Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

POLICIAL DO FUTURO

A rigor, Blade runner só é classificado como filme de ficção científica porque se passa no futuro e porque alguns de seus personagens são andróides. De resto, em tudo, é uma trama policial. Um policial do futuro, como o western é o relato policial do passado, num cenário específico dos EUA: o Oeste do pioneirismo, da descoberta do ouro, das diligências e de bandidos e xerifes lendários. E não por acaso Dackard constitui uma mistura de xerife com caçador de recompensas, eliminando um a um os replicantes que encontra. Portanto, me parece mais adequado classificar Blade runner de policial, como Minority report também o é, e igualmente Eu, robô, de Alex Proyas. Pensemos, neste sentido, que o tempo ― e o tempo é tudo ― há de alcançar um dia aquele contexto, ou um contexto semelhante ao dos três filmes, e então não teremos mais o elemento de ficção científica. O futuro será o presente, e restará aos homens, ao examinar os três filmes, nomeá-los ou classificá-los conforme o mundo que conhecem e a realidade em que vivem. Mas se pensarmos, por outro lado, que nesta "aproximação" de tempos talvez seja o elemento policial aquele que desaparecerá, não havendo mais crimes, nenhum embate entre gato e rato, então os três filmes, em especial Blade runner ― por sua hibridez até então pouco explorada, se não inédita, e sua estética noire ―, talvez acabem confinados à classificação de paródias de um tempo perdido, duplos de uma faceta que a humanidade baniu. É provável. Todavia, enquanto este tempo não chega, e se quisermos ser rigorosamente precisos, classifiquemos Blader runner de filme policial, ainda que seja "policial do futuro".

domingo, 27 de setembro de 2009

RAYMOND CHANDLER

Se Dashiel Hammett criou o relato policial noir, foi no entanto Raymond Chandler quem lhe conferiu prestígio literário e artístico. Mesmo os leitores que não apreciam a literatura policial respeitam-no, como respeitam Georges Simenon, Patricia Highsmith, James M. Cain e David Goodis, autores que, apesar de sua opção pelo relato policial, não se limitaram às amarras do gênero. Como se cumprissem à risca uma hipotética cartilha ditada por Edgar Allan Poe ou Pablo Picasso, fizeram arte com a matéria que escolheram: impuseram-se um estilo, uma linguagem, uma dicção, de modo que, ao lermos o texto de um, sabemos que não estamos lendo o texto de nenhum outro. E não interessa se o entrecho policial é ou não é relevante; o que importa é como cada um desses escritores, a começar por Hammett, estrutura e molda suas histórias, e o efeito que extrai delas e que, durante a leitura, migra para a sensibilidade do leitor, que, assim, apreende um pouco mais da realidade à sua volta, sempre um enigma. Nascido em Chicago em 1888, Raymond Chandler estudou na Inglaterra, França e Alemanha. Teve uma formação clássica, e isso muito colaborou para que ele deslocasse para o gênero policial uma linguagem que poderia, muito bem, estar a serviço de outro ramo da arte literária. Depois de saltar de uma para outra profissão (foi professor, revisor, soldado das forças canadense e britânica, contador, redator, executivo de uma empresa de petróleo e detetive particular, o que lhe conferiu larga experiência de vida e a desenvoltura necessária à sua representação realista do mundo), Chandler se estabeleceu na California, palco de seus contos e romances. Escreveu: O sono eterno (1939), O longo adeus (1953), Adeus minha adorada (1940), A irmãzinha (1949), A dama do lago (1943), Janela para a morte (1942), Playback (1958), dezenas de contos, espalhados por várias coletâneas, e Amor e morte em Poodle Springs, que deixou inacabado e foi concluído por Robert B. Parker. Também foi roteirista de Hollywood. Todos os seus romances foram levados ao cinema, tornando-se grandes clássicos do gênero noir. Seu personagem Philip Marlowe, protagonista de seus romances, entrou para a galeria dos grandes detetives, ao lado do comissário Maigret, do padre Brown, de Sherlock Holmes, Hercule Poirot e Dupin. Em 1956, com a morte da esposa, Chandler entregou-se ao álcool, o que certamente contribuiu para a sua morte, aos 71 anos, em 1959. Era, porém, um escritor admirado e respeitado, nos EUA e no mundo, e não apenas como autor de romances e contos policiais.

sábado, 26 de setembro de 2009

JONATHAN LATIMER

Ele publicou pouco, pois, frequentemente requisitado por Hollywood para escrever roteiros, muitos dos quais adaptados de obras de autores de sua época (Hammett, Wollrich), não teve muito tempo para se dedicar à sua própria produção, mais pessoal. Mesmo assim, um de seus livros, Os vinhedos de Salomão (Solomon's vineyard), se tornou um clássico do relato policial moderno. Este romance, aliás, teve uma aventura incomum: publicado na Inglaterra em 1941, só foi editado nos EUA em 1950, com o título alterado para The fifth grave e cheio de cortes. A violência e o realismo expressos seriam insuportáveis para a puritana sociedade americana do pós-guerra. A versão integral só veio a público na década de 1980, possibilitando aos cultores do gênero a oportunidade de conhecer um autor do quilate de Latimer e um livro capaz de se equiparar ao que de melhor escreveram Hammett, Chandler, Goodis e Cain. Jonathan Latimer nasceu em 1906, em Chicago. Foi jornalista, mais precisamente repórter policial, o que lhe permitiu o contato com os famosos criminosos da época, como Al Capone e Bugs Moran. Dos filmes que roteirizou, um dos mais conhecidos é A chave de vidro (1942), baseado no romance homônimo de Dashiel Hammett. Durante toda a Segunda Guerra Mundial, serviu na marinha americana. Entre seus outros romances policiais, destacam-se Sinner and shrouds (1955), Black in the fashion for dying (1959) e Red gardenias (1939), o quinto de uma série com o detetive particular Bill Crane. Sua produção não-policial inclui: The search for my great uncle's head (1937) e Dark memory (1940). Latimer morreu em 1983.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

OS VIOLENTOS

Os violentos (The executioners), de John MacDonald, publicado em 1957, é uma unanimidade. Nenhum livro que ele escreveu antes nem depois é capaz de superá-lo. O argumento, claramente de exceção, é um primor: Max Cady, denunciado pelo advogado Sam Bowden por ter estuprado uma criança, passa anos na cadeia e, ao sair, decide se vingar do advogado. Seu método, porém, é sutil: nunca faz nenhuma ameaça a Bowden nem à sua família, apenas se mantém por perto... Perto da escola dos seus filhos, perto do iate clube que eles freqüentam, perto do próprio Bowden, no tribunal, onde o advogado está em ação. E a polícia nada pode fazer, pois não há ameaça, nenhuma evidência concreta de que Cady pretende ser violento com Bowden ou com sua família e, consequentemente, se vingar. De posse deste entrecho, MacDonald o estrutura de uma maneira tal, que quem temia ser agredido passa a agressor, pois, com o propósito de intimidar Cady e obrigá-lo a sair da cidade, Bowden contrata alguns homens para surrá-lo. A consequência desta inversão de papéis é que a fronteira entre o bem e o mal se esfumaça: Cady e Bowden acabam equiparados, quase iguais, simples seres humanos com seus defeitos, medos e fraquezas. Quem é o bandido, quem é o mocinho? Pelo visto, ninguém, embora a causa de Bowden seja aparentemente mais nobre: tenciona proteger a família. Mas Cady também não tem lá os seus motivos de vingança, pelo fato de, ao ser denunciado, ter perdido a mulher e o filho, que o abandonaram? Num trecho metalinguístico, o narrador, através da fala de Nancy, a filha do advogado, reflete sobre essa ambiguidade que move os dois oponentes: "É nossa professora de inglês. Ela nos ensinou que a ficção é boa quando há desenvolvimento dos personagens, mostrando que ninguém é inteiramente bom ou inteiramente mau. Na ficção ruim, os heróis são cem por cento bons, e os maus cem por cento maus". Do ponto de vista de Cady, que foi para a cadeia e sacrificou sua vida familiar, o vilão é Bowden. Do ponto de vista de Bowden, Cady, pelo que fez, mereceu perder a família e ir para a cadeia. Um romance forte, profundo, psicológico, reflexivo e muito além de uma simples trama policial. Uma parábola do nosso tempo, que a cada dia se torna mais aterrador que os livros que escreveu ou escreve. Gerou duas adaptações cinematográficas: Circulo do medo (1962), dirigido por J. Lee Thompson, e Cabo do medo (1991), de Martin Scorsese.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

BOILEAU-NARCEJAC

Boileau-Narcejac não é um nome duplo, mas uma dupla, formada por Pierre Boileau (1906-1989), que residia no bairro de Pigalle, em Paris, e Thomas Narcejac (1908-1998), mais provinciano, dividindo-se entre Nice e Nantes. Os dois formaram uma das mais famosas duplas de escritores policiais da literatura francesa e mundial. Desta união surgiram obras que imediatamente conquistaram o público e chegaram ao cinema. As duas mais célebres são Celle qui n'était plus (As diabólicas), de 1952, filmada por Henri-Georges Clouzot, em 1955, com o título Les diaboliques, e D'entre les morts, de 1954, que originou aquele que para muitos críticos é o melhor filme de Alfred Hitchcock: Vertigo (Um corpo que cai), de 1958. O estilo de ambos, embora Boileau tivesse uma inclinação para o relato de enigma, abandona a figura do detetive para seguir o criminoso ou a vítima, numa teia de suspense, ambiguidade, dor e angústia. A ação do crime, com suas implicações psicológicas e existenciais, é muito mais importante que a investigação posterior, que realça quase sempre a habilidade e inteligência do detetive. Poucos foram os romances de sua autoria que não se transformaram em filmes. Também foram roteiristas de cinema e escreveram obras nas quais teorizaram sobre o gênero policial, como Le roman policier. Outros livros importantes: Terminus (1980) e Les intouchables (1980), publicados no Brasil pela editora Globo com os títulos Estação terminal e Os intocáveis.

sábado, 19 de setembro de 2009

O FALCÃO MALTÊS, O LIVRO

É comum que se afirme que O falcão maltês, de Dashiell Hammett, publicado em 1930, é o mais célebre romance policial do século XX, e um dos mais importantes desde que o gênero foi inventado por Edgar Allan Poe, Balzac e mais dois ou três escritores. Mas é raro que alguém esmiuce depois os aspectos que o colocam neste patamar. Um dos mais importantes é que não há, por parte do autor (ou narrador), nenhuma intenção de nos fazer crer que estamos diante de uma trama policial. Diferentemente dos clássicos do gênero, nos quais um crime (em geral, assassinato) é cometido por alguém e precisa ser desvendado pelo detetive, em O falcão maltês os crimes só acontecem depois que o detetive entra na história. Nesse sentido, o crime é apresentado como consequência das relações da vida, e nesta se compreendem: o dinheiro, a ambição e a mentira. Sem dúvida os motores da narrativa. Quando se diz que Hammett criou o romance noir, e O falcão maltês é talvez o seu marco, não é por acaso ou gratuitamente. Os elementos que movem o gênero estão presentes de uma forma bem cristalina: um objeto que se deseja e que vale muito dinheiro, a mulher bela e fatal que vai enredar o protagonista (Sam Spade, detetive particular), a intrincada rede de fatos, intrigas, bandidos e mentiras que constituirá o desenvolvimento da trama e o desfecho, menos firmado na solução dos crimes que na oportunidade do protagonista mostrar o quanto seus valores são maleáveis, consequência da experiência vivida e da necessidade de continuar a viver, e é neste ponto que ele expressa sua visão de mundo, pouco ortodoxa (pois o amor não conta muito) e vazada de ironia: "Vou entregá-la à polícia. É provável que você saia da prisão ainda em vida. Isso significa que estará de volta daqui a vinte anos. Você é um anjo. Vou esperá-la. (...) Se a enforcarem, vou sempre me lembrar de você". Tudo isso virou modelo e foi repetido, com variações, à exaustão, transformando O falcão maltês no antípoda do relato policial clássico, de enigma. O mais importante não é o crime, nem a solução do crime, mas as relações que o movem, as relações que se criam do crime e para a concepção do crime, as nuances psicológicas, a mentira como expediente perfeito para se sobreviver e que expõe a sociedade humana, em corpo e essência. Podemos chegar a dizer que esse é um romance de mentirosos. E, se há alguma verdade entre eles, ela é tão-somente a possibilidade de uma mentira. Até o falcão maltês, o objeto ambicionado por todos durante toda a história, é uma mentira. Mas, para quem acredita em linguagem cifrada, ou em códigos capazes de solucionar uma trama bem construída, aqui está a dica, a fala de Brigid O'Shaudhnessy, a mocinha fatal da história, que diz para Spade: "Se você me amasse, não precisaria ter mais nada no outro prato da balança". O que ela está dizendo, o que ela não está dizendo? Talvez que o falcão original, uma relíquia preciosa, está em seu poder e que, se ele não entregá-la à polícia, viverão felizes no amor e com dinheiro. Mas Spade não é otário. Ou é.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

MÃOS ASSASSINAS

O PROFISSIONAL

Dos assassinos de aluguel era o mais profissional e experiente. Em sua longa carreira de facínora ostentava um rosário de mortes.
O excesso de profissionalismo foi a sua perdição.
Devido a tanta competência, não pode declinar da contratação de seus serviços por parte do seu maior concorrente.
Recebeu adiantado e, profissionalmente, realizou seu último assassínio.
Matou-se.


OS ASTROS NÃO MENTEM

Consultou um astrólogo. Categórico, este lhe disse:
– Vejo em seu futuro algo terrível. Está prestes a acontecer.
– Seja o que for, pode me contar. Não tenho medo.
– Tem inimigos?
– Muitos. Por quê?
– Em breve você matará um homem.
– Matar? Engano seu. Jamais eu faria isso.
– Os astros não mentem.
– Então o mentiroso é você!
– Não me culpe por dizer a verdade.
– Um farsante, isso sim!
– Não sou farsante. Você que é um assassino.
– Além de impostor, um abusado! Como ousa me chamar de assassino? Seu vigarista!
Das palavras a raiva migrou para as mãos.
Agarrando o astrólogo pelo pescoço, apertou-o até vê-lo roxo, a língua saltando para fora.
Largou-o sem vida.

O QUE SERÁ

Marcaram de se encontrar à beira do lago.
O clima seria romântico, não fosse a apreensão estampada no rosto dele.
– E então?
– Deu positivo, ela afirmou.
– Tem certeza?
– Claro que tenho. Trago um filho seu. O nosso filho.
Ele passou as mãos pelo rosto. Na escuridão apenas o ruído de grilos e rãs
marcava o silêncio entre os dois.
Tornou a falar:
– Não está pensando em levar esta gravidez adiante, está?
– E por que não? – ela sorriu.
– Já pensou no futuro que espera essa criança?
– Falando desse jeito parece que o mundo já está perto do fim.
– Neste caos em que vivemos, não é de duvidar. Violência, desemprego... O que será desta criança quando crescer?
– Sei lá, pode ser tanta coisa. Quem sabe um médico. Ou médica, se for menina. Pode ser ainda dentista, modelo...
– Já sei.
– O quê?
– O que ele será. Acabo de pressentir.
– Advogado?
– Não.
– Jogador de futebol?
– Também não.
– Será o quê, então?
– Isto! – respondeu, empurrando-a para dentro d’água. – É isso o que o seu filho vai ser, sua vadia!
E vendo-a desaparecer nas profundezas do lago, revelou:
– Escafandrista!

WILSON GORJ nasceu em 1977, em Aparecida, SP. Em 2007, publicou o livro Sem contos longos, obra de estréia, composta 100 micronarrativas. Tem contos, minicontos e poemas publicados em antologias, revistas e suplementos literários. Contato: pelo blogue O Muro & Outras Páginas, aí ao lado, ou pelo e-mail gorj@jornalolince.com.br.
Imagem: cena do filme Rififi (1955), de Jules Dassin.

domingo, 13 de setembro de 2009

DIZER ADEUS


Os contos do escritor Mayrant Gallo, reunidos no livro Dizer Adeus, publicado pelas Edições K, em 2005, são considerados pelo autor "rituais de crimes", e não narrativas do gênero policial, que lhe parece, machadianamente, um "gênero difícil". Seja como for, tratam-se de narrativas nas quais verificamos a presença da morte (metafórica ou não). Já é quase um dogma a assertiva que defende a verdadeira arte como aquela que mesmo trabalhando com um assunto visitado inúmeras vezes, como a morte, por exemplo, o aborda de uma forma nova, ou seja, é aquela que nos diz a mesma coisa de uma outra maneira. E em Dizer Adeus todos os contos nos prendem de um modo especial. Sim, o modo, a maneira de se tratar um tema, esse é o toque definidor do genuíno artista. E esse modo inovador da escrita percebemos, no autor, em "Mãos Dadas", apenas para citar um conto, o último do seu conjunto meio noir. Logo no início, o que chama a nossa atenção é a estrutura. Os capítulos são divididos por letras. No capítulo A, como nos demais, períodos curtos, o dizer-muito-com-pouco: "Uma criança, um pai. O pai que desce a escada, e a criança que o segue, na noite: Pai, quero ir também... Um rosto que se volta: Não. Passos. Dois pés que descem. Dois pezinhos que sobem." Essa linguagem cinematográfica, imagética, metonímica, fragmentada, nos permite ver toda a cena. E se dermos um salto para o desfecho dessa história, que envolve relacionamento familiar, traição e crime, lemos apenas a seguinte frase: "Sangue na noite". O crime não foi narrado. Não era necessário. O leitor está totalmente satisfeito. E impactado. Depois dessas três palavras, não se precisa escrever mais nada.

LIDIANE NUNES, uma infiltrada.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A SÉRIE NEGRA

No último parágrafo do seu texto Sobre o gênero policial, incluso no livro O laboratório do escritor, Ricardo Piglia tenta chegar a uma conclusão do que seja a série negra, rótulo aplicado ao conjunto de obras dos autores norte-americanos modernos que se dedicaram ao gênero policial. Escreve ele: "Em última instância (penso em Safra vermelha, de Hemmett, em O pequeno César, de Burnett, em Mas não se matam cavalos?, de McCoy), o único enigma que os romances da série noire propõem — e nunca resolvem — é o das relações capitalistas: o dinheiro que legisla a moral e apóia a lei é a única 'razão' destes relatos onde tudo se paga. Neste sentido, eu diria que são romances capitalistas no sentido mais literal da palavra: devem ser lidos, penso eu, sobretudo como sintomas. Textos cheios de contradições, ambíguos, que frequentemente flutuam entre o cinismo (exemplo: James Hadley Chase) e o moralismo (em Chandler tudo está corrompido, menos Marlowe, profissionalmente honesto, que faz bem seu trabalho e não se contamina; na verdade, parece uma realização urbana do cowboy). Acredito que justamente por serem ambíguos estes textos nos causam leituras ambíguas, ou melhor, contraditórias: há os que a partir de uma leitura moralista condenam o cinismo destas histórias; e há também os que dão a estes escritores um grau de consciência que eles nunca tiveram, e fazem deles uma espécie de versão divertida de Bertolt Brecht. Sem ter nada de Brecht — salvo, talvez, Hammett —, acho que estes autores devem ser submetidos, antes, a uma leitura brechtiana. Nesse sentido há uma frase que pode ser um ponto de partida para essa leitura: 'O que é roubar um banco comparado com fundá-lo?', dizia Brecht, e nessa pergunta está — se não me engano — a melhor definição da série noire que conheço". Sem dúvida. Apenas acrescentaríamos que, se o dinheiro é o motor destas histórias — e é, efetivamente — o são também os bens e as coisas que ele permite comprar, depois de obtido: e não somente objetos, homens sobretudo — e o poder que eles disputam e alimentam.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

UNIVERSO NOIR

Nesta maravilhosa coletânea de temas de jazz da Verve, de 2003, estão reunidos alguns dos maiores cantores e cantoras do gênero, como Billy Holiday, Chet Baker, Mel Torme, Peggy Lee, Helen Merrill, Shirley Horn, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Dinah Washington. Todas as gravações se situam nos anos 1950 ou 1960, exceto a de Shirley Horn, datada de 1997, e todas têm como tema o "coração partido", no espírito do título do CD: When love goes wrong (quando o amor acaba mal ou quando o amor dá errado). Mas o que nos interessa mesmo neste disco é a ilustração de sua capa, de autoria de Mark Korsak. A imagem conta uma história, e esta história é tipicamente noir. Duas mulheres, uma sendo levada algemada por um policial, e outra caída, em desespero, envolta num lençol, aos pés de um personagem austero, de terno, pesado sobretudo, chapéu, um cigarro entre os lábios, barba por fazer e olhar indiferente. (Quase me arrisco a dizer que este é Sam Spade ou Philip Marlowe.) Em primeiro plano, o braço e a mão de um homem morto, amante de uma das mulheres e marido da outra, ou amante de ambas, de uma mais pobre e de outra mais rica, e, assim, o que o fez chegar a este fim foi o dinheiro, motor essencial, se não exclusivo, dos entrechos dos romances policiais modernos. A tatuagem em sua mão (um coração flechado) já era um prenúncio de sua horrenda morte. Belas canções e bela capa: uma representação perfeita do universo noir.

ARMADILHA MORTAL

Este é um livro precioso. Com o título original Un argentino entre gangsters, reúne 7 contos policiais publicados por Roberto Arlt (1900-1942) na imprensa argentina, relatos que por muitos anos ficaram confinados às páginas dos periódicos, inacessíveis, portanto, aos leitores modernos do gênero. O conjunto é bem variado, com contos de enigma e também de ação, bem como um excelente relato de espionagem, um dos gêneros variantes do policial de ação e que, se não me engano, deflagra muitos e muitos crimes em nome de causas aparentemente "mais nobres", como patriotismo, defesa dos interesses nacionais, proteção da soberania do país etc. O conto em questão é A dupla armadilha mortal, sem dúvida uma obra-prima, e cujo desfecho se dá em pleno ar, no cenário exíguo de uma carlinga de avião, numa cena que, a meu ver, é uma metáfora da ambiguidade do mundo da espionagem: não há vitórias nem derrotas, vencedores nem vencidos, se na relação belicosa entre os países o ser humano é posto em segundo plano. Bem, que julguem os leitores. Armadilha mortal é simplesmente delicioso, e vivo, e forte, e um grande aprendizado sobre este mundo, que sempre guardará uma filigrana por nos revelar.

domingo, 6 de setembro de 2009

DAVID GOODIS

David Goodis (1917-1967) queria ser um dos grandes da literatura norte-americana. Acabou se tornando um dos grandes da literatura policial norte-americana. O motivo é simples: precisava comer. Não podia se dar o luxo de ser artístico sem dinheiro no bolso e, consequentemente, com a barriga vazia. Nascido na Filadélfia, fez de sua terra natal o palco pestilento e cruel a abrigar vidas infelizes, vencidas e desencantadas. Melancolia, apatia, desespero, solidão e violência são os únicos sentimentos que elas entendem e cultuam. Seu realismo, repleto de brutalidade, não comporta esperança nem finais felizes e, para retratá-lo com fidelidade, Goodis emprega uma linguagem ao mesmo tempo áspera e poética, densa e árida, com frases curtas e estranhas imagens, como a lua, bela e limpa, refletida na poça de uma sarjeta infecta. Entre os muitos romances que escreveu se destacam: Dark passage (1946), Beleza mortal (1947), A garota de Cassidy (1951), O ladrão (1953), Sexta-feira negra (1954), A lua na sarjeta (1954) e Atire no pianista (1956). Também escreveu muitos contos, publicados geralmente em revistas de ficção policial e terror do gênero pulp. Morreu prematuramente, em consequência dos golpes sofridos numa briga de rua e sem se levar a sério como escritor: "No início, queria escrever de modo solene e só abordar os grandes problemas, mas logo compreendi que o problema mais importante era comer, então me conformei em escrever o que os editores queriam". Foram feitos vários filmes baseados em seus livros, entre os quais duas ótimas produções francesas: O tiro no pianista (1960), de Truffaut, e A lua na sarjeta (1983), de Jean-Jacques Benieix. Devem-se a estes filmes, e aos demais inspirados em sua obra, muito do respeito que Goodis alcançou postumamente e sua gradativa redescoberta, que o alinhou ao lado dos escritores encabeçados por Dashiell Hammett, Raymond Chandler e James M. Cain. Foi também, por muitos anos, roteirista de Hollywood.

sábado, 5 de setembro de 2009

O OVO DE OURO

Este é um dos mais impressionantes e perfeitos romances policiais já escritos, e ainda mais porque vem de uma literatura pouca afeita ao gênero: a literatura holandesa. O argumento é simples: Rex e Saskia, de férias, estão na estrada. O destino do casal, uma casinha numa colina acima do Mediterrâneo. Dias livres, sol, só eles dois, paz, aconchego, initimidade. Quando param num posto de gasolina, Saskia desaparece. Nós, leitores, sabemos que ela foi sequestrada pelo terceiro personagem da história, um professor, mas Rex não. Daí por diante, por meses e anos a fio, através de campanhas na tevê e nos jornais, ele busca saber o paradeiro da namorada. Apela ao criminoso, roga que ele apareça, ao menos para lhe revelar o que aconteceu com Saskia. Até que um dia o criminoso o procura... O resto da trama, o seu desfecho propriamente dito, se revelado aqui, embora não chegasse a tirar o brilho e a força desta história, poderia fazer alguns leitores perder o interesse pela leitura. O certo é que ninguém jamais sairá ileso deste livro, que foi filmado na Holanda em 1991, ganhando vários prêmios internacionais, e depois, em 1993, nos EUA, com o final alterado, o que acabou por diluir o efeito aterrorizante, e metafórico, da história original. Nas duas versões, o título no Brasil foi O silêncio do lago. Um livro que jamais será esquecido por ninguém, mesmo porque conta, através de um sequestro, uma dolorosa história de amor, e as histórias de amor são inesquecíveis. O autor, Tim Krabbé, é jornalista, escritor e jogador de xadrez.

MAYRANT GALLO, um infiltrado.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

JAMES M. CAIN

Nascido em 1892 e morto aos 85 anos, em 1977, James M. Cain só publicou seu primeiro livro aos 42 anos, o arrebatador O destino bate à sua porta, em 1934. Esta novela, de pouco mais de 100 páginas gerou três filmes (a primeira versão, não-autorizada, foi dirigida por Luchino Visconti e constitui um dos marcos do Neo-Realismo italiano), legou ao autor um processo por obscenidade, conferiu-lhe fama e respeito, e inspirou Albert Camus, que confessou a influência do livro de Cain na motivação interna do seu romance O estrangeiro, hoje um clássico da literatura universal. O destino bate à sua porta forma com Dupla indenização (1935), filmado por Billy Wilder, o par de obras mais conhecido, polêmico e reeditado de Cain, às vezes num só volume. Outra obra muito discutida é A borboleta, de 1946: relato de amor e incesto entre pai e filha. (Na adaptação para o cinema, Orson Welles interpreta o pai.) Cain foi professor de matemática, jornalista, cantor, editor, militar e roteirista de filmes em Hollywood. Seus romances estão na fronteira entre a literatura mais séria (de reflexão e proposta de renovação do assunto e da forma), e o relato policial de entretenimento, que só quer fisgar o leitor e conduzi-lo com interesse até o desfecho, gênero do qual foi um mestre indiscutível. Publicou ao todo 18 livros, com destaque ainda para O instituto, A mulher do mágico, Serenata e A história de Mildred Pierce, considerado por muitos críticos, admiradores e escritores a sua obra-prima.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A FRAUDE

Um surpreendente noir contemporâneo. A trama oscila entre a tradição, com o resgate de regras e escolhas do gênero, e uma originalidade baseada na reunião de aspectos oriundos de outros filmes: o cenário, a pequena cidade de Hastings, é frio e melancólico, como em Fargo; o entrecho retoma o clássico Pacto de sangue, de Billy Wilder, pois envolve venda de seguros; a fotografia é soturna e suja como em Seven e, na sequência final, há uma referência quase didática ao cultuado longa-metragem francês Rififi, de Jules Dassin. O agente de seguros Holt investiga a bela Isold, única beneficiária do seguro de vida do irmão, morto recentemente num acidente de automóvel, e logo descobre a existência de uma fraude. Paralelamente a esta descoberta, há outras, envolvendo a própria Isold, seu sobrinho, seu irmão e seu atual marido, num jogo de máscaras, erotismo e troca de personalidades. Um filme policial atraente, independente, alternativo e cheio de estilo. Título original: A little trip to haven. Direção e Roteiro: Baltasar Kormakur. Ano e país de produção: 2006, EUA. Fotografia e duração: colorida, 90'. Atores principais: Forest Whitaker, Julia Stiles, Peter Coyote e Jeremy Renner.

O TIRO NO PIANISTA

Um dos melhores filmes policiais franceses dos anos 1960, ao qual Truffaut conferiu seu estilo sensível e humano de abordar os indivíduos perdidos. É ao mesmo tempo uma trama policial e um drama existencialista. Um grande pianista desencantado com a vida, condenado a tocar música ligeira num bar de segunda categoria, uma fã que o admira tanto agora quanto antes e que sonha em devolvê-lo aos grandes dias, um irmão problemático, perseguido por bandidos, o dono do bar, um sujeito sem princípios nem escrúpulos, um desentendimento, uma briga, morte, fuga... A sequência final, do tiroteio, é fonte de inspiração para muitos cineastas e provou que Truffaut era, de fato, um artista. Baseado no romance Atire no pianista, de David Goodis. Título original: Tirez sur le pianiste. Direção e Roteiro: François Truffaut. Ano e país de produção: 1960, França. Fotografia e duração: p&b, 97'. Atores principais: Charles Aznavour, Nicole Berger, Marie Dubois.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

UM PERSONAGEM CHAMADO BRAZIL

Ao tentar definir o protagonista de Mulher no escuro (1933), de Dashiell Hammett, cujo nome curiosamente é Brazil, Robert B. Parker acabou por resumir, no prefácio à edição de 1988, o espírito que move todos os personagens masculinos do autor: “Os homens, em sua obra, são como Brazil. Algumas vezes, são detetives, às vezes não, mas são homens que entendem a vida tal como Spade a entendia, esperando viesse o que viesse. São homens de poucos amigos e sem um contexto social permanente. Não têm família. A sua lealdade não é para com a lei, mas para com algo diverso, que pode ser chamado de ‘ordem’, um sentido de como as coisas deveriam ser. De muitas maneiras, estes homens parecem fazer parte do povo. Na verdade, ficou, por algumas vezes, muito na moda ver a obra de Hammett sob uma perspectiva marxista ― embora, para tanto, fosse necessário, muitas vezes, forçar um pouco a barra. Mas estes homens parecem imunes às coisas que impulsionam as pessoas. Não parecem ter medo da morte. Parecem resistir às tentações de dinheiro e sexo. Parecem pairar acima da dor e não se surpreendem com a crueldade. Não têm ilusões. Brazil, em especial, parece ter se acomodado dentro de uma grande calma, como se nada lhe importasse muito”. Talvez seja uma evidência de falta de cautela afirmar isso, mas me parece que esta é, no geral, a essência do personagem noir: desencantado com o mundo, sem raízes firmes em nenhum lugar, sem ambições maiores que o simples ato de viver, estóico frente aos fatos da vida, fleumático tanto com homens quanto com mulheres e fiel a uma ordem pessoal, atávica, que jamais sofre um abalo ou, quando o sofre, é de efeito breve, momentâneo.

DASHIELL HAMMETT

Dashiell Hammett (1894-1961). O autor que modernamente conferiu ao gênero policial um novo curso teve, parodoxalmente, uma vida incomum e atribulada. Deixou a escola aos 14 anos e daí por diante acumulou inúmeras ocupações, entre as quais carteiro, jornaleiro, balconista, jardineiro, operador de máquinas, estivador, detetive e, por fim, escritor. Também foi militar, servindo na Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Seus romances e contos mudaram o gênero policial, ao enfatizar o relato de ação em detrimento da narrativa de enigma. O romance O falcão maltês (1930), filmado por John Huston e com Humphrey Bogart no papel do frio e cínico Sam Spade, é considerado o mais característico, e a obra-prima, desta tendência. Em 1951, foi preso pela Comissão de Atividades Antiamericanas, liderada pelo general Joseph McCarthy, por se negar a deletar nomes de prováveis comunistas. De 1934 a 1961, quando faleceu vítima de um câncer no pulmão, Hammett não publicou mais nada. O romance Tulip ficou incabado. Obras: Safra vermelha (1928), A maldição em família (1928), A chave de vidro (1931) e O homem magro (1934), que inspirou uma série de filmes de sucesso, além de dezenas de contos, recolhidos de revistas e reunidos em volumes como Continental Op, inicialmente traduzido no Brasil com o título Ferradura dourada, e Tiros na noite. Em 1988, a novela A mulher no escuro (1933) foi reeditada depois de décadas de esquecimento. Como roteirista de Hollywood, adaptou A chave de vidro para o cinema.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

DUPLA INDENIZAÇÃO

Lançado no Brasil como Pacto de sangue, é em inglês fiel ao título do romance que o inspirou: Double indemnity, de autoria de James M. Cain, transformado em roteiro por outro mestre do policial: Raymond Chandler. É considerado, por parte da crítica, o filme que estabeleceu o gênero noir. Foi elogiado por Alfred Hitchcock. Direção: Billy Wilder. Ano e país de produção: 1944, EUA. Fotografia e duração: p&b, 108'. Atores principais: Fred MacMurray, Barbara Stanwyck, Edward G. Robinson.