações nada ortodoxas de Lew Archer.

domingo, 7 de julho de 2013

A CASA DO PENHASCO

L&PM, 2011.
Hercule Poirot, já aposentado, passa os dias ensolarados de verão no litoral da Cornualha. Hastings, de volta de uma longa temporada na América do Sul, encontra-se ao seu lado e o auxilia a resolver o enigma do assassinato de uma jovem, prima da proprietária da Casa do Penhasco. Supostamente, a moça foi morta em lugar da prima, que vinha sofrendo atentados, um dos quais na presença de Poirot. Em trama bem urdida, e cheia de surpresas, Agatha Christie consegue, com A casa do penhasco (Peril at end house), publicado em 1932, deter a atenção dos leitores e, ao mesmo tempo, desafiar a sua perspicácia. Numa situação em que todos os envolvidos são potencialmente suspeitos, apontar o criminoso é tão difícil para o leitor quanto para Poirot, que, em alguns momentos, sente-se impotente e ludibriado, a ponto de proferir o seguinte desabafo metalinguístico: "Por que ninguém nunca tem certeza de nadaNos livros de detetives, tudo é líquido e certo, claro. Mas a vida real é uma eterna confusão. Será que eu mesmo tenho certeza de alguma coisaNão, não, mil vezes não!" Sem chegar a ser um dos romances mais celebrados da autora, A casa do penhasco proporciona, sobretudo aos leitores aficionados pelo gênero, algumas horas de autêntico prazer.  

domingo, 30 de junho de 2013

OS CRIMES ABC

L&PM, 2010.
Os crimes ABC é uma das melhores e mais populares obras de Agatha Christie. Muito de sua fama como A Dama do Crime se deve a este livro, O assassinato de Roger Ackroyd (1926), O caso dos dez negrinhos (1939) e às peças A ratoeira (1952) e Testemunha de acusação (1953). Publicado em 1936, dez anos após Roger Ackroyd, Os crimes do ABC diverge dos demais livros com o personagem Hercule Poirot, pois, em lugar de o detetive colocar sua inteligência a serviço da solução dos crimes, ele deve usá-la para evitar que assassinatos pré-anunciados em ordem alfabética sejam cometidos. Em ritmo trepidante, que lembra os filmes atuais de ação, Poirot, seu fiel amigo Hastings e a polícia britânica saltam de uma cidade a outra à caça do assassino. Ao fim, aparentemente solucionados os crimes e preso o criminoso, algo intriga Poirot, que, argutamente, emborca a panela e mostra que a realidade não passa de simples aparência, numa referência indireta a Platão, também citado numa fala-chave da narrativa: "Normalmente é quando estamos falando sobre as coisas que parecemos vê-las com clareza. A nossa mente às vezes se fecha numa ideia sem saber como isso aconteceu. Conversar leva a muitas coisas, de um jeito ou de outro". A dialética é o princípio de toda compreensão. Que belo filme de serial killer não daria esta obra, se houvesse mais leitores sérios e sem preconceito com relação à Dama do Crime; e se ela, muito embora sua popularidade, não estivesse restrita a um grupo de leitores aficionados do gênero policial, numa época em que qualquer picuinha política ou do mundo dos espetáculos (incluindo o esporte) tem muito mais importância do que uma boa história. 

segunda-feira, 10 de junho de 2013

NOITE SEM FIM

Capa: Victor Burton.
É provável que Noite sem fim (Endless night, 1950) não seja um dos 10 romances favoritos da imensa legião de leitores de Agatha Christie. Tampouco é provável que seja um dos mais comentados pela crítica especializada. Aliás, este é um livro incomum, tanto se avaliado em face do estilo da autora quanto a partir das regras do relato policial de mistério, que a tornou a mais cultuada escritora do gênero em todos os tempos. Noite sem fim é, grosso modo, uma história de amor. Narrado em primeira pessoa, reúne uma jovem milionária e um motorista, que se conhecem, se casam e vão morar no campo, numa casa construída especialmente para eles. É ali que, em convivência, surgirão os primeiros problemas de adaptação com os supersticiosos habitantes do local e, por fim, uma morte. Os detetives recorrentes da autora não comparecem para solucionar o crime, que fica a cargo da polícia do lugar, e boa parte da história se passa durante o cotidiano do casal. Obviamente que, se não houvesse uma surpresa final, não seria um livro de Agatha Christie. E a surpresa causa impacto no leitor, que fecha o livro com um certo mal-estar, sentindo-se, digamos, ludibriado. Todavia, todos os autores fazem isso, mais cedo ou mais tarde, em especial aqueles que produzem em larga escala e com os quais os leitores se mantêm vigilantes, sedentos, à espera da próxima obra. Descansam de seu método ou de suas incursões mais frequentes. Foi, a meu ver, o que sucedeu a Agatha Christie com Noite sem fim. Ela saiu de si mesma para tentar escrever uma obra livre de amarras e com a qual pudesse exercitar a imaginação, o que não deixa de atestar seu virtuosismo. E Noite sem fim é, sem dúvida, uma de suas obras em que ela mais se detém em reflexões pessoais do narrador e análises do mundo à sua volta: "Ninguém reconhece na própria vida, a não ser tarde demais, os momentos que são realmente importantes". Se tivesse se mantido nos trilhos de um entrecho mais policialesco, isso não seria possível. E só o foi porque ela se permitiu variar.

terça-feira, 4 de junho de 2013

UM ASSASSINO ENTRE NÓS

L&PM, 2007.
"Eunice Parchman matou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever", assim começa um dos melhores romances policiais de Ruth Rendell: Um assassino entre nós (A judgement in stone, 1977). É uma história cujo desfecho já se conhece, enunciado na primeira frase, portanto a narrativa se concentra nos fatos que conduzem ao crime e suas consequências. É um relato policial de ação. Não se fixa propriamente na investigação do assassinato, mas na tentativa (e tentação) de se compreender por que uma empregada doméstica, aparentemente pacífica e eficiente no seu trabalho, comete uma chacina contra seus patrões, matando a sangue frio quatro pessoas com as quais ela convivia diariamente e que a respeitavam. Dizem que os cegos confiam em todos, e os surdos, em ninguém. Quem não lê nem escreve talvez seja como um surdo na escuridão: sofre com uma dupla desconfiança, pois não tem meios imediatos de compensar sua deficiência. E, incomodado, apreensivo, envergonhado, só lhe restam duas opções: ou se corrige, alfabetizando-se (mas para isso precisa confessar-se), ou elimina as pessoas que o fazem diferente e inferior. Foi esta a escolha de Eunice Parchman. Matou aqueles que a faziam sentir-se complexada, por não poder decifrar as palavras, nem com elas, através da escrita, transmitir suas ideias. Matou para manter intacto o seu humilhante segredo.

terça-feira, 28 de maio de 2013

MAIGRET E O MAIO CORAL

Porto Alegre: L&PM, 2004.
Alguns amigos, às vezes, me perguntam por que todo este meu fascínio pelos livros com o comissário Maigret e, mais ainda, por Simenon. Ora, porque em Simenon a história pouco interessa, ou é mais um crime (relatos com Maigret) ou mais um drama familiar (os romances duros). O mais importante em Simenon é a forma, especificamente o seu estilo, fluido, absorvente, encantatório, e sua tendência a, quando abandona a objetividade, pintar a vida, a vida mais trivial, com pinceladas de poesia. Em Morte na alta sociedade (Maigret et les vieillards, 1960), o início é um dos mais bonitos que ele já escreveu e bem representativo do seu estilo.

"Era um glorioso mês de maio, desses que a gente vê apenas duas ou três vezes na vida e que têm o esplendor, o sabor e o perfume de lembranças da infância. Maigret chamou-lhe um maio 'coral'. Lembrava-lhe, ao mesmo tempo, sua primeira comunhão e sua primeira primavera em Paris, quando tudo parecia novo e maravilhoso.

"Na rua, no ônibus, no escritório, acontecia-lhe parar de repente, tocado por um som distante, um sopro de ar tépido, a cor viva de uma blusa de mulher que o levavam de volta à magia perdida de vinte ou trinta anos atrás.

"Ainda na véspera, ao saírem para jantar com os Pardon, a sra. Maigret lhe perguntara, enrubescendo, confusa: Não fico ridícula, na minha idade, com um vestido assim, estampado de flores?

"Nessa noite, os Pardon inovaram. Ao invés de convidá-los ao apartamento, levaram os Maigret a um pequeno restaurante do Boulevard de Montparnasse, onde os quatro jantaram no terraço.

"Os Maigret trocaram olhares cúmplices. Pois ali, naquele mesmo terraço, os dois tinham jantado pela primeira vez, há quase trinta anos."

Poucos romances policiais se abrem com tanta vida e tanta informação aparentemente sem importância. Poucos também exalam tamanha poesia e apresentam tanto, em tão poucas linhas, sobre os personagens e o ambiente que os cerca.

Temos a representação da primavera em Paris, o fascínio que esta estação promove em Maigret; o caráter sagrado, simbolizado pela lembrança da primeira comunhão e da infância, e o profano, pela recordação da primeira primavera em Paris... Penetramos os sentidos de Maigret, que vê tudo de outra forma e inclinado às cores, percebe os odores e ouve os sons mais cotidianos com uma percepção nova. E, por fim, adentramos a intimidade do casal, suas relações sociais, seu amor de muitos anos e suas lembranças de quando jovens.

A história policial ainda não começou, mas já começou, pois um crime vai acontecer e macular a beleza daquele maio, que o comissário Maigret chamou, poeticamente, um maio coral.

Também publicado na revista Verbo 21. A tradução do texto de Simenon é de Raul de Sá Barbosa.

domingo, 26 de maio de 2013

A COLEÇÃO VERTIGO CRIME

Capa: Lee Bermejo. New Pop, 2012.
No âmbito dos quadrinhos policiais, um dos destaques de 2012 foi a publicação da coleção Vertigo Crime, pela New Pop Editora, com seis títulos em catálogo no Brasil: Calafrio, Morte no Bronx, A cidade da neblina, O executor, A rica indecente e Área 10. Os roteiros são razoavelmente bem articulados, dentro da tradição dos relatos policiais de origem norte-americana e francesa, e os desenhos, ágeis e vistosos, apresentam certa ousadia. Alguns, inclusive, chegam a empolgar o leitor, como Morte no Bronx, com traços que sugerem uma leve influência de Will Eisner, e buscam um diferencial mais artístico, menos aferrado aos anseios de objetividade e realismo da indústria dos quadrinhos.

Vejamos agora um resumo de cada um dos gibis. Calafrio é uma história de assassinato em série, mas com uma deliberada incursão pelo fantástico. A arte de Mick Bertilorenzi é um primor e desenvolve com arrojo o estranho mundo apresentado pelo roteiro de Jason Starr. É, de todas, a trama mais sensual, com imagens de um erotismo franco e sem pudor. A cidade da neblina, talvez a mais noire das seis histórias, pela reprodução dos aspectos que consagraram tal gênero, envereda, no entanto, por questões mais contemporâneas, como homossexualidade e tráfico de imigrantes. O roteiro, de Andersen Gabrych, parece às vezes meio confuso e forçado, defeitos compensados pela arte de traços caricatos, muito embora convencionais, de Brad Rader. Morte no Bronx é a história de um escritor atormentado pelo desaparecimento de sua esposa, com roteiro instigante e fluido de Peter Milligan, e arte sedutora de James RombergerA rica indecente reelabora um dos assuntos recorrentes da narrativa policial, com roteiro assinado pelo aclamado Brian Azzarello: empresário rico designa empregado para vigiar e proteger sua filha, uma jovem tão bela quão perigosa. A arte, de Victor Santos, é burlesca, alternando humor e drama, claro e escuroÁrea 10 é mais uma trama de serial killer, mas introduz temas oriundos da psicologia e da medicina experimental, enriquecendo-se e ao leitor. A arte de Chris Samnee é a menos empolgante das seis, limitando-se à eficiente exposição visual do roteiro de Christos N. Gage. Em O executor, o roteiro (Jon Evans) e a arte (Andrea Mutti) pecam por não seduzir o leitor. O primeiro soa inconvincente, e a segunda, funcional demais, destituída de qualquer audácia. A trama, meio débil, devolve um ex-atleta à sua cidade natal, onde ele reencontra seus antigos colegas de escola, todos de alguma forma envolvidos nos crimes que, nos últimos anos, abalaram a região.

O projeto gráfico é bonito, a impressão em papel branco de 90g é perfeita, e os volumes, no formato 14x20cm, são fáceis de manusear e guardar, como livros. As capas, contudo, assinadas por Lee Bermejo, são horrendas, sem qualquer atração, nem em traço nem em cor, exceção talvez a de A rica indecente e a de Calafrio. Em todos os volumes, há erros aqui e ali, alguns bem graves, como a troca dos autores por outros na quarta capa de Área 10. E o português, de responsabilidade de Ana Luísa Casas! É cada frase mal feita, cada construção bizarra, mesmo quando a intenção é ser coloquial, que passa pela cabeça do leitor sugerir que a mocinha seja devolvida, com urgência, ao curso primário. Faltou um bom revisor à editora, que, infelizmente, confiou demais na competência da tradutora.

Recomenda-se a leitura sobretudo de Morte no Bronx e Calafrio. O primeiro capítulo deste último, aliás, tem uma das mais bonitas aberturas dos quadrinhos atuais. Da página 5 à 20, o leitor vibra, se excita e se comove, sem saber que está diante de uma história a um só tempo sensualíssima e imponderável. 

terça-feira, 21 de maio de 2013

INSTINTO SECRETO OU MR. BROOKS NO CÉU

O fascínio dos leitores ou espectadores por Dexter e Ripley, para citar apenas dois dos mais célebres heróis-assassinos, advém do fato de que todas as pessoas alimentam a fantasia de guardar, sob muitas capas e máscaras, um segredo terrível, que chocasse a família, os amigos, o mundo. Ou seja, através destes personagens damos vazão aos nossos desejos secretos e nos expurgamos para uma vida mais limpa entre os mortais. Nesta linha, um filme surpreendente é Mr. Brooks (2007), que recebeu no Brasil o manjado título Instinto secreto.

O Sr. Brooks é rico, bem-sucedido, bem-apessoado, bom marido, bom pai e bom patrão. Jamais perde a paciência ou sai da linha. É um negociador nato. Sabe quando falar e o que falar, sem que ninguém saia ferido do diálogo. Tem, portanto, uma ficha incorrigível. E, talvez por isso, necessitasse de um segredo, um vida dupla: ele mata por vício, em busca de prazer, como qualquer outro jogador. Estuda as vítimas, sempre pessoas desconhecidas, fora do seu cículo pessoal ou profissional, pessoas quase achadas ao acaso, e numa noite previamente marcada invade suas casas e as mata, num ritual bárbaro mas viciante, pois lhe confere enorme satisfação, a ponto de levá-lo quase ao orgasmo. De repente, por força das circunstâncias, e por ironia da trama, obviamente, ele passa a matar por necessidade, o que demonstra que ele não era assim tão autossuficiente. É como se um ser maior, pai espiritual do Sr. Brooks, decidisse intervir para lhe interpor uma parede entre sua condição de ser humano e a possibilidade divina, com a qual todo homem muito poderoso acaba por flertar, mais cedo ou mais tarde, para tão somente sentir o peso e tombar.

A narrativa costura habilmente cinco destinos, todos manipulados com cruel maestria pelo Sr. Brooks, mas que serão, afinal, o seu calcanhar de Aquiles: sua filha Jane; o Sr. Smith, o bobalhão da história; a detetive Tracy Atwood, encarregada de investigar os Crimes das Digitais; seu ex-marido, do qual está se divorciando com visíveis perdas financeiras; e o bandido que ela mandou para a prisão e que agora, depois de fugir, pretende matá-la. Ao fim, o Sr. Brooks, mais do que nunca, atinge o patamar de demiurgo, a conduzir os cordões de suas marionetes e ler nos jornais as consequências benéficas de seus feitos. Contudo, na cama, ele não é mais o mesmo. Sonha, e seus sonhos são ruins. Não seria demais cogitar que ele agora sofre, de fato, porque sente culpa. Porque o que era vício, um jogo apenas, tornou-se necessidade, paixão, e ele foi obrigado, a sangue e segredo, e com alguma empáfia, a esculpir destinos, entre os quais o seu e o de sua filha. Talvez, ao atingir esta condição, mais próxima de Deus, o Sr. Brooks tenha enfim compreendido sua fraqueza de homem e chegado, por ele mesmo, à cura do seu vício.

Com fotografia noire, ritmo ágil, mas sem exageros, cenas de ação com pretensões estéticas, roteiro irônico, boa direção (de Bruce A. Evans) e performances satisfatórias de todos os atores, Mr. Brooks é um espécime do gênero policial que, passado algum tempo, voltamos a assistir por e com deleite, já sabedores do desfecho e buscando, no curso dos acontecimentos, a coerência de suas afirmações, por mais perversas que sejam.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

CLÁSSICOS SCI-FI | AS POSSUÍDAS

As possuídas, de Ira Levin (São Paulo: Círculo do Livro, 1987; há uma edição mais recente, de 2004, pela Bertrand Brasil, com o título Mulheres perfeitas, que, infelizmente, entrega muito da história), constitui uma ousada metáfora do automatismo das relações, sobretudo entre os cônjuges. Ao ironizar a excessiva dedicação das mulheres ao lar e a expectativa masculina de dominação das esposas, insere-se na linhagem de obras destinadas a levantar as feministas e fazer pensar os machões. Mas sem panfleto, com a elegância que só os grandes clássicos alcançam. O estilo do autor é uma atração à parte: contido e envolvente, límpido e irônico, semeia pela narrativa (não raro, através da fala de um homem) provocações como esta, "Gosto de ver as mulheres no desempenho de pequenas tarefas domésticas", afirmação que representa, de uma feita, um elogio sensual e um indisfarçável desejo de condenação. Inspirou dois filmes. Destaque para Esposas em conflito, de 1975, dirigido por Bryan Forbes, tão controverso e cultuado quanto o livro.

Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da Verbo 21.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

JAMILE SOB OS CEDROS

"Pertenço sempre a Omar." (Jamile)
Jamile, seu noivo Khalil Khoury e, de repente, durante um passeio de verão, Omar. Os olhos de Jamille e Omar se encontram e, num tempo único, deles próprios, e que talvez seja a eternidade, mesclam-se, numa união que vai mudar suas vidas e, consequentemente, a do noivo preterido, narrador da história. Este é o argumento de Jamile sob os cedros, uma história supostamente verídica passada no Líbano do século XIX e que inspirou o escritor francês Henry Bordeaux (1870-1963) a escrever um de seus melhores romances. Embora seja uma história de amor, em que os amantes, arrebatados, tudo fazem para ficar juntos, é igualmente um relato policial, pois envolve perseguição, prisão, julgamento, condenação e execução. Semelhantes a Romeu e Julieta, cujas famílias eram inimigas, Jamile e Omar estão separados pela fé, pela raça e pelas tradições que estas duas condições impõem. Ele é muçulmano, e ela, maronita. No período da narrativa, segunda metade de século XIX, os maronitas formavam uma comunidade árabe cristã ligada à Igreja Católica desde o século XII, regida por uma patriarcado autônomo, com sede no Líbano. Neste contexto, os enamorados não poderiam se amar, muito menos casar. Mas ela foge com ele, e seu ato, de amor, deflagra um abalo que vai atingir a todos os envolvidos. Uma punição é preparada pela família da moça e tem que ser imposta, mais cedo ou mais tarde, a qualquer preço. Esta é a história que lemos, numa velocidade de filme de ação, o que demonstra a modernidade de seu autor, bem como a qualidade da boa tradução de Mansour Challita, embora as falhas que o texto apresenta, aqui e ali. Aliás, esta edição, da Associação Cultural Internacional Gibran, merece uma postagem à parte, tanto pelos acertos quanto pelos equívocos. Leitura obrigatória para quem gosta de livros que abordam culturas divergentes da ocidental, quase sempre tomada como regra.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

QUATRO MULHERES E MAIGRET

Porto Alegre: L&PM, 2009.
De 8 de abril até ontem, li dez títulos com o comissário Maigret, do escritor belga Georges Simenon. Foram Maigret hesita (1968), Maigret e o fantasma (1964), Maigret e o cliente do sábado (1962), Maigret e a morte do jogador (1967), Maigret (1934), Maigret e o matador (1969), Maigret se defende (1964), Maigret e o mendigo (1963), Os escrúpulos de Maigret (1958) e A taberna dos dois tostões (1931). Os motivos para esta overdose de Maigret foram dois: as longas horas que tive de passar no hospital, em companhia de um parente doente, e o próprio prazer que a leitura de Simenon me proporciona, de modo que, tão logo termino um livro, tenho vontade de começar outro. O leitor de Simenon sabe que o que menos importa nas histórias com Maigret são as tramas. Diferentemente dos demais detetives ou investigadores dos relatos policiais mais tradicionais, Maigret não tem um método específico, segue sua intuição e desvenda os crimes observando o contexto em que ocorreram, não raro mergulhando no interior das pessoas envolvidas ou analisando os seus pertences íntimos. Mesmo assim, vamos tentar reduzir a uma ou duas linhas a trama de cada livro:

1) Maigret tenta evitar um assassinato que se anuncia no seio de uma família burguesa; 2) Maigret investiga o atentado a um policial fracassado, que está internado em estado grave; 3) um homem procura Maigret num sábado e lhe confessa que pretende matar a esposa infiel e seu amante; 4) Maigret investiga a morte de um jogador profissional, frequentador dos grandes cassinos da Europa; 5) embora aposentado, Maigret decide investigar o assassinato de um bandido, pois o suspeito do crime é seu sobrinho, lotado no Quai des Orfèvres; 6) Maigret investiga a morte de um jovem estudante de Letras, que tinha o hábito de gravar as conversas alheias em público; 7) suspenso de suas atribuições, sob acusação de ter molestado sexualmente a sobrinha de um ministro, Maigret perpetra uma investigação pessoal para se defender; 8) um mendigo sofre tentativa de assassinato, e o fato desperta em Maigret a desconfiança de que a vítima detém o segredo de algum crime antigo; 9) um casal procura Maigret para lavar a roupa suja matrimonial e desperta no comissário a certeza de que um crime está por acontecer; 10) numa Paris vazia, pois boa parte da população goza as férias de verão, uma pista leva Maigret à Taberna dos Dois Tostões, onde um crime deverá acontecer.

De maneira geral, os dez livros são de alto nível. Simenon era um virtuose. Dominava sua arte e não abandonava suas escolhas pessoais. Dificilmente escrevia um romance ou um conto que não estivessem acima da média geral. E, mesmo quando se limitava a escrever uma história policial, era diferenciado, porque não hesitava em criar situações reais, com atmosferas convincentes e personagens que pareciam saltar da vida comum para a dimensão das páginas. E seus climas, suas reflexões, os mergulhos psicológicos cheios de nuances e ambiguidades... a ironia, o sarcasmo, o humor... a pintura colorida de cenários vivos, bares, hoteis, ruas, praças, repartições públicas, os lares onde os dramas ocorrem com frequência e que, às vezes, conduzem ao crime, tudo isso colabora para fazer de seus livros documentos humanos que não resistimos bisbilhotar. Dos dez livros, somente um não me empolgou: A taberna dos dois tostões. Os demais são extraordinários, exatamente porque Simenon não admite escrever uma história ao acaso, sem um argumento preciso e que, de imediato, conquiste e impacte o leitor. Neste sentido, Maigret hesitaMaigret e o cliente do sábadoMaigret e a morte do jogadorMaigret se defende e Os escrúpulos de Maigret são os destaques, por causa dos argumentos de exceção que apresentam e por cunhar personagens femininas que, de simples coadjuvantes, se tornam protagonistas; incômodas, diga-se de passagem. Elas exasperam tanto o comissário com sua eloquência, seu silêncio e suas idiossincrasias, que, ao fim, em Os escrúpulos de Maigret, ele perde as estribeiras e, por pouco, não vocifera: "Que ela se f..." Quatro destas mulheres letais, e que se contrapõem à esposa que Maigret tem em casa, sempre pronta a recebê-lo com a melhor das intenções e o melhor prato, são Srta. Vague, Renée Planchon, Evelina Nahour e Gisele Marton. Uma secretária e três esposas, todas amantes. Que o leitor, ao ler, descubra e entenda os motivos. Não são poucos e não são banais.

domingo, 28 de abril de 2013

A NOVA TERRA

Uma nova Terra. Artificial, programada e que visa a se tornar antípoda da atual. São convidadas a integrá-la somente pessoas que possuam um mínimo de vínculo com seu planeta, de modo que laços não se partam, e sentimentos conflitantes não aflorem e atrapalhem a fundação daquela nova humanidade. É neste contexto que Clarisse é escolhida e acolhida, até que fica grávida e, nesta condição, mais sensível a tudo, torna-se uma voz dissonante. A vida perfeita que os líderes da nova Terra prometem tem seu preço, como tudo, e Clarisse pouco a pouco o compreende. Escrito por Walmir Ayala (1933-1991), que praticava com êxito muitos gêneros, este breve romance de ficção científica é uma surpresa, tanto pelo entrecho quanto pelas reflexões que apresenta. Se escrito em inglês ou francês, seria um livro cultuado, já com muitas edições e talvez até arrebatasse algum prêmio importante. Mas, sendo o idioma o português e o país o Brasil, ao que parece teve só esta edição (Belo Horizonte: Leitura, 2012) e muito mal cuidada. Os defeitos são inúmeros, desde negligência técnica ficha catalográfica centralizada, ausência da falsa folha de rosto, papel e capa grossos demais e opção por fonte sem serifa, o que dificulta a leitura até erros grosseiros de revisão. Sem contar o fato de que o leitor não sabe se é uma obra póstuma ou uma nova edição. Que o leitor releve, no entanto, estes percalços do editor Sebástian Justo e desfrute o que o livro tem de melhor: seu ótimo texto literário. 

Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da Verbo 21, em abril.

sábado, 27 de abril de 2013

TORMENTA

O escritor inglês Conn Iggulden é mais conhecido pelos seus romances históricos, especialmente Os portões de Roma, best-seller internacional. Em 2006 escreveu e publicou, por encomenda, em comemoração ao Dia Internacional do Livro, a noveleta Tormenta (Rio de Janeiro: Best Bolso, 2012). Classificada erroneamente como thriller ― gênero mais afeito ao cinema ―, constitui um relato policial de ação, envolvendo rivalidade entre irmãos e traição conjugal. É particularmente bem elaborada a forma como o narrador põe em choque o meio familiar, apático, protagonizado por David, e o mundo exterior, hostil, cujo representante, Denis Tanter, é tão forte e agressivo quanto o gigante bíblico Golias. Deste embate, surge a oportunidade de David se superar como indivíduo ou desmoronar definitivamente, ele, que desde a infância sofre com as ofensas e provocações alheias. Para que este breve relato compusesse um livro com 144 páginas, o editor optou por uma fonte enorme, para míopes, e usou um papel fino demais, quase transparente. Nem oito, nem oitenta. Com uma fonte menor e papel mais espesso, ficaria uma edição mais oportuna e vistosa, com mais ou menos cem páginas. Relevando-se tudo isso, porém, Tormenta é puro entretenimento, para se ler no ônibus, no trem, na fila do banco ou dentro de um café, diante de uma fumegante xícara de cappuccino ―, se a humanidade em volta permitir. 

Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da Verbo 21, em abril de 2013.

quinta-feira, 21 de março de 2013

O CAIR DA NOITE

Este conto longo de Isaac Asimov, agora publicado no Brasil em edição autônoma (Arte e Letra, 2012), foi eleito em 1964, pelos escritores de ficção científica dos EUA, o melhor conto de todos os tempos no gênero ― e talvez seja o mais popular do autor. Partindo de uma premissa inspirada numa citação de Ralph Waldo Emerson, narra o temor de um planeta que viveu um dia de dois mil anos e finalmente vai experimentar a noite, não menos extensa. Obviamente que, depois de um dia tão longo, e vendo se aproximar a escuridão, “esta desconhecida”, aquela “humanidade” só poderia supor que estava diante do fim do mundo. A trama se desenvolve nesta perspectiva, colocando em choque quatro pilares do conhecimento humano: a ciência (representada por um cientista), a mídia (por um repórter), a religião (por um místico) e o senso comum (o povo). Nas horas que se seguem até o ocaso dos seis sóis daquele planeta, crenças banais, temores óbvios, ambições inevitáveis e convicções transitórias grassam sua humanidade, fragilizada diante do desconhecido. A bela edição em formato de bolso e capa dura tem tradução (mal revisada, com um agravante parágrafo truncado) de Ana Cristina Rodrigues e prefácio de Marcello Simão Branco, que, a despeito da vontade de redigir um texto sem juízo de valor, não consegue evitar afirmações desta natureza e que só depõem contra o gênero: “Mesmo tendo sido um escritor apenas mediano do ponto de vista literário (...), Asimov influenciou como poucos o panorama da ficção científica”. Incauto, o prefaciador não explicita quais seriam os méritos literários não cumpridos pelo autor ou os defeitos frequentes nos quais incorre, e que, segundo ele, desabonariam o estilo de Isaac Asimov. É como sempre digo: para o Brasil, que pouco lê e muito se exibe, ou o escritor é Guimarães Rosa ou não é escritor. Lamentável, inclusive para os leitores, que ficam sem saber o que ler, pois temem não ler o que há de melhor.

Publicado originalmente em Crítica Rasteira, da revista Verbo 21, em fevereiro de 2013.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

NOSSO HOMEM EM HAVANA


O serviço de espionagem britânico, com o propósito de marcar presença na Havana pré-Fidel, recruta como espião um pacato cidadão inglês, o Sr. Wormold, proprietário na capital cubana de uma loja de aspiradores de pó. Ele não entende nada de espionagem, mal conhece o assunto, mas, por amor à filha de 16 anos, a quem, com o dinheiro da espionagem, poderá oferecer uma vida melhor, redige falsos relatórios e frauda evidências da presença dos soviéticos em Cuba. Paranoicos, como, aliás, todo o Ocidente na época, os ingleses acreditam em tudo que o Sr. Wormold lhes envia. Sua audácia suprema se dá quando, sem nada a oferecer aos seus patrões, ele desmonta um aspirador de pó, desenha suas peças internas, uma a uma, e depois lhes envia “sua arte”, alegando que eram aqueles os estranhos objetos que ele vira em determinado lugar da Ilha. O entendimento é que certamente eram russos e, muito provavelmente, grandes peças de um artefato atômico. Diz o ditado que, se quiser satisfazer a alguém, ofereça-lhe o que ele deseja ver. Irônico e bem humorado, Nosso homem em Havana (L&PM, 2007) é um dos melhores livros de Graham Greene (1904-1991), detentor de uma legenda rara entre os escritores: foi ele, ao mesmo tempo, um grande escritor, de estilo pessoal e reflexivo, e um autor popular, capaz de ser profundo, sem ser enfadonho, e “fácil”, sem abrir mão dos valores literários, num gênero polêmico como o policial. “Há muitos países em nosso sangue, não é verdade? Mas apenas uma pessoa. Seria o mundo a bagunça que é se fôssemos leais ao amor, e não aos países?”, reflete uma das personagens. Publicado em 1958, vertido para o cinema e com inúmeras edições em vários idiomas, este romance policial de espionagem tornou-se um dos mais célebres de seu autor, que fez da literatura um plenário para as discussões de seu tempo, sem jamais incorrer no panfleto.

Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da revista Verbo 21, em janeiro de 2013.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

VESTÍGIOS DA NUVEM DA MORTE

A obra de Sir Arthur Conan Doyle é vasta e variada. É um erro associá-lo, terminantemente, ao personagem Sherlock Holmes e suas aventuras de mistério policial. Conan Doyle dedicou-se também ao romance histórico, com relativo êxito, e ainda mais freneticamente aos relatos fantásticos e de ficção científica, dos quais uma de suas mais notáveis criações é A nuvem da morte (The poison belt). Grosso modo, seu argumento propõe o fim da humanidade, ameaçada de extermínio por um gás venenoso, presente num cometa de passagem pela Terra. Deter-me na trama implicaria revelar parte da história, o que poderia desestimular alguns leitores mais afeitos a inícios e conclusões. Portanto, vou me ater aos pormenores que me fizeram enxergar, neste livro, influências sobre alguns afamados filmes de ficção científica e até de suspense. Tais evidências me obrigaram a especular que este breve romance goza de muito mais prestígio entre os leitores de língua inglesa do que lhe atribuem as edições brasileiras, quase sempre destinadas ao público juvenil. Na minha edição (São Paulo: Nova Alexandria, 1994), em tradução do escritor e editor Rodrigo Lacerda, à página 94, lê-se: “Elas tinham sido dispensadas por seus aterrorizados professores e estavam correndo para suas casas quando o veneno agarrou-as em sua rede”. Um leitor atento, e que aprecia o melhor do cinema mundial, há de reconhecer nesta cena a origem de outra, de Os pássaros, quando as crianças abandonam a escola e correm, perseguidas pelas aves. Mais adiante, na página 98, reconhece-se na velha asmática que passou incólume pela tragédia promovida pela nuvem a fonte de inspiração de M. Night Shyamalan no desfecho de Sinais, ainda que indiretamente. No filme, o garoto só sobrevive ao veneno alienígena porque também é asmático. Na mesma página, logo a seguir, há um trecho que pode ter permanecido, em estado de suspensão, no inconsciente dos criadores de Extermínio, dirigido por Danny Boyle: “Quando nos aproximamos do rio Tâmisa, o bloqueio nas ruas aumentou e os obstáculos se tornaram mais espantosos. Foi com dificuldade que conseguimos atravessar a ponte de Londres”. Por fim, na página 113, percebe-se na evocação do sono, referido na fala de um dos personagens, o elemento norteador da trama de Cidade das sombras, de Alex Proyas. Além do mais, todo o entrecho de A nuvem da morte parece subsistir na construção de outro filme de Night Shyamalan, O fim dos tempos. Neste caso, creio que a sugestão é explícita ― ou não será uma pista o fato de que o filme se abre com nuvens, e a todo momento o vento é evocado? A loucura que acomete os personagens e os conduz ao suicídio parece cair do céu e, aos poucos, espalhar-se sob o efeito das correntes de ar. Conan Doyle talvez não imaginasse o poderoso alcance que seu relato teria, e nem talvez o escrevesse, se fosse este o propósito. Mas é evidente que seu vigor persiste na imaginação dos leitores e, eventualmente, vem à superfície da inspiração.