Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

domingo, 27 de outubro de 2013

FOGO NA CARNE, DAVID GOODIS

O número 655 da Série Policial, da saudosa editora Tecnoprint Gráfica S. A., é Fogo na carne (Fire in the flesh). E confirma o que dissemos em postagem anterior: David Goodis vem sendo publicado no Brasil desde pelo menos os anos 1960, talvez meados do anos 1950. A dificuldade de encontrar estes livros está em que as edições eram de bolso, populares, em papel ordinário, à venda em rodoviárias, estações de trem, de bonde e aeroportos, bem como nas lojas da própria editora. No Rio de Janeiro, a principal loja da Tecnoprint ficava na Cinelândia, próxima à Perfumaria Carneiro. Em São Paulo, na Rua Conselheiro Crispiniano, 403, em frente ao Cinema Marrocos. Em Salvador, na esquina da Av. Sete de Setembro com a Rua Politeama de Cima. Havia ainda lojas em Belo Horizonte, Porto Alegre e Juiz de Fora, entre outras cidades. Hoje, não existem mais, a Tecnoprint transformou-se em Ediouro Publicações, que, nos últimos anos, abandonou as edições de bolso, tornou-se uma editora comum, igual a qualquer outra, sem nenhum diferencial, engolindo outras casas tradicionais, como a Nova Fronteira e a Agir. Nesta edição de Goodis, não há nenhuma menção a ano de publicação, nem aqui nem nos EUA. A editora, no entanto, esclarece que "Este romance é inteiramente novo, não tendo sido publicado ainda em português, sob nenhuma forma". E na capa esta a sinopse, breve, misteriosa, com a intenção de fisgar o leitor passageiro, em trânsito: "No turbilhão das chamas, ele buscava alguma coisa que não conseguia encontrar". Algumas horas ou minutos de leitura dentro do bonde, ônibus, trem ou avião, com David Goodis e seu Fogo na carne, que começa assim: "No beco calçado de paralelepípedos, e cheio de buracos, a moça tropeçava, ao correr, com a cabeça baixa, para enfrentar o frio cortante. Era fevereiro, em Filadélfia, a altas horas da noite, e o mercúrio descera quase a zero. A moça, porém, não estava preocupada com as condições meteorológicas; estava atenta a um som que vinha de longe. E, como o som se aproximasse, ela aumentou a rapidez da corrida. Era o som de sirenas". Uma abertura bem característica do estilo do autor: alguém em apuros, na noite, sob o frio intenso, a ameaça ao longe. Estamos fisgados. A tradução é de David Jardim Júnior.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

DUAS VEZES CAIN

Uma edição que constitui um dos mais felizes acertos de um editor de literatura policial no Brasil. Em 1984, na Série Mistério e Suspense, a Abril Cultural reuniu, nada mais nada menos, que os dois mais célebres e controversos romances do norte-americano James M. Cain (1892-1977): O destino bate à sua porta (The postman always rings twice, 1934) e Dupla indenização (Double indemnity, 1936). O curioso é que o primeiro ― também o primeiro livro de Cain ― comemorava cinquenta anos de publicado. Não há, porém, nesta edição, nenhuma referência ao cinquentenário.
Ambos narram histórias de assassinatos premeditados, e ambos reúnem esposas que, friamente, auxiliadas por seus amantes, se livram de seus maridos. O palco do primeiro é uma lanchonete de beira de estrada, enquanto, no segundo, é um trem em movimento, embora o crime tenha sido elaborado, com bastante antecedência, numa mansão de Hollywood, Califórnia. Em ambos tira-se proveito monetário da morte alheia, e em ambos o leitor se identifica com os assassinos, torce para que sejam bem sucedidos em sua empresa, não demonstrando a mínima consideração pelos que morrem e pouco se importando se os culpados serão punidos ou não. Tal inversão, ou perversão, de valores impôs às duas obras um destino a um só tempo duradouro e obsceno, pois são até hoje consideradas excessivamente pesadas e sem similares que se lhes equiparem, tampouco que as superem.
O racionalismo na preparação dos crimes e a frieza de sua execução ainda são capazes de chocar, mesmo que romances mais atuais e filmes bem mais apelativos no gênero invistam, ano após ano, em entrechos semelhantes. Talvez o estilo de Cain, cru e meio cínico, colabore em acentuar a brutalidade das duas histórias, autênticos estudos de comportamento dos indivíduos da moderna sociedade americana, presas fáceis do irrefreável desejo de enriquecer e conseguir, a todo custo, um lugar ao sol na tão badalada american way of life.
As traduções, ainda fluentes e fieis ao estilo do autor, são, respectivamente, de Evelyn Kay Massaro e Aldo Bocchini Neto. E a capa reproduz imagens do filme O destino bate à sua porta, de Bob Rafelson, com Jessica Lange e Jack Nicholson nos papeis dos amantes assassinos; simplesmente a quarta adaptação cinematográfica do livro, em quase oito décadas de ininterruptas edições. Ano que vem, aos 80 anos, o carteiro voltará a bater? Talvez.

Publicado originalmente na Verbo 21.