Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

domingo, 14 de outubro de 2012

SCARFACE HQ

Nesta adaptação para os quadrinhos do romance Scarface, de Armitage Trail, sobressai-se o talento do quadrinista francês Christian de Metter para a concepção nostálgica do universo noir, do qual o livro, publicado no fim dos anos 1920, é precursor e antecipa as grandes obras do gênero, de autoria de Chandler, Hammett, Goodis, Cain, Chase, os dois MacDonalds e mais alguns poucos autores. A adaptação é precisa e bem realizada, tornando a história veloz, enfática de imagens e composta das falas necessárias para o andamento mais visual que verbal da trama. Em busca da representação da Chicago daquela época, a capital americana do crime, De Metter banha seus pincéis de preto, azul, verde e amarelo, cores predominantes e sempre borradas por um indefectível "nevoeiro", que deixa as cenas constantemente embebidas de ambiguidade e mistério, mesmo as externas, à luz do dia, sob um céu amarelo (páginas 58-62). Percebe-se que a influência do cinema é decisiva, tanto mais que o romance inspirou um dos mais célebres filmes de gângsteres, Scarface (1932), dirigido por Howard Hawks e Richard Rosson, ao qual, volta e meia, os filmes contemporâneos do gênero retornam. Em algumas cenas, o rosto da atriz francesa Marion Cotillard parece ter inspirado a caracterização da personagem Jane Conley, a Porta-Armas, especialmente a partir da página 99. Publicada na França em 2011, a HQ Scarface saiu no Brasil no primeiro semestre de 2012, pela Editora Globo, na coleção Globo Livros Graphics.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O OUTRO GUME DA FACA


O outro gume da faca integra o volume de novelas de Fernando Sabino intitulado A faca de dois gumes, publicado em 1985 e que, rapidamente, em dez anos apenas, atingiu a 11ª edição, tendo sido reeditado, também, pelo extinto Círculo do Livro, em 1993. A popularidade do conjunto pode, grosso modo, ser atribuída a esta novela, uma das mais lidas do autor e que, além do mais, foi adaptada para o cinema com o título Faca de dois gumes. Muito embora compreenda um relato policial, sem muita tradição no Brasil, cujos leitores, quando se dedicam a ler obras do gênero, dão preferência aos autores estrangeiros ― alguns deles fortemente amparados pelo marketing editorial, tanto a novela quanto o livro foram muito bem recebidos pela crítica e pelo público. A trama, o autor arrancou-a do romance O assassino, de Georges Simenon, e, de forma a confessá-lo e, ao mesmo tempo, homenagear aquele que é, nos meios literários, o mais refinado dos autores do gênero policial, Fernando Sabino cria, ao fim do capítulo 5, o seguinte acróstico: Se Isso Me Era Necessário Ou Não. Aldo Tolentino, ao descobrir que sua mulher o trai com seu sócio, projeta matá-los e, num crime perfeito, ficar impune. Mas, no fluxo da vida, as coisas dificilmente saem como foram planejadas, e, se no romance de Simenon as consequências são de fundo psicológico, na novela de Sabino descambam para as peripécias cotidianas e existenciais, à maneira das grandes tragédias gregas, o que já está previsto na exemplar epígrafe que abre a novela, de autoria de Kierkegaard: “Ai daquele que sabe: há de pagar pela culpa de ter sabido pouco”. Em linguagem exata e analítica, fartamente dialogada, como é comum às novelas literárias, com ritmo veloz, quase hipnótico, irônica e implacável quanto ao que se propõe ― narrar as agruras de um humilde advogado vítima do adultério: “Agora que ele sabia tudo, tornava-se senhor da situação, capaz de dominá-la à vontade, sentia-se onipotente. Sabia tudo. Podia tudo” ―, O outro gume da faca é daquelas obras que esculpem a fama de qualquer autor e o projetam para além da crítica mais complacente, obrigando a mais ferina a parecer despeitada. Na edição em separata, publicada pela Ática, em 1996, e precedida por uma entrevista com o autor, este, ao resumir o espírito da novela, acaba por oferecer, tout court, uma definição para o relato policial de ação, em contraponto ao relato policial de mistério: “(...) nas histórias policiais em geral já se sabe qual o crime e procura-se descobrir o criminoso. No caso desta novela (...) pode-se dizer que se passa o contrário: o criminoso é conhecido, o que se procura descobrir é que espécie de crime cometeu ― se é que cometeu”. Ao longo da entrevista, Sabino expõe todo o seu conhecimento acerca do gênero policial e de outros, consideravelmente mais literários, mas que, ainda assim, narram um crime e suas consequências. Ao fim, ele afirma que, embora não tenha matado ninguém, O outro gume da faca decorre, de certo modo, de uma experiência pessoal, pois o escritor é, “como todo mundo, inconscientemente, um criminoso potencial”. A única exceção seria... Jesus Cristo! E, por isso mesmo, “olha só o que fizeram com ele...”. Na Obra reunida de Fernando Sabino (Nova Aguilar, 1996) ― O outro gume da faca está no volume 2, entre as páginas 845 e 885 ―, Reynaldo Bairão assim se refere a esta novela: “(...) é a mais realista, a mais próxima da literatura policial que estamos acostumados a ler. A trama é excelente. Parece correr sobre carretéis. A ação vai num crescendo admirável, até chegar a um final dramático, incongruente como a própria vida”. Fernando Sabino vive, a despeito de Ferreira Gullar, que no velório do autor o definiu como "escritor menor".

domingo, 7 de outubro de 2012

MISTÉRIO NO DISTRITO 87

Nesta edição brasileira de He who hesitates, publicado com título completamente anacrônico pela Editora Expressão e Cultura, em 1974, o texto da quarta-capa chama a atenção do leitor para o protagonista, que, psicologicamente abalado, espreita o Distrito 87 e chega a seguir, pelas ruas, o detetive Steve Carella, como se quisesse confessar-lhe um crime. E o editor conclui: "A história de um estranho crime. Uma história diferente, que, de surpresa em surpresa, levará o leitor a um desfecho que você ainda não conhece no gênero policial". A primeira indagação do leitor, acostumado ou não às leituras de narrativas policiais, é sobre o porquê deste texto. Simples: o editor, diante de uma obra que, como relato policial, não segue os padrões então estabelecidos, opta por uma convocação à leitura que vai, antes de tudo, exaltar a estranheza da história. De fato, a trama deste livro é singular, mas o é apenas porque não é um relato policial de mistério ou enigma, no qual a base da narrativa consiste em seguir os meandros da investigação. He who hesitates é simplesmente um relato policial de ação: o crime acontece diante do leitor, que se torna cúmplice do protagonista. Não há detetive, não há investigação, não há caçada ao criminoso. Se alguém julga a este, é ele próprio, que entra em crise de consciência. O capítulo 5, especialmente, apresenta páginas que despertam grande interesse, por colocar face a face, num relacionamento inter-racial, numa época em que tal aspecto ainda não era um modismo, um homem branco e uma garota negra. E é dos lábios da moça que saem as grandes tiradas: "Não sei como é um homem branco encrencado. Já vi muita gente de cor nessa situação. Aliás, se a gente é de cor, vive sempre numa encrenca, desde o dia em que nasce. Mas não conheço a aparência de um homem branco numa situação dessas. Não sei como ficam seus olhos". Ou, quando ele lhe pede que olhe para ele e diga se vê encrenca dentro de seus olhos: "Não, a não ser que eu mesma seja uma". Por fim: "É claro que minha mãe pode não gostar que eu leve pra casa um homem branco. Pode mesmo pegar a cantar uma velha canção que costuma cantar desde que eu era uma criancinha mimada: Filhinha, afaste-se do homem branco; ele só quer se meter nas suas calças e roubar sua virgindade". Como em quase todos os livros de Ed McBain que decorrem no Distrito 87, e mesmo neste, em que o Distrito é apenas entrevisto pelo olhar do criminoso, a esposa do detetive Carella aparece, sempre deslumbrante e sensual: "O detetive estendeu-lhe a mão, ela a segurou, levantou o rosto e os olhos para ele, um franco e amoroso sorriso iluminando-lhe a fisionomia. Nossa! Como era bela! O cabelo era negro, os olhos, de um castanho escuro, e ela sorria para o detetive com os olhos, a boca, o rosto inteiro, e depois ficou de pé a seu lado na calçada, beijou-o rapidamente na boca, não na face ou no queixo, mas um carinhoso e repentino beijo na boca". Ao observar esta cena, o criminoso conclui que Teddy Carella "sentia-se simplesmente felicíssima por estar com seu homem" e que ele jamais fora amado desta forma.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O VIGARISTA, DE ED MCBAIN

Neste romance, que é um dos primeiros da série do Distrito 87, a participação da esposa do detetive Steve Carella, Teddy Carella, é mais ampla e intensa, quase de protagonista. Embora seja muda e só se comunique através de sinais e bilhetes, ela é decisiva para a solução do enigma e fica, no desfecho, tête-à-tête com o assassino, que lhe diz, sarcástico, atraído por sua beleza: "Posso falar, você pode prestar atenção e eu não tenho que declamar poesias de amor. Você é sensual também. Água parada mas profunda". Além disso, é nesta aventura que Teddy Carella faz, no ombro, a primeira tatuagem de borboleta, sobre a qual, anos depois, no dia dos namorados, tatuará outra, maior, como símbolo de seu amor pelo marido. O início da trama envolve duas mulheres mortas,  encontradas no rio Harb com os corpos em avançado estado de putrefação. Em poucos dias, o detetive Carella se vê diante de um assassino serial que, além de tudo, assina suas vítimas com uma tatuagem. E, diferentemente de outras mulheres sacrificadas, que em geral são fatais e sedutoras, estas não chamavam a atenção dos homens por sua beleza. Isto direciona a investigação para uma evidência crucial: de que as vítimas foram mortas por um motivo preciso e específico, talvez monetário. Como todos os romances policiais do autor, O vigarista (The con man) não se detém apenas no entrecho policial. O narrador faz digressões, expõe fatos paralelos, analisa o contexto socioeconômico, que favorece o crime e a ação dos vigaristas, e até ironiza, metalinguisticamente, com os relatos policiais: "O crime anda solto pelas ruas, e aquele era um excelente dia para se cometer um assassinato. Os vigaristas que escrevem livros policiais não poderiam escolher um dia melhor, teriam imaginado exatamente assim: Uma chuvinha fina e cortante caindo sobre o rio Harb, um céu pesado e cinzento (...). Um close mostraria de repente uma mão saindo da superfície da água, os dedos rijos e esticados". Por outro lado, a história é também uma declaração de amor do detetive Carella à sua esposa, Teddy, sempre generosamente descrita por sua beleza e sensualidade. Tal aspecto não surpreende nem um pouco o leitor de Ed McBain, por saber ele que, como dizem os críticos, o autor praticamente inventou um tipo pessoal de romance policial, ao mesmo tempo fiel à tradição e em nada parecido com nenhum outro.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

SANGUE E GELO

Sangue e gelo (Ice) é comumente considerado um dos melhores romances de Ed McBain e até a sua obra-prima. A trama, tradicional, tem início com o assassinato de uma jovem dançarina loura, ao voltar para casa depois de deixar o teatro, onde se exibe na peça Fatback, sucesso da temporada. Sua morte é a primeira de muitas que vão requerer do Distrito 87 atenção total, durante a investigação. Ed McBain, que escreveu sem perder o vigor mais de 50 romances com os detetives do Distrito 87, tem um estilo único, uma mistura de Chandler com Simenon. Em muitas páginas, a investigação permanece em segundo plano, e a vida cotidiana dos detetives ganha relevo, o que acaba por conferir aos seus livros um valor que ultrapassa o simples relato policial. Em Sangue e gelo, especialmente, há o drama paralelo de uma policial cujo único trabalho na corporação é servir de isca para a detenção de estupradores e maníacos sexuais. Num arroubo de desespero e medo, ela chega a confessar, um dia, a um colega, que sonha em ser estuprada, de forma encenada, como no teatro ou no cinema... Ao passo que a trama se desenvolve, o leitor vai conhecendo os detetives e mergulhando em suas vidas, não diferentes das nossas, cheias de receios, dúvidas, traumas, sonhos frustrados e alguns raros momentos de felicidade, como o de Carella, que, no dia dos namorados, descobre que a esposa tatuou, sobre a tatuagem de borboleta que ela já possuía, uma outra borboleta, maior, simbolizando-o e sugerindo, entre eles, um amor perene e de inesgotável desejo sexual. De difícil classificação, por não constituir uma narrativa comum, e impossível de se resumir em poucas linhas, por reunir mais do que uma trama policial, Sangue e gelo proporciona uma proveitosa imersão no universo e estilo do autor, ao mesmo tempo que documenta o cotidiano das grandes metrópoles americanas, das quais a cidade, não nomeada pelo narrador, é uma gélida e legítima alegoria.

sábado, 22 de setembro de 2012

OS INTOCÁVEIS


Os intocáveis, de Boileau-Narcejac, pseudônimo forjado pela dupla de escritores franceses Pierre Boileau e Thomas Narcejac, é um claro exemplo do relato policial de ação. O romance conta a história de dois párias, intocáveis pela desonra: o desempregado Jean-Marie Quéré e o ex-prisioneiro Ronan De Guer. No decorrer da leitura, ficamos sabendo do assassinato do comissário Barbier, cometido dez anos antes por Ronan que, na época, era um ativista político. Após ser solto, este conta com a ajuda de um amigo da juventude, Hervé, para encontrar o paradeiro de Quéré, que, segundo Ronan, o delatou para a polícia, fazendo com que fosse preso e que a sua noiva, Catherine, grávida, cometesse suicídio. Portanto, há também uma investigação. Mas não exatamente como acontece no gênero policial de enigma. O detetive contratado por Hervé não procura o assassino do comissário Barbier, pois este já foi denunciado e punido. O leitor já conhece o assassino e a vítima. A busca é por Quéré, suposto delator. A intenção de cometer um novo crime é anunciada por Ronan desde o início da narrativa. E nós, leitores, acompanhamos toda a ação, nos convertemos em cúmplices do criminoso. E para este assassinato ― que acontece no ponto exato ― não há investigação, nem punição alguma, pois nada disso é necessário. O desfecho é totalmente previsível, como dizem alguns críticos, mas isto também não importa nem um pouco para os leitores sensíveis. O que, de fato, nos interessa é a angústia de Quéré, casado com Hélène, a quem conhecemos através das cartas que este envia para um amigo religioso. O que nos toca é a agonia de um homem desempregado, que se sente inútil e que desistiu da fé. O que nos desperta é a dor; e o desejo de vingança de um rapaz que perdeu a namorada e que apenas tem como meta a morte daquele que acredita tê-lo privado do sentimento que o guiava. O que nos emociona é o desespero, a paralisia de um antigo padre, que, consciente da sua existência absurda, deixa-se assassinar. O novo crime ou sua punição é o que menos interessa. E nem por isto o livro deixa de ser um relato policial genuíno. Apenas o seu tema central não é a elucidação de um enigma, mas, sim, o destino de duas vidas destruídas por um passado comum.

LIDIANE NUNES, uma infiltrada.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

CONTOS DE CRIME

Contos de crime: clássicos escolhidos, organizado por Flávio Moreira da Costa, é uma excelente amostra do que os grandes autores escreveram de melhor no âmbito da literatura policial. A criteriosa antologia ainda desmistifica a ideia de que o relato policial não é Literatura. Ora, se não é, por que Machado de Assis, Guy de Maupassant e Robert Louis Stevenson o praticaram? Para perder tempo e prestígio? Eis o mistério. Antes de expressar seu preconceito, o leitor deve criar seu conceito, e este livro apresenta uma oportunidade para que ele, despido de grilhões e correntes, julgue por si mesmo até que ponto a leitura de relatos policiais entretém, deleita e faz pensar. Entre os autores arrolados pelo organizador estão, além dos três supracitados: Fiódor Dostoiévski, Saki, Ambrose Bierce, Coelho Neto, Guillaume Apollinaire, Sir A. Conan Doyle, Edgar Allan Poe, Ryunosuke Akutagawa, Jacques Frutelle, W. W. Jacobs e Marcel Schwob. Supremacia maciça das literaturas de língua inglesa e francesa, nas quais o arco de recepção do texto literário é maior e mais afeito a considerar as diferenças como ganhos para a sensibilidade e para o conhecimento. Qualquer que seja a preferência do leitor, ou pelo relato de mistério, centrado na investigação do detetive, ou pelo relato de ação, que opta por narrar os passos do criminoso, os contos enfeixados por Flávio Moreira da Costa são a mais pura afirmação de que as más intenções criminosas oferecem, sim, ótima literatura.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

NÃO ENVIEM ORQUÍDEAS PARA MISS BLANDISH

Quando publicado pela primeira vez, em 1938, Não enviem orquídeas para Miss Blandish (No orchids for Miss Blandish) foi considerado um dos mais violentos romances policiais já escritos e granjeou ao seu autor, o inglês James Hadley Chase, uma inopinada celebridade. Exaltado por alguns e muito criticado por outros (o escritor George Orwell foi um dos seus mais veementes opositores), devido à sua crueza, o romance teve poucas edições em português, das quais a mais conhecida é a da antiga Editora Globo, de Porto Alegre, em 1967, inaugurando a Série Amarela da Coleção Catavento, destinada a publicar as mais importantes obras do gênero policial da época. No formato 12x18cm, com berrante capa de Clara Pechansky e tradução de Leonel Vallandro, a edição trazia informações curiosas, como: "Mais de 500.000 exemplares deste livro já foram vendidos em todo o mundo". Na contracapa, o editor aumentava este número para 700.000 e a quantidade de leitores para mais de dez milhões, além de afirmar que o livro de Chase "na opinião dos críticos, dá uma nova dimensão à novela policial", o que não chega a ser exagero, se levarmos em conta que, excetuando-se autores como Chandler, Goodis, Cain e Hammett, os demais eram bem comportados contadores de histórias de detetive. A história pode ser dividida em duas partes: a primeira, tipicamente de ação, acompanha os bandidos e se fixa no sequestro da garota Blandish, que, mesmo depois de pago o resgate por seu pai, permanece em poder dos sequestradores, mantida à base de drogas e diariamente seviciada; a segunda, de mistério, encena as investigações da polícia, de um gângster melindrado e de um detetive particular, contratado pelo pai da moça para achá-la. Na junção dos dois pontos de vistas está a solução da trama, forte, inesperada e, para muitos leitores, desagradável. A linguagem é descarnada, direta e sem arroubos poéticos, centrada no desenvolvimento objetivo da história, cujo assunto já é por si só excessivamente indigesto. Sem edições há décadas no Brasil, como, aliás, toda a obra de James Hadley Chase, Não enviem orquídeas para Miss Blandish merece voltar a público numa tradução moderna e fiel à sua importância para a história do relato policial moderno, e ainda mais porque sua trama, antes violenta, não passa hoje de uma extensão vulgar da sociedade.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

DÁLIA NEGRA

Em 1947, há 65 anos, portanto, completados no último dia 15 de janeiro, Elizabeth Ann Short (nascida em Medfort, Massachusetts, EUA, em 29-07-1924) era achada morta num terreno baldio da Rua 39, esquina com a Norton, em Los Angeles. O corpo estava divido em duas partes à altura da cintura, eviscerado (sem intestinos, fígado, estômago e baço) e com um corte de orelha a orelha, que conferia à boca um sorriso permanente e macabro. Outras evidências, como lacerações e queimaduras de cigarro nos seios (um dos quais encontrava-se praticamente solto), remoção a faca de tatuagem na coxa esquerda, fraturas nos dois joelhos (já em processo de cicatrização), um talho longitudinal do umbigo ao púbis (provavelmente para extração de útero, bexiga, ovários e reto), marcas de chicotadas e fraturas profundas no crânio e no rosto, além de vestígios do uso de cordas nos pulsos e tornozelos, indicavam que durante vários dias ela fora torturada, estuprada e sodomizada. E ainda, como se o assassino confessasse, apesar do requinte de crueldade, sua propensão à higiene, o corpo de Elizabeth Short tinha sido lavado em água corrente antes de ser jogado no terreno baldio. O sofrimento que ela passou ninguém pode sequer imaginar. E só, abandonada, impossibilitada de pedir socorro, pois é quase certo que o assassino vinha visitá-la, praticava seus atos ignóbeis e depois a largava entregue à dor e à humilhação. Porque frequentemente ela se vestia de preto, e em analogia a um filme célebre naquele tempo, Elizabeth Short recebeu da imprensa o apelido Dália Negra.

Muitos livros e reportagens foram escritos sobre este crime, mas em termos de ficção o mais importante é, sem dúvida, o romance Dália Negra, de James Ellroy. Ao transformar em ficção o assassinato de Elizabeth Short, que tinha apenas 23 anos, Ellroy construiu um livro que é, antes de tudo, uma reflexão sobre a vida americana e seu gosto pelos crimes hediondos. Sua solução para o enigma é, no mínimo, engenhosa: um policial descobre o assassino, mas não o revela à sociedade, obrigando que a realidade e a ficção coincidam, além de sugerir, metaforicamente, que a polícia na verdade chegou ao assassino, mas, por algum motivo, preferiu esquecê-lo. Desse modo, tanto na vida quanto no livro a Dália Negra ficou sendo apenas mais uma mulher morta, entre tantas outras que perdiam a vida na California dourada. O assassinato de mulheres bonitas era um crime tão recorrente na época, que até a mãe de James Ellroy tornou-se uma das vítimas. Em 1958, ele era apenas um garoto quando ela foi achada sem vida numa estrada de Los Angeles. O assassino jamais foi encontrado. Ellroy demorou a se recuperar deste triste episódio, e isso o levou às drogas e ao crime. Mas, graças à literatura, pôde desviar-se e acabou por se tornar um dos mais importantes autores policiais dos EUA e do mundo, desde que publicou Dália Negra, em 1987, que, não por acaso, ele reporta à mãe, Geneva Hilliker Ellroy (1915-1958): "Mãe: vinte e nove anos depois, esta despedida em sangue".