Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O SOL POR TESTEMUNHA


Adaptação livre do romance policial O talentoso Ripley (1955), de Patricia Highsmith, o filme O sol por testemunha (1959), dirigido por René Clément, promove no espectador um deslocamento e uma subversão: o ponto de vista é o de um assassino, e estranhamente não o repudiamos. Tom Ripley (Alain Delon) faz um acordo com um milionário, que deseja o filho, Philippe Greenleaf (Maurice Ronet), de volta aos EUA. Ripley aceita a missão em troca de uma generosa quantia. Parte, assim, para a Itália, onde Philippe vive com a namorada, Marge (Marie Laforêt). Philippe é um típico playboy, que não tem muitas preocupações, a não ser a de gastar dinheiro e curtir a vida. Ripley, por sua vez, é um jovem pobre, mas com inúmeras habilidades, como, por exemplo, o talento em imitar a voz e os gestos de uma pessoa, bem como o de falsificar assinaturas. Philippe apenas tolera Ripley enquanto este o serve como um brinquedo, enquanto o diverte. Finda a brincadeira, é preciso colocá-lo em seu devido lugar. O tempo todo Philippe humilha o "amigo", chegando ao ponto de deixá-lo, por várias horas, exilado num bote amarrado ao barco em que estavam, sob um sol escaldante, causando-lhe forte insolação. Ripley, cínico e com a fina ironia que lhe é peculiar, finge não se importar com isso. No entanto, como já invejava Philippe, sua fortuna e sua namorada, vê neste fato a justificativa perfeita para o plano que tinha arquitetado: matar Philippe. E o faz tendo o sol mediterrâneo, às suas costas, como a única testemunha. Em lugar da escuridão da noite, o sol inclemente, quase branco de tão intenso: uma quebra de regra do que se convencionou chamar de cenário ideal para um filme noir. Ripley assume, então, a identidade de Philippe, toma posse dos seus bens e, pouco a pouco, conquista sua namorada. Tudo perfeito, se não fosse por um detalhe: ter deixado — sem querer, é claro — um vestígio do crime: o corpo de Philippe, emaranhado ao casco do navio, e que será descoberto no desfecho do filme. Na referida sequência, Tom Ripley está na praia e é chamado para atender a um telefonema, sem saber que policiais o esperam. Não é necessário explicar o que vai acontecer depois disso. O espectador já sabe. Por isso, o desenlace é apenas sugerido. Sugerido, pois Ripley, destro e escorregadio, é capaz também de se esgueirar da polícia... Portanto, o final é aberto. Além de uma envolvente história policial, O sol por testemunha conta com uma belíssima fotografia e excelentes atuações, com destaque para o ator francês Alain Delon. E acontece com o espectador uma estranha transformação ao assistir a este filme: criamos uma forte empatia com o criminoso, não conseguimos sentir raiva de Tom Ripley. Contemplamos seus atos até com certo pesar, sem dúvida, mas sem detestá-lo — condescendentes, talvez devido à sua beleza e ao seu charme, que também são de Alain Delon. É, talvez.

LIDIANE NUNES, uma infiltrada.

domingo, 22 de novembro de 2009

AGÊNCIA No.1 DE MULHERES DETETIVES

Talvez seja um lugar-comum dizer o quanto o formato do romance policial é maleável o suficiente para incluir qualquer espécie de discussão, através de suas regras aparentemente simplistas (do crime cometido, da caça ao criminoso, do detetive astuto etc.). Assumo o lugar-comum e o repito, pois ultimamente ele tem sido bem alargado.
As possibilidades parecem ser infinitas. As misturas também: podemos lembrar, assim rapidamente, de alguns clássicos: Rex Stout (romance policial e humor), Ross Macdonald (romance policial, discussão social e conflito de gerações), Harry Kemelman (com um rabino como detetive!), o que já havia sido experimentado por G. K. Chesterton, com o seu Padre Brown. As novas gerações de romancistas policiais têm levado ao extremo as mais recentes tendências socioeconômicas mundiais, como a “absoluta urbanização”, a globalização feroz, a violência (física ou psicossocial), a miséria, a corrupção política e institucional. Se o romance policial é uma forma ou fôrma, está servindo muito bem para caracterizar a humanidade atual. Os modernos James Ellroy, James Lee Burke, o nosso brasileiríssimo Alfredo Garcia-Roza (ambientando suas histórias nas ruas do Rio de janeiro), por exemplo, estão dando conta do recado: refletem, discutem, pensam.
Por outro lado, o “modelo” policial está servindo muito bem para algumas experiências muito interessantes e para a apresentação de alguns novos lugares com suas visões especialmente particulares: o marselhês Jean-Claude Izzo, o sul-africano Henning Mankell, o tcheco Josef Skvorecky, a chilena Marcela Serrano. E, se por acaso, há um certo perigo de exotismo barato, isso tem sido superado por uma característica geral (pelo menos, entre os autores que estou citando): a excelência dos textos.
O Agência No. 1 De Mulheres Detetives, de Alexander McCall Smith, tinha tudo para ser um simples livro exótico, a começar pela ambientação: a pequena e provinciana cidade africana de Gaborone, em Botswana, antigo Protetorado de Bechuanalândia. Botswana é quase que uma exceção no grande painel dos problemas que assolam os países africanos, embora ao mesmo tempo seja representativo dos seus enormes contrastes: enquanto por um lado, Botsuana apresenta um dos índices mais tranqüilos de estabilidade econômica e política, por outro lado é justamente o lugar de maior incidência de casos de AIDS na África e, consequentemente, do mundo.
O "exotismo" poderia continuar pela sua história: a gorda e independente Mma Ramotswe (Mma é o tratamento local para uma mulher; seria uma espécie de "Madame", "Senhora") decide fundar seu próprio negócio com a venda do pecúlio herdado do seu pai, algumas cabeças de gado acumuladas durante a vida. Como o gado é um bom indicativo na escala social, principalmente se estiver com boa saúde, ela consegue um bom preço. Compra uma casa (outro bom indicativo social) e, ao invés de abrir uma loja de roupa ou uma oficina, decide abrir uma agência de detetive. Vejamos bem: não há, nunca houve nenhuma espécie de detetive particular na região (ou, até onde podemos saber, no País), muito menos dirigida e assumida por uma mulher. De tal forma, que nem mesmo ela sabe que tipo de trabalho pode acabar pegando. E seu único auxílio teórico é um livro de um curso de detetive por correspondência e que, na prática, se revela bem inútil.
O que poderia se tornar um romance satírico ou até mesmo infantilóide, se transforma nas mãos de Alexander McCall Smith em uma deliciosa crônica de costumes. O autor consegue, com uma escrita simples e direta, transmitir um bom humor saudável em um perfeito equilíbrio de situações e temas delicados e espinhosos. Seus personagens são tão carismáticos e bem delineados que ficam em nossa memória.
É óbvio que o destaque é Mma Ramotswe. Ela esbanja simpatia, compreensão e um bom-senso invejáveis. É um bom-senso nascido de sua condição de mulher e africana num lugar onde o machismo, o moralismo (falso e hipócrita) e os preconceitos religiosos ainda imperam. Para que nasce uma mulher, se não for para casar, ter filhos e lavar a louça? Ou eventualmente trabalhar fora, se o marido estiver desempregado? Ela transita no meio desses problemas e limitações com desenvoltura e coragem. Ela conhece bem a situação, sabe onde está pisando, já foi casada, já perdeu um filho por conta das surras que recebeu, sabe que isso atinge todas as mulheres independentes de sua condição sociofinanceira.
Todos os outros personagens são bem apresentados, não resvalam para a caricatura nem para uma caracterização extremada. Memoráveis, por exemplo, são o próprio pai de Mma Ramotswe, Obed, que ganhou a vida como mineiro nas minas de carvão na África do Sul, enquanto acumulava dinheiro para comprar gado na sua terra natal, e o Sr. J. L. B. Maketoni, mecânico e melhor amigo de Mma Ramotswe, que sonha ser seu novo marido.
Esse equilíbrio do livro é admirável. Ele não cai nem para o dramatismo nem para a comédia desbragada, e o que poderia ser uma intragável salada africana é coerente e suave como o chá de “rooibos” tomado por Mma Romatswe e sua secretária, a única funcionária da agência. Dessa forma, os "casos" podem nos levar a um crocodilo-assassino (o único assassinato do livro, aliás), à busca de um garoto desaparecido, que levanta o véu sombrio dos feiticeiros africanos ou ao desmascaramento de um médico picareta. Mas todos eles têm em comum a sensibilidade, o vislumbre de pedaços da alma humana.


CLAUDINEI VIEIRA. Contista e infiltrado recorrente deste blogue.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A SANGUE-FRIO: 50 ANOS

Era 15 de novembro de 1959, dois homens invadem a casa grande da fazenda River Valley, na cidade de Holcomb, Kansas, EUA, e matam friamente toda uma família: o senhor Herb Clutter, sua esposa Bonnie e seus dois filhos Nancy e Kenyon. Buscavam uma fortuna que não existia e que supostamente estava num cofre, ignorado pela família.
O crime chocou Holcomb, os EUA e o mundo. E chamou a atenção do escritor Truman Capote, jornalista experiente e autor de uma pequena obra-prima, levada às telas de cinema com estrondoso sucesso: a novela Bonequinha de luxo.
Capote praticamente se muda para Holcomb, onde empreende uma longa pesquisa sobre o que ocorreu e, ao fim de muitos incidentes, escreveu A sangue-frio, um dos mais importantes romances-reportagem já escritos, se não o maior, mais bem-acabado, uma verdadeira obra de arte literária e, também, um documento histórico-jornalístico de uma terrível chacina.
Os protagonistas do livro são exatamente os dois assassinos: Perry Smith e Dick Hickock. O cotidiano de ambos, seus passos depois da matança, suas famílias, o que eles pensam sobre o que fizeram e o que acham que vai ocorrer, quando forem capturados. Os Clutter também são examinados ao olhar atento de um escritor que não perde nenhum detalhe. Os pais, os dois filhos, seus sonhos interrompidos, os amigos e parentes, o dia-a-dia traquilo e pacato abalado de repente por dois estranhos na noite...
A investigação policial também é acompanhada passo a passo, desde as primeiras cenas do crime até a execução dos assassinos, num dos maiores exemplos de virtuosismo narrativo de que se tem notícia. Sem parecer artificioso, Capote passa com desenvoltura de um foco dramático a outro — a família, os criminosos, os habitantes da cidade, a polícia —, mostrando que uma boa história flui naturalmente: basta que o escritor domine sua matéria, não pense em se exibir e saiba equilibrar estilo com informação, estética com funcionalidade.
Elegante, fluido, artístico, poético, cruel e inesquecível. Longe de ser o óbvio relato de um crime
bestial, A sangue-frio constitui o monumento de um tempo e um lugar, abalados ambos pela atitude impensada de dois monstros, que fizeram de uma determinada noite de novembro de 1959 uma inesperada pintura de sangue e palavras.

domingo, 8 de novembro de 2009

MÚSICA PARA OS OLHOS

Para os apreciadores de jazz, cinema noir e literatura policial, este CD é, obviamente, um sonho. Jazz at the movies band é a banda; White heat: film noir, o disco, lançado nos EUA em 1994. Numa ideia genial, o sexteto formado por Bill Cunliffe, Mark Portman, Matt Harris, Roberto Valle, Bernie Dresel e Brad Dutz reuniu 13 dos maiores temas musicais do cinema noir e, com o apoio de músicos adicionais, simplesmente arrasou. Os filmes e as canções são: This gun for hire (dirigido por Frank Tuttle, 1942), The bad and the beautiful (Vincent Minnelli, 1952), White heat (Raoul Walsh, 1949), Double indemnity (Billy Wilder, 1944), Touch of evil (Orson Welles, 1958), Key largo (John Huston, 1948), Laura (Otto Preminger, 1944), The lost weekend (Billy Wilder, 1945), The postman always rings twince (Tay Garnett, 1946), The asphalt jungle (John Huston, 1950), The big sleep (Howard Hawks, 1946), The strange love of Martha Ivers (Lewis Milestone, 1946), The naked city (Jules Dassin, 1948). Um CD que é uma obra-prima, como muitos dos filmes aqui presentes, entre os quais Dupla indenização, A marca da maldade, O destino bate à sua porta, O segredo das joias e O sono eterno, alguns baseados em romances célebres, de escritores não menos célebres, como Raymond Chandler, James M. Cain, Vera Caspary (autora de Laura) e Whit Masterson (autor de A marca da maldade). Bem, prepara aí o martini (bem seco) ou um vinho, liga a "vitrola" e dispara. Boa música para os ouvidos e também para os olhos.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

UM KILLER SENTIMENTAL

É inquestionável que o primeiro "romance" policial da literatura ocidental é a tragédia Rei-Édipo, de Sófocles. Porque o incesto era um crime grave na Grécia antiga, Édipo se pune gravemente, furando os próprios olhos. Mas o que resta a sociedades cujas leis não são levadas a sério e cujos criminosos raramente são punidos gravemente, a não ser que sejam pobres, um rosto anônimo na multidão? Resta a ironia, a sátira, a blague. É com esses recursos que o escritor chileno Luis Sepúlveda escreve suas duas novelinhas policiais, reunidas no volume: Diário de um killer sentimental, seguido de Jacaré (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2006). A peça mais importante do conjunto é sem dúvida o primeiro relato: história de um matador profissional que age em escala mundial. Residente em Paris, ele sai para matar na Espanha, na Alemanha, nos EUA e em outros países, sempre contratado por telefone, numa linguagem em código que joga com as possibilidades do jargão comercial. A vítima é sempre um produto. Fiquei pensando no meu humilde matador Pio Gatilho, protagonista de muitos dos meus contos, e que age nas cercanias de Salvador, BA, quando muito noutra cidade do Estado. Ele não passa de um matador municipal que às vezes chega à escala estadual... Já o seu similar chileno, ele atingiu o ápice e, enquanto mata, passeia pelos países, conhece novas cidades, faz turismo involuntário, ouve outros idiomas, expõe-se a novos climas e tem gratificantes experiências amorosas. É uma matador em escala maior, candidato a um possível Prêmio Nobel por folha de serviços. O que Sepúlveda parece nos dizer, metaforicamente, é que todas as nações matam por encomenda, e todos os povos são um mesmo povo. Nesse aspecto, não há Primeiro nem Terceiro mundos. Somos todos iguais. Pois o Killer Sentimental, de ficha irrepreensível, qualificado, eficaz e que jamais falhou numa missão, está abalado emocionalmente por um caso amoroso que aparentemente chegou ao fim e, afinal, falha. Outra ironia: nada pode parar aquela fria máquina humana de matar, exceto o amor, o mais velho dos sentimentos humanos. Nem o medo da morte, nem o temor de ser apanhado, nem a certeza de que, neste caso, as leis se fariam cumprir (quando não para dar hipocritamente exemplo e salvar as aparências), nada disso é o bastante. Só o amor, e é também o amor que vai redimi-lo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

MAIGRET

Maigret é alto, troncudo, de ombros largos, está sempre com um cachimbo entre os lábios, e um enorme sobretudo escuro, que são como uma marca registrada. Quase nunca perde a calma (embora, quando perde, seja algo digno de se ver), típica de sua origem humilde em uma província pobre do interior da França. Sua antiga pretensão fora ser médico e chegara a fazer alguns anos de faculdade, quando seu pai morreu, e ele precisou de uma profissão que lhe permitisse um rendimento imediato. Por isso, entrou para a PJ, a Polícia Judiciária, como é conhecido o corpo policial de Paris. Inteligente, perspicaz, mesmo que com uma enorme timidez, destacou-se rápido. Os anos de rua lhe permitiram conhecer como ninguém os becos parisienses e seus habitantes: prostitutas, pequenos comerciantes, hoteleiros, mecânicos, os bares, as boates, as pensões, os relojoeiros, banqueiros, Ministros de Estado, os solitários e os bon-vivants, os pequenos e os grandes contrafeitores, as pequenas e as grandes paixões dos seres humanos. E é isso o que mais lhe interessa: além das pistas eventuais e toscas, as pegadas e os álibis (que sempre precisam e são checados, sem dúvida), o que mais lhe importa é conhecer as atitudes, os pensamentos, seus apetites, as suas motivações internas para o crime.
Nada de psicologismos baratos ou interpretações psiquiátricas, nada disso. Maigret vai atrás dos pequenos hábitos, do cotidiano, do usual, do costumeiro. Gosta de se sentar na mesma cadeira que a vitima costumava se sentar, tomar dos mesmos aperitivos, impregnar-se do clima da casa onde ela vivia. "Clima", aliás, é uma palavra muitas vezes associada aos livros de Maigret, de uma forma talvez até que meio abusada, mas creio que bem válida. Ele não se preocupa em fazer deduções, tirar grandes teorias. Ele não deduz, sente. Ao final do caso, não sabemos somente quem foi o assassino ou as circunstancias que o levaram ao crime. Ficamos conhecendo, sobretudo, um pouco mais do próprio ser humano. Ou, em outras palavras, de nós mesmos.
Criado em 1931 por Simenon, o inspetor Maigret foi um divisor de águas na revolução que estava se processando na literatura policial. Finalmente, o detetive era um ser humano falível, que tinha dúvidas morais e preocupações existenciais. Do outro lado do oceano, nos Estados Unidos, Dashiell Hammett havia arregaçado as convenções do gênero, ao retratar o cotidiano violento e brutal das grandes cidades, com heróis e detetives que vinham de uma realidade nua, crua, que todas as pessoas podiam constatar em seu próprio dia-a-dia. Georges Simenon, escritor e jornalista belga radicado na França, por um ângulo completamente diferente, completava o trabalho, e acrescentava uma dimensão artística que nunca havia sido vista antes. Na verdade, apesar do imediato e estrondoso sucesso que o acompanhou desde sua estréia, Maigret conseguia deixar perplexos tanto aos amantes do gênero policial (onde o detetive super-inteligente, charmoso e infalível? onde o supervilão? os enredos mirabolantes, as histórias fantásticas? todos substituídos por hoteleiros, barqueiros, velhos aposentados, seres comuns), quanto os cultores das "belas-letras", um público para quem o romance policial era sinônimo de literatura rasteira, rasa, "popular", de péssima qualidade. Simenon conseguia o que parecia impossível: misturava o enredo policial com alta qualidade literária, o que demorou muito para ser reconhecido.


CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista. Seu conto ÔNIBUS-IA foi premiado e publicado em caderno especial de O Estado de São Paulo, em janeiro de 2003.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

ZODÍACO


O filme Zodíaco, David Fincher, é tão bom quanto seu filme mais célebre: Seven. Lançado em 2007, conta a história verídica de um criminoso em série, que se identifica como Zodíaco e manda cartas com mensagens codificadas para a imprensa, assumindo os brutais assassinatos e anunciando outros. No entanto, a narrativa não se detém apenas nos crimes — que não seguem um padrão — ou no irônico criminoso, pelo contrário: o foco maior é para aqueles que se dedicam à investigação das mortes. Chamam a atenção, por exemplo, a desilusão do detetive David Toschi, depois de anos à procura do famigerado Zodíaco, e a enorme renúncia que os policiais precisam adotar em relação à vida familiar, na tentativa de desvendar o enigma. Não é de admirar que muitos desistam dessa área, a investigação de homicídios, e migrem para outra, como fez o personagem Armstrong, companheiro de Toschi. O filme prova, também, que na vida tudo é relativo. Nem sempre a polícia é a mais qualificada para encontrar um assassino — um simples cartunista foi mais longe na investigação que os policiais — e, às vezes, a ligação dos fatos, a dedução e até mesmo a intuição são as únicas provas, na falta de evidências concretas. Mas, quando não se tem certeza, uma prova incontestável, a impunidade continua, e o criminoso permanece em liberdade, praticando seu macabro esporte: caçar o próprio homem. Nada surpreendente, afinal de contas o homem é “o animal mais perigoso”. Na cena em que Toschi vai interrogar Leigh — o suposto assassino — e vê que ele usa botas iguais as que produziram as marcas encontradas no local de um dos crimes e o relógio, da marca Zodíaco, que inspirou o epíteto do criminoso, torcemos para que Toschi o prenda ali mesmo. No entanto, não é assim que as coisas funcionam. Enquanto se prende um ladrão de galinhas sem muito o interrogar, mesmo sendo só galinhas, um assassino fica à solta por falta de provas. Quanto à forma, apesar de longo, o filme prende o espectador até o final, não apenas pelo suspense, mas por tratar de um tema, acima de tudo, humano e, sem dúvida, pela pitada de ceticismo, sarcasmo e humor, aspectos comuns ao gênero. E há ainda a fotografia, a bela fotografia noturna que dialoga com o grandes filmes do gênero noir, recriando seu palco predileto, as noites, que, de tão abertas à experiência humana, são quase um “segundo mundo”.

Título original: Zodiac. Direção: David Fincher. Roteiro: James Vanderbilt, baseado no livro Zodiac, de Robert Graysmith. Ano e país de produção: 2007, EUA. Fotografia e duração: colorido, 158'. Atores principais: Mark Ruffalo, Robert Downey Jr., Jake Gyllenhaal e Chloë Sevigny.

LIDIANE NUNES, uma infiltrada.

domingo, 1 de novembro de 2009

NUNCA AOS DOMINGOS

Em cem capítulos curtos (o mais longo tem sete linhas; o mais curto, uma palavra), o escritor mexicano Francisco Hinojosa escreve uma novela policial irônica e original. Cada capítulo compreende uma página e, como num mosaico ou quebra-cabeça, compõe o contidiano de um homem frio e insensível, espécie de Mersault das Américas, que vai matar por tédio familiar, ódio aos domingos e náusea pelo gênero humano. Reduzida ao seu esqueleto (o capítulo 1 se resume a "A gorda do andar de cima me dá náuseas", e o 38, a "Depois falamos sobre a vida"), esta novela é uma paródia dos tradicionais romances policiais anglo-americanos e uma ironia com a forma que estes em geral adotam: muitas páginas de descrição de roupas e ambientes, ênfase exagerada em fatos secundários e dispensáveis, policiais maníacos e sarcásticos, e um criminoso que sempre mata por algum motivo (dinheiro ou loucura), exceto porque a existência é vazia e sem sentido, condição que, no relato de Hinojosa, atinge seu ápice sempre aos domingos, como uma confirmação da sombria conclusão de Cioran: "A única função do amor é nos ajudar a suportar as tardes dominicais, cruéis e incomensuráveis, que nos ferem para o resto da semana ― e para a eternidade". A essa palavra assustadora, ao mesmo tempo dia de descanso e vazio existencial, se reduz o centésimo capítulo, que fecha o livro: "Domingo". O leitor atento sabe o que acontecerá. Ao desatento resta balbuciar: "Que livro estranho!" Se não fosse estranho, não seria arte. Apenas mais um relato policial, sem qualquer atrativo.

sábado, 31 de outubro de 2009

ARTE E FUNCIONALIDADE

"Era uma manhã clara, sem poluição nem grande nevoeiro; o sol brilhava na superfície de piscina que começava do outro lado da parede de vidro do bar e se esparramava até o final do restaurante. Uma garota de maiô colante branco, com um rosto agradável, subia a escada para o trampolim. Olhei a faixa branca que havia entre o bronzeado das coxas e a roupa. Olhei-a sexualmente. Logo ela estava fora do meu ângulo de visão, cortada pela profunda caída do teto. Um momento depois eu a vi cintilar num relance. As gotas subiram a ponto de pegar o sol e formar arco-íris quase tão bonitos quanto a garota. Mas daí ela subiu a escadinha da piscina, tirou a touca branca e a sacudiu. Rebolou até uma mesinha branca e sentou-se perto de um sujeito grande de calças brancas de algodão, óculos escuros e um bronzeado tão escuro, que ele só poderia ser o sujeito encarregado de cuidar da piscina. Ele esticou a mão e deu-lhe umas pancadinhas na coxa. Ela abriu a boca como se fosse um balde, e sorriu. Meu interesse por ela terminou. Não cheguei a ouvir o riso, mas aquela abertura no rosto quando ela mostrou os dentes foi mais do que suficiente." (O longo adeus. L&PM, 2000, p. 96-7. Tradução de Flávio Moreira da Costa.)

Este é um trecho representativo da arte de Raymond Chandler. A descrição sutil de um ambiente; um ser fascinante, quase sempre uma mulher; o prazer visual que sua presença desperta; a sensualidade apenas sugerida, sem maiores voos verbais; a ironia (porque está bronzeado, o cara só pode ser o empregado encarregado da piscina) e a auto-ironia (quando mostra, pela reação do homem, que ele não é um empregado, e pela da garota que ela está com o sujeito e gosta disso) do narrador; a precisão verbal que, discretamente, apresenta um mundo específico, das classes abastadas, representado aqui pelo acúmulo de referências à cor branca, símbolo de bom-gosto e riqueza: maiô branco, faixa branca da pele da garota, touca branca, mesinha branca, sujeito de calças brancas de algodão; a poesia do mundo físico: "profunda caída do teto", "eu a vi cintilar num relance"; e humor: "rebolou até uma mesinha branca", "abriu a boca como se fosse um balde".
Este é Raymond Chandler, seu estilo e sua arte, sua técnica e sua estética. Num breve texto temos tudo o que, nele, se expressa para a funcionalidade das palavras, para o andamento sem entraves da história e também para não-ditos, sugestões, ironias, humor, precisão histórica e uma feliz e eficiente subjetividade.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O LONGO ADEUS

A crítica é quase unânime em afirmar que o único livro do gênero policial-noir capaz de se ombrear com O falcão maltês e até mesmo superá-lo é O longo adeus (The long goodbye), de Raymond Chandler. Os motivos de tal afirmação não são poucos nem gratuitos.
Primeiramente, se O falcão maltês é um romance de ardilosos mentirosos (até o falcão é uma mentira), O longo adeus é uma história de pessoas perdidas, feridas e solitárias. Segundo, se naquele célebre livro de Hammett o dinheiro move a narrativa, impulsionando as personagens em direção ao crime e à mentira, no de Chandler monetariamente todos estão satisfeitos com o que possuem (uma evidência simbólica desta condição é a nota de 5 mil dólares que o detetive Philip Marlowe encerra em seu cofre, pois não precisa gastá-la), mas, por outro lado, estão todos doloridos e desencantados.
É literalmente um romance sobre o vazio, sobre os dias marcantes de um passado que, por mais que os personagens se esforcem, não conseguem esquecer; sobre a falta de amor, a existência fútil e sem horizontes; sobre a falta de sentido humano num ambiente de riqueza, dissolução e promiscuidade. Nesse sentido, a trama desloca-se da sua essência policial para o núcleo da própria condição humana e suas perdas ─ físicas ou psicológicas. E as mortes que ocorrem (e não são poucas) são atos antes de desespero que de cobiça ou capricho criminoso. O crime é uma consequência da vida, das relações, das dores. Todos os personagens ou perderam alguma coisa ou jamais acharam o que procuravam.
Lennox perdeu metade do rosto na Guerra e também a esposa, que jamais voltou a encontrar; além disso, sua esposa atual é uma mulher com muito dinheiro e igualmente muitos homens. Eileen perdeu o único amor de sua vida e vive com um escritor bêbado, Wade, que, por sua vez, perdeu o entusiasmo criativo e pouco a pouco vai perdendo o talento. Philip Marlowe é só um “detetive barato”, quase sem clientes e que tem o estranho hábito de ajudar as pessoas em troca de nada, por um decadente altruísmo ou um sentimentalismo de chá de caridade; também é sozinho, um solitário convicto, que almoça e janta diante de uma cadeira vazia; nem secretária possui. É numa dessas noites de abandono que ele conhece Terry Lennox e dá início a um périplo de álcool, ardis, ciladas, sangue e corpos imóveis.
Um outro aspecto a se ressaltar neste romance de Chandler é o caráter de reflexão. O autor não se satisfaz em criar uma trama policial. Descreve com precisão cirúrgica os cenários, mergulha no pensamento de seus personagens, analisa-os social e psicologicamente, expõe suas virtudes e também seus defeitos. Ninguém ─ nem instituição alguma ─ passa incólume por sua pena e seu olhar. E tudo isso num estilo direto, seco, irônico, analítico e, em muitos trechos, poético. O que em Hammett é só esboço em Chandler comparece em massa de cor, formas, ângulos, sabores, odores e perspectivas. Não é por acaso que se afirma que em Chandler o policial-noir atingiu o patamar de arte. De fato ─ e podemos até sugerir que Hammett, Cain, Goodis e Chandler formam uma espécie de quarteto desta verdade. Cada um, a seu modo, fez pelo policial-noir o que somente os grandes ficcionistas fizeram pela narrativa literária em geral. Claro que o relato policial moderno não se restringe a eles: Patricia Highsmith e Georges Simenon são duas vozes
antípodas, duas correntes específicas representadas, cada uma, por um único escritor...
Chandler não chegou a tanto, mas escreveu dois ou três romances ─ e o maior deles talvez seja O longo adeus ─ que, extrapolando o gênero policial, tornaram-se eternos. Retratos de um lugar, um tempo e uma gente ─ a Califórnia dos sonhos frustrados.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A DÁLIA AZUL

A Dália Azul é uma curiosa mistura do trabalho de dois artistas fabulosos que ajudaram a moldar a cultura do século 20, temperada com uma forte dose de ironia do destino.
Os artistas são, de um lado, Raymond Chandler, romancista e contista de histórias policiais, um dos pilares para a formação e renovação da literatura contemporânea (não só policial), ao prosseguir com a revolução detonada por outro grande escritor norte-americano, Dashiell Hammett. Juntos, eles trouxeram a figura tradicional e intelectualóide do detetive cerebral (representado por Sherlock Holmes e Hercule Poirot) para a dura realidade do cotidiano urbano, feroz e violento
de nossa época. A guinada que eles proporcionaram determinou e influenciou o cinema, o teatro, a literatura e as demais artes. Em consequência, Chandler escreveu o roteiro do filme A Dália Azul para Hollywood, na década de 40.
De outro lado, Filippo Scózzari, quadrinista italiano que participou da revolução na década de 70 nas artes gráficas, na contra-cultura e nas HQs, pelas páginas da estremecedora revista Frigidaire. Nesta anárquica, anarquizante, deglutidora e vomitória metralhadora cultural, tudo cabia. Exatamente como se fosse uma geladeira, estilo Frigidaire. Portanto, a gozação já começava pelo próprio nome. Subversão era seu lema secreto (nem tão secreto, por certo). Assim, era possível encontrar “uma mistura caótica
e cínica de textos, fotos e quadrinhos a respeito da guerrilha da América Central, Devo, travestis brasileiros, William S. Borroughs, Patagônia, produção de heroína na Tailândia, Bioy Casares, Céline, rock polonês e coisas assim”. Havia um encarte inicial, chamado apropriadamente de Freezer: “uma antologia de fotos de cadáveres, vítimas fatais de atividades eróticas extremas”, conforme revela Rogério de Campos em sua apresentação da edição brasileira de A Dália Azul, pela editora Conrad.
Bueno, Filippo Scózzari teve a incumbência de retomar o roteiro escrito por Chandler e transformá-lo numa HQ, publicada, por fim, em
capítulos, pela Frigidaire.
A grande, enorme ironia disso tudo é que os dois odiaram até o mais profundo de sua alma o que fizeram.
Aliás, há mais uma ironia para “dourar” o seu ódio: tanto o filme quanto a HQ são considerados atualmente clássicos, cada um de seu lado. Talvez seja meio exagero considerar o filme lançado em 1945 como um clássico. Deixo passar. Como diz Rogério de Campos, o tempo, os especialistas e os fãs de Chandler deixaram o filme quieto e quase esquecido.

O fato crucial é que Chandler odiava Hollywood, odiava a high society californiana e cinematográfica, odiava escrever roteiros, principalmente por conta das pressões e cobranças ridículas e medíocres da indústria hollywoodiana; odiava aquele ambiente faiscante, fútil e vazio, e odiava ganhar aquele dinheiro que, em se tratando de tal lugar, significava M-U-I-T-O dinheiro. Teve que se encharcar de álcool e se guardar em regime fechado dentro de casa para escrever o roteiro de A Dália Azul. E em três semanas, pois o astro principal do filme, Alan Ladd, seria convocado pelo Exército e não poderia gravar mais, depois. Chandler suou para dar sentido a uma história que não lhe atraiu desde o começo: logo após a Segunda Guerra Mundial, o ex-soldado Jonnhy Morrison (Allan Ladd) volta afinal para casa e descobre que não só sua mulher Helen (Doris Dowling) o traía como seu filho pequeno morrera em um acidente provocado por ela, quando dirigia embriagada. Agora, Jonnhy estava desempregado, seu casamento era uma piada, não se ajustava mais à vida social, envolve-se num relacionamento complicado com a complicada Joyce (Veronica Lake) e seu melhor amigo estava com problemas mentais sérios por conta de um ferimento na cabeça. Chandler desfilava clichês e mais clichês e se complicava para dar um fecho a todas as pontas levantadas. No meio de tudo, um assassinato explode, pois é claro que deveria ter um assassinato, mortes, suspeitos e investigações, já que afinal de contas se tratava de um filme policial noir e não um drama de guerra.
Chandler xingou, esperneou e reclamou, mas a ironia foi bem mais forte: o filme foi um sucesso de público, até a crítica se resguardou sem incenso, mas também sem lascar o pau. E o roteiro chegou a ser indicado para o Oscar.
Trinta e cinco anos depois foi a vez de Scózzari. Ele pegou o roteiro, leu, considerou chato e boboca, ficou desanimado, mas engoliu em seco e foi em frente. À medida que escrevia e desenhava os capítulos, seu desânimo e impaciência foram crescendo até a exasperação. Não se conformava em trabalhar numa porcaria tão grande, monótona e besta (na sua opinião). Aos poucos foi demonstrando sua insatisfação com pequenos dardos lançados de vez em quando, saía do texto, ironizava, escrachava, proporcionava novos sentidos à história e aos personagens. Só assim suportou o ano inteiro de trabalho que durou a série, até o ponto final, onde pôde expressar todo seu ódio em um epílogo original, todo seu, e absurdamente genial e maravilhoso.
Scózzari nem suporta pensar nisso, mas sua imagem está indissoluvelmente
associada a — “grrrrr!” — Dália Azul.
Podemos ser compreensivos e até entender todos os percalços sofridos por Raymond Chandler e Filippo Scózzari. No entanto, é através de seu sofrimento que podemos, hoje, apreciar o filme (que, se não chega a ser um clássico, também não é tão ruim) e a novela gráfica, exemplo perfeito do que pode conseguir o talento e a genialidade de um artista. Azar dos autores. Sorte, muita sorte, para nós, leitores.

CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista e mora em São Paulo.

domingo, 25 de outubro de 2009

A CHAVE DE VIDRO

Dashiell Hammett (1894-1961), nascido em St. Mary's Country, Maryland, cresceu e foi criado na Filadélfia e em Baltimore. Abandonando os estudos aos 14 anos, passou a exercer as mais variadas e díspares profissões: foi menino de recados, jornaleiro, balconista, apontador, manobrista, operador de máquinas, estivador e, por fim, detetive, atividade que interrompeu quando convocado para a Primeira Grande Guerra, durante a qual alcançou o posto de sargento. Com a saúde afetada, perambulou por hospitais até poder retornar ao trabalho na Pinkerton's Detective Agency. Dedicando-se depois à literatura, logo conquistou brilhante êxito, tendo muitas de suas histórias imediatamente transpostas para o cinema.
Por ocasião do último conflito mundial, voltou aos campos de batalha, outra vez como sargento, servindo a maior parte do tempo nas Aleutas. Perseguido pelo macartismo, foi vítima da "caça às bruxas", falecendo pouco depois desse episódio, que lhe afetou mais ainda a saúde.
André Gide, que o leu por sugestão de André Malraux, assim como Sinclair Lewis, Robert Graves e Louis Untermeyer, entre outos intelectuais de projeção, admiravam muito os seus romances. Na verdade, Dashiell Hammett foi considerado, desde logo, um mestre indiscutível da ficção policial, não só pela estrutura das histórias, por sua prosa limpa e direta, inteiriça e econômica, como também pela caracterização, precisa, exata e ágil, da psicologia dos personagens.
Além dos enredos intrincados e intrigantes, que fascinam pelo suspense e pela ação, sem nunca, porém, ultrapassarem os limites da credibilidade, há algo de novo na literatura de Dashiell Hammett: o seu conteúdo social. É talvez o único autor desse gênero de ficção preocupado em retratar, com realismo e verdade, as mazelas da sociedade. Seus críticos acentuam mesmo que foi ele um agudo observador da corrupção e um sensível sismógrafo da subjacente violência que a toda hora solapa a vida americana.
A chave de vidro é bem um exemplo desse aspecto da obra de Dashiell Hammett. Nesse livro, ele conta a história de uma cidade dominada por uma quadrilha de gângsteres políticos. A partir do assassinato do filho de um senador, vai o romancista descrevendo como os fora-da-lei exerciam e impunham o terror e a violência. O jogador Ned Beaumont, amigo do infortunado pai e eminente cidadão, é quem vai descobrir os assassinos do jovem, enfrentando toda a sorte de perigos e ardis. As cenas que se sucedem até a elucidação do caso são duras, ásperas, brutais mesmo. Graças, porém, à eficaz comunicabilidade de Dashiell Hammett, que escrevia sobre o que conhecia, que se baseava nas suas vivências pessoais, nenhum leitor abandona o volume. Vai até o final devorando-o emocionado, chocado e esclarecido.

MARIANO TORRES, na orelha à primeira edição brasileira: Civilização Brasileira, 1970.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O HOMEM MAGRO

O homem magro (The thin man) é o último de um total de apenas cinco romances de Dashiell Hammett que provocaram uma verdadeira revolução no mundo da literatura.
Em um período de onze anos, Hammett modificou todo o conceito do que fosse um romance policial. Isto é: aquelas histórias em que um detetive supergênio, contando somente com a força do seu intelecto (e desdenhando do laborioso e "incompetente" esforço das forças policiais), resolvia seus casos simplesmente sentado no sofá e fumando cachimbo, foram de um momento para outro ultrapassadas e tornadas ridículas.
Pela primeira vez, sentia-se que o detetive era uma pessoa de carne e osso que também apanhava, levava tiro ou ficava resfriado. Pela primeira vez, percebia-se que o mundo onde essa pessoa caminhava era o mesmo que o do leitor, com toda a sua violência, corrupção e feiúra. E que ele respondia na mesma moeda, tal qual o leitor adoraria também fazer, se tivesse a mesma coragem, competência ou experiência.
Experiência Hammett certamente possuía. Depois de passar anos trabalhando (ou tentando trabalhar) em empregos os mais diversos (de office-boy a estivador, de roteirista de Hollywood a professor de inglês), ele próprio foi detetive da quase mitológica agência Pinkerton, onde ficou mais de dez anos. Não foi lá um grande detetive, memorável, mas quando percebeu que podia passar isso para o papel... Bem, foi o equivalente a um verdadeiro terremoto.
Começou publicando contos em revistas de papel barato e grande distribuição, a chamada pulp fiction, termo que ficou famoso entre nós pelo filme do Quentin Tarantino, uma franca homenagem a este tipo de literatura. Em 1929 publicou seu primeiro romance, The dain curse, que, na verdade, era um conto um pouco mais extenso do personagem principal de histórias anteriores, o detetive da agência Continental Op.
Seu livro mais famoso é, sem dúvida, O falcão maltês. De qualquer forma, foi o mais glorificado, incensado e copiado. E quando foi refilmado (pela terceira vez!) ajudou, de quebra, a alicerçar um novo gênero de filme, o Cinema Noir, alavancando a carreira do diretor John Houston e transformando em astro um ator de filminhos B, um tal de Humphrey Bogart.
O homem magro foi publicado pela primeira vez em 1934 e se tornou um dos seus mais permanentes sucessos. Também foi filmado e teve várias continuações. Virou uma série de rádio (lembremos do grande poder de comunicação que o rádio possuía na época) que durou décadas e, quando a televisão começou a ocupar espaço, também virou telessérie. Foi uma fonte de renda constante para Hammett, que viveu dos direitos autorais destas adaptações até o final da sua vida.
Os personagens principais, Nick Charles, e sua esposa Nora, esbanjam charme e simpatia, mesmo com sua cínica visão da realidade, enquanto transitam entre marginais do baixo mundo e festas na alta sociedade. Para eles, a linha divisória entre estes dois mundos é extremamente tênue. Sem querer entrar numa discussão sobre qual seria sua obra-prima, Hammett está aqui em sua melhor forma. Os diálogos estão mais secos, cortantes e duros do que nunca, o humor negro é sempre mordaz e cáustico, e o timing e o ritmo da ação estão perfeitos. Para degustar ainda mais este livro, melhor não esquecer um bom copo de Martini na mão. Seco, obviamente.
Depois da publicação deste livro, no auge do seu sucesso e fama, respeitado pelos críticos e adorado pelo público até sua morte em 1961, Hammett não escreveu mais uma linha sequer, exceto algumas paginas do que seria um novo romance (que, ironicamente, não parecia ser um romance policial).
Discute-se muito a razão disso, muito embora a bebida tenha sido um motivo mais do que suficiente. Ele literalmente "bebeu" a fama e o dinheiro que foi possível ou que sua mulher permitiu. No final de sua vida, tentou desesperadamente escrever roteiros e peças de teatro que nunca foram levadas adiante.
Sua última grande atuação foi durante a perseguição do macarthismo, quando disse não conhecer o nome dos contribuintes de um grupo com suspeitas de ligações comunistas, do qual ele era simplesmente um dos secretários da tesouraria. Mais "hammettiano" do que isso, impossível.


CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista, com incursões também pelo relato policial. Publicou Desconcerto (São Paulo: Demônio Negro, 2008).

domingo, 18 de outubro de 2009

SEM FLORES DE MAGNÓLIA

Raymond Chandler, além de escrever romances e contos, foi um pensador das formas e tons que esses gêneros adotaram quando a serviço do gênero policial. No ensaio A simples arte de matar, ele faz um contraponto entre a história de detetive clássica (de enigma ou mistério) e o estilo que Hammett implantou, ao deslocar o "assassinato de dentro do vaso veneziano" para "uma ruela qualquer", pois desde o início Hammett "escreveu para pessoas que possuíam uma atitude perspicaz e agressiva perante a vida", pessoas "que não tinham medo do lado menos atraente das coisas; elas viviam nele". E continua: "A violência não as fazia esmorecer; ela se encontrava logo ali, em suas ruas. Hammett devolvia o assassinato para o tipo de gente que o cometia 'por razões', não só para fornecer um cadáver; e com os recursos à mão, não com um duelo de pistolas 'feitas à mão', curare e peixes tropicais. Ele colocava essas pessoas no papel como elas eram e as fazia falar e pensar na linguagem que custumeiramente usavam para esses fins". E toca num ponto sempre controverso, embora não para mim: "Ele tinha estilo, mas seu público não sabia disso, porque estava numa linguagem que supostamente não era capaz de tais refinamentos (...). Hammett era conciso, frugal, duro, mas fez sempre e repetidamente aquilo que só os melhores escritores conseguem fazer: escreveu cenas que parecem nunca terem sido escritas antes". Por fim: "E ainda há muita gente por aí que diz que Hammett não escrevia histórias de detetive; ele teria escrito duras crônicas sobre a vida sórdida nas ruas das grandes cidades, colocando nelas um elemento adicional, de mistério, assim como quem põe uma azeitona num martíni seco. Quem diz isso são as velhas senhoras perturbadas, de ambos os sexos (ou de nenhum sexo) e de quase todas as idades, que gostam de ter seus assassinatos perfumados com flores de magnólia e não querem ser lembradas de que assassinato é um ato de infinita crueldade, mesmo que os criminosos às vezes se pareçam com playboys ou professores universitários ou mulheres simpaticamente maternais de suaves cabelos grisalhos". "Há também uns poucos defensores, bastante assustados, do mistério formal ou clássico, que pensam que uma história não é de detetive se não propõe ao leitor um problema formal e exato, onde os indícios encontram-se arranjados com lindas etiquetas ao redor deste problema." Penso que as palavras acima (de um Chandler senhor de sua matéria) esclarecem, de uma vez por todas, uma dúvida e fecham uma questão: a forma não está no assassinato, como pretendiam Agatha Christie e seus seguidores, mas no texto que o representa; e que é a partir de Hammett que o gênero policial perde a inocência e se acerca de um desejo de consciência do que sejam seu assunto e sua forma. Ora, é exatamente este grau de consciência quanto às suas possibilidades que faz com que uma simples narrativa de ficção (policial ou qualquer outra) deixe de ser um estado de linguagem a serviço de um gênero para ser literatura.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A CURIOSIDADE MATOU UM GATO

Um pacato cidadão de província, infenso à política, a mexericos e a discussões mais acaloradas, recebe uma carta anônima capaz de fazer qualquer pessoa gelar. Lacônica, certeira como uma flechada no coração e irrevogável como o destino de um personagem de tragédia grega, a mensagem avisa: “Esta carta é a tua sentença de morte, por aquilo que fizeste morrerás”. A reação inicial do destinatário da correspondência é de surpresa, depois de medo e, por último, de reconfortante tranquilidade. Afinal, revendo toda a sua vida, não consegue se lembrar de nada de grave que fizera no passado e que justificasse sua morte.
Dias depois da ameaça, o homem é assassinado, juntamente com um amigo com quem saíra para caçar lebres e perdizes. Mas seria ele mesmo o alvo principal do assassino, ou dos assassinos, já que a sequência da história indica um terrível complô? Por que os dois foram mortos? Quem os matou e por quais motivos? A polícia local começa a investigar o crime, mas não faz nenhum avanço, como se não desejasse mesmo fazer qualquer avanço...
Então entra em cena um tímido professor de literatura e história, que começa a juntar as peças do quebra-cabeça e passa investigar o caso, por conta própria, mais por curiosidade intelectual do que pela vontade de fazer justiça. Porém, é aí, na curiosidade desmedida (a curiosidade matou o gato, já diz um ditado popular), que mora o perigo. Essa é a trama do romance A cada um o seu, do italiano Leonardo Sciascia, uma história policial que se lê de uma sentada, seja pela brevidade do relato seja pela interesse em desvendar os assassinatos que impactaram o retraído professor.
Não somente um romance policial. Também uma história de corrupção, arrivismo político-social e traição; uma patologia (ainda que em recorte) da máfia siciliana, já que a história se passa na Sicília, umas das regiões mais pobres da Itália pós-Mussolini. O paulatino desvendar dos personagens, pelo professor-detetive, parece confirmar a máxima do pároco local: “Estamos sempre entre vermes”. O desfecho da história certamente seria diferente, se o curioso professor tivesse dado ouvidos às palavras de um velho ocultista, pai de um dos homens assassinados: “Certas coisas, certos fatos, é melhor deixá-los na escuridão em que se encontram”.
Um thriller, de leitura obrigatória, que mistura assassinato, polícia e política, tão pródigos na vida real.


ELIESER CESAR, um infiltrado, é escritor, professor e jornalista. Autor de A garota do outdoor (2007).

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

SEM AFETAÇÃO

"O maxilar de Spade era largo e ossudo, seu queixo era um V muito pronunciado, abaixo do V mais suave, formado pela boca. As narinas se arqueavam para trás para formar um outro V, menor. Os olhos amarelo-cinzentos eram horizontais. O tema do V era retomado pelas sobrancelhas um tanto peludas que se erguiam a partir de duas rugas gêmeas acima do nariz adunco, e o cabelo castanho-claro tombava – de suas têmporas altas e retas – em uma ponta, por cima da testa. De modo bem ameno, ele parecia um satã louro." (São Paulo: Companhia das Letras, 2001.)

Este primeiro parágrafo de O falcão maltês é até hoje motivo de exame e referência entre escritores e leitores atentos do gênero policial. E serve para rebater aqueles que insistem em afirmar que tais autores não têm cuidado com a língua, nem buscam um estilo (soma de técnica e estética) que os diferencie dos demais escritores. Ora, eles apenas não se exibem. A funcionalidade do texto está em primeiro plano. Se podem ser diferentes, não hesitam em ir por este caminho, mas sem jamais perder de vista a funcionalidade. O estilo pode ser a "festa da linguagem" às vezes, mas no geral é uma ferramenta "em serviço", para um fim específico: o estabelecimento de uma escrita legível e sobre a qual o leitor não se detenha em excesso. No trecho de Hammett, temos a descrição de um personagem – motivo recorrente do gênero –, mas a forma é incomum, inesperada, insistentemente em V, e conclui com uma observação singular: "De modo bem ameno, ele parecia um satã louro"; metaforicamente já se espera, desde então, as artimanhas que serão a marca de Spade. Isso é estilo. Só não é afetação. Não pretende exibir-se. A discrição – não parecer "um estilo"– é sua meta.

domingo, 11 de outubro de 2009

O FALCÃO MALTÊS

Este é sem dúvida um dos dez melhores filmes policiais de todos os tempos, um modelo recorrente, além de integrar a lista dos cem melhores filmes americanos. É também um dos mais fiéis ao livro que o inspirou, O falcão maltês, de Dashiell Hammett. O entrecho, o ritmo, a dicção, a ironia, as frases de efeito, a frieza dos personagens, a ambiguidade que os movimenta, tudo isso já estava previamente no livro. Coube a Huston dar vida e estilo às cenas e dirigir tão rigososamente os atores, que nem nos lembramos de que são simples personagens. Se Pacto de sangue, de Billy Wilder é considerado a primeira obra-prima genuinamente noire, com os elementos que vão caracterizar o gênero (a mulher fatal que enreda o protagonista, a paixão desenfreada que o arrasta e obriga a cometer o crime, a atmosfera de desencanto com a existência, o sonho de riqueza e a solidão final como punição), o filme de Huston, por sua vez, é historicamente o primeiro a esboçar com consistência tais elementos. Constitui, portanto, um marco, o ponto de partida de um gênero que por duas décadas se inventou e reinventou, culminando com Rififi (1955), de Jules Dassin. Título original: The maltese falcon. Direção e Roteiro: John Huston. Ano e país de produção: 1941, EUA. Fotografia e duração: p&b, 100'. Atores principais: Humphrey Bogart, Peter Lorre, Mary Astor e Lee Patrick.

sábado, 10 de outubro de 2009

OS VINHEDOS DE SALOMÃO

Este romance, considerado muito forte em sua época, mesmo se tratando de um espécime do gênero policial, deve sua estrutura (com variantes, obviamente) a O falcão maltês, de Dashiell Hammett. O detetive particular Karl Craven chega à cidade de Paulton, onde seu sócio foi assassinado em missão: resgatar a sobrinha de um milionário do interior de uma instituição de fanáticos religiosos, denominada Vinhedos de Salomão. A garota está ali aparentemente por vontade própria, mas é mantida sob drogas, nas nuvens. Craven aos poucos mergulha no cotidiano da cidade, se envolve com uma loura que atende pelo epíteto de Princesa, entra em choque com um gângster, com um advogado suspeito, deflagra um tiroteio terrível, que até hoje inspira escritores e cineastas, e é obrigado, se quiser continuar vivo, a mentir e matar. Como Sam Spade, de Hammett, seu método reúne mentira, sarcasmo e imoralidade na dose certa para fazer justiça e resgatar a garota, a estatueta valiosa e rara da história. E no desfecho, como em O falcão maltês, Craven abdica do seu amor por uma mulher, descartando-a em favor da justiça, embora à sua maneira espirituosa, cruel e nada ortodoxa. Com esse espírito noir, era inevitável que Karl Craven fosse admitido na seleta galeria dos grandes detetives durões e solitários, encabeçados por Sam Spade e Philip Marlowe. Publicado na Inglaterra em 1941, Os vinhedos de Salomão saiu nos EUA na década de 1950 com cortes substanciais, por causa de suas cenas de violência, sadomasoquismo, alcoolismo, cinismo, humor negro e seu vocabulário baixo, arrancado das ruas, até ser resgatado na íntegra trinta anos depois e redescoberto como um clássico do gênero e, possivelmente, a obra-prima do autor. Curiosidade: a breve introdução do romance é assinada pelo próprio Karl Craven, que garante que tudo no livro é verdade, apesar de inacreditavelmente "barra-pesada", e que o autor apenas escreveu o que ele disse.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

VERONICA MARS

No relato policial clássico, o crime em geral é uma excentricidade, um capricho do caráter, oriundo de uma mente excepcional ou doentia, e cabe ao detetive desvendar o delito e esclarecer os motivos por que seu autor o praticou; não raro sem sair de seu escritório ou sua biblioteca, legando a outros, sem falsa modéstia, a honra de prender o facínora. No relato policial de ação, por sua vez, o crime está nas ruas, na vida cotidiana, e envolve qualquer pessoa, inclusive o detetive, que não está livre de ambição por dinheiro ou poder, nem de se apaixonar por uma linda mulher, que o levará ao coração do crime ou o fará cometê-lo, por amor. Já em Veronica Mars, série policial de tevê, em sua primeira temporada, houve um duplo deslocamento: o crime nem é uma excentricidade nem está nas ruas, no calor das relações. O crime está na escola e na família. Ou seja, educamos duplamente nossos filhos para o crime: instintivamente na família e formalmente na escola. Logo no primeiro episódio sabemos que Veronica Mars (interpretada por Kristen Bell), de apenas 17 anos, perdeu a virgindade "para alguém", quando estava "apagada", numa noite de drogas na casa de uma colega de escola, e que, não muito depois, sua melhor amiga, Lilly, irmã do seu namorado na época, foi assassinada. Agora, ela tem dois motivos bem pessoais para auxiliar seu pai na agência de detetives que ele montou ao ser demitido do cargo de xerife: descobrir quem a estuprou e encontrar o assassino de Lilly. Sua ação como investigadora, daí por diante, vai se dividir em dois cenários: a escola em que estuda, abarrotada de jovens ricos, e as casas de suas famílias, tão afeitas ao crime quanto as piores famílias da Máfia. A série mescla policial de enigma com policial de ação e faz da jovem Veronica Mars uma heroína precoce. Recheada de citações e homenagens aos clássicos americanos da série noire, como Hammett e Chandler, e ambientada na cidade de Neptune, California, Veronica Mars é uma série cativante, inteligente, ousada (esteticamente, inclusive) e a prova visível de que o gênero policial, seja no cinema, na literatura ou na tevê, pode se renovar por muitas trilhas e surpreendentes desvios.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

POLICIAL DO FUTURO

A rigor, Blade runner só é classificado como filme de ficção científica porque se passa no futuro e porque alguns de seus personagens são andróides. De resto, em tudo, é uma trama policial. Um policial do futuro, como o western é o relato policial do passado, num cenário específico dos EUA: o Oeste do pioneirismo, da descoberta do ouro, das diligências e de bandidos e xerifes lendários. E não por acaso Dackard constitui uma mistura de xerife com caçador de recompensas, eliminando um a um os replicantes que encontra. Portanto, me parece mais adequado classificar Blade runner de policial, como Minority report também o é, e igualmente Eu, robô, de Alex Proyas. Pensemos, neste sentido, que o tempo ― e o tempo é tudo ― há de alcançar um dia aquele contexto, ou um contexto semelhante ao dos três filmes, e então não teremos mais o elemento de ficção científica. O futuro será o presente, e restará aos homens, ao examinar os três filmes, nomeá-los ou classificá-los conforme o mundo que conhecem e a realidade em que vivem. Mas se pensarmos, por outro lado, que nesta "aproximação" de tempos talvez seja o elemento policial aquele que desaparecerá, não havendo mais crimes, nenhum embate entre gato e rato, então os três filmes, em especial Blade runner ― por sua hibridez até então pouco explorada, se não inédita, e sua estética noire ―, talvez acabem confinados à classificação de paródias de um tempo perdido, duplos de uma faceta que a humanidade baniu. É provável. Todavia, enquanto este tempo não chega, e se quisermos ser rigorosamente precisos, classifiquemos Blader runner de filme policial, ainda que seja "policial do futuro".

domingo, 27 de setembro de 2009

RAYMOND CHANDLER

Se Dashiel Hammett criou o relato policial noir, foi no entanto Raymond Chandler quem lhe conferiu prestígio literário e artístico. Mesmo os leitores que não apreciam a literatura policial respeitam-no, como respeitam Georges Simenon, Patricia Highsmith, James M. Cain e David Goodis, autores que, apesar de sua opção pelo relato policial, não se limitaram às amarras do gênero. Como se cumprissem à risca uma hipotética cartilha ditada por Edgar Allan Poe ou Pablo Picasso, fizeram arte com a matéria que escolheram: impuseram-se um estilo, uma linguagem, uma dicção, de modo que, ao lermos o texto de um, sabemos que não estamos lendo o texto de nenhum outro. E não interessa se o entrecho policial é ou não é relevante; o que importa é como cada um desses escritores, a começar por Hammett, estrutura e molda suas histórias, e o efeito que extrai delas e que, durante a leitura, migra para a sensibilidade do leitor, que, assim, apreende um pouco mais da realidade à sua volta, sempre um enigma. Nascido em Chicago em 1888, Raymond Chandler estudou na Inglaterra, França e Alemanha. Teve uma formação clássica, e isso muito colaborou para que ele deslocasse para o gênero policial uma linguagem que poderia, muito bem, estar a serviço de outro ramo da arte literária. Depois de saltar de uma para outra profissão (foi professor, revisor, soldado das forças canadense e britânica, contador, redator, executivo de uma empresa de petróleo e detetive particular, o que lhe conferiu larga experiência de vida e a desenvoltura necessária à sua representação realista do mundo), Chandler se estabeleceu na California, palco de seus contos e romances. Escreveu: O sono eterno (1939), O longo adeus (1953), Adeus minha adorada (1940), A irmãzinha (1949), A dama do lago (1943), Janela para a morte (1942), Playback (1958), dezenas de contos, espalhados por várias coletâneas, e Amor e morte em Poodle Springs, que deixou inacabado e foi concluído por Robert B. Parker. Também foi roteirista de Hollywood. Todos os seus romances foram levados ao cinema, tornando-se grandes clássicos do gênero noir. Seu personagem Philip Marlowe, protagonista de seus romances, entrou para a galeria dos grandes detetives, ao lado do comissário Maigret, do padre Brown, de Sherlock Holmes, Hercule Poirot e Dupin. Em 1956, com a morte da esposa, Chandler entregou-se ao álcool, o que certamente contribuiu para a sua morte, aos 71 anos, em 1959. Era, porém, um escritor admirado e respeitado, nos EUA e no mundo, e não apenas como autor de romances e contos policiais.

sábado, 26 de setembro de 2009

JONATHAN LATIMER

Ele publicou pouco, pois, frequentemente requisitado por Hollywood para escrever roteiros, muitos dos quais adaptados de obras de autores de sua época (Hammett, Wollrich), não teve muito tempo para se dedicar à sua própria produção, mais pessoal. Mesmo assim, um de seus livros, Os vinhedos de Salomão (Solomon's vineyard), se tornou um clássico do relato policial moderno. Este romance, aliás, teve uma aventura incomum: publicado na Inglaterra em 1941, só foi editado nos EUA em 1950, com o título alterado para The fifth grave e cheio de cortes. A violência e o realismo expressos seriam insuportáveis para a puritana sociedade americana do pós-guerra. A versão integral só veio a público na década de 1980, possibilitando aos cultores do gênero a oportunidade de conhecer um autor do quilate de Latimer e um livro capaz de se equiparar ao que de melhor escreveram Hammett, Chandler, Goodis e Cain. Jonathan Latimer nasceu em 1906, em Chicago. Foi jornalista, mais precisamente repórter policial, o que lhe permitiu o contato com os famosos criminosos da época, como Al Capone e Bugs Moran. Dos filmes que roteirizou, um dos mais conhecidos é A chave de vidro (1942), baseado no romance homônimo de Dashiel Hammett. Durante toda a Segunda Guerra Mundial, serviu na marinha americana. Entre seus outros romances policiais, destacam-se Sinner and shrouds (1955), Black in the fashion for dying (1959) e Red gardenias (1939), o quinto de uma série com o detetive particular Bill Crane. Sua produção não-policial inclui: The search for my great uncle's head (1937) e Dark memory (1940). Latimer morreu em 1983.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

OS VIOLENTOS

Os violentos (The executioners), de John MacDonald, publicado em 1957, é uma unanimidade. Nenhum livro que ele escreveu antes nem depois é capaz de superá-lo. O argumento, claramente de exceção, é um primor: Max Cady, denunciado pelo advogado Sam Bowden por ter estuprado uma criança, passa anos na cadeia e, ao sair, decide se vingar do advogado. Seu método, porém, é sutil: nunca faz nenhuma ameaça a Bowden nem à sua família, apenas se mantém por perto... Perto da escola dos seus filhos, perto do iate clube que eles freqüentam, perto do próprio Bowden, no tribunal, onde o advogado está em ação. E a polícia nada pode fazer, pois não há ameaça, nenhuma evidência concreta de que Cady pretende ser violento com Bowden ou com sua família e, consequentemente, se vingar. De posse deste entrecho, MacDonald o estrutura de uma maneira tal, que quem temia ser agredido passa a agressor, pois, com o propósito de intimidar Cady e obrigá-lo a sair da cidade, Bowden contrata alguns homens para surrá-lo. A consequência desta inversão de papéis é que a fronteira entre o bem e o mal se esfumaça: Cady e Bowden acabam equiparados, quase iguais, simples seres humanos com seus defeitos, medos e fraquezas. Quem é o bandido, quem é o mocinho? Pelo visto, ninguém, embora a causa de Bowden seja aparentemente mais nobre: tenciona proteger a família. Mas Cady também não tem lá os seus motivos de vingança, pelo fato de, ao ser denunciado, ter perdido a mulher e o filho, que o abandonaram? Num trecho metalinguístico, o narrador, através da fala de Nancy, a filha do advogado, reflete sobre essa ambiguidade que move os dois oponentes: "É nossa professora de inglês. Ela nos ensinou que a ficção é boa quando há desenvolvimento dos personagens, mostrando que ninguém é inteiramente bom ou inteiramente mau. Na ficção ruim, os heróis são cem por cento bons, e os maus cem por cento maus". Do ponto de vista de Cady, que foi para a cadeia e sacrificou sua vida familiar, o vilão é Bowden. Do ponto de vista de Bowden, Cady, pelo que fez, mereceu perder a família e ir para a cadeia. Um romance forte, profundo, psicológico, reflexivo e muito além de uma simples trama policial. Uma parábola do nosso tempo, que a cada dia se torna mais aterrador que os livros que escreveu ou escreve. Gerou duas adaptações cinematográficas: Circulo do medo (1962), dirigido por J. Lee Thompson, e Cabo do medo (1991), de Martin Scorsese.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

BOILEAU-NARCEJAC

Boileau-Narcejac não é um nome duplo, mas uma dupla, formada por Pierre Boileau (1906-1989), que residia no bairro de Pigalle, em Paris, e Thomas Narcejac (1908-1998), mais provinciano, dividindo-se entre Nice e Nantes. Os dois formaram uma das mais famosas duplas de escritores policiais da literatura francesa e mundial. Desta união surgiram obras que imediatamente conquistaram o público e chegaram ao cinema. As duas mais célebres são Celle qui n'était plus (As diabólicas), de 1952, filmada por Henri-Georges Clouzot, em 1955, com o título Les diaboliques, e D'entre les morts, de 1954, que originou aquele que para muitos críticos é o melhor filme de Alfred Hitchcock: Vertigo (Um corpo que cai), de 1958. O estilo de ambos, embora Boileau tivesse uma inclinação para o relato de enigma, abandona a figura do detetive para seguir o criminoso ou a vítima, numa teia de suspense, ambiguidade, dor e angústia. A ação do crime, com suas implicações psicológicas e existenciais, é muito mais importante que a investigação posterior, que realça quase sempre a habilidade e inteligência do detetive. Poucos foram os romances de sua autoria que não se transformaram em filmes. Também foram roteiristas de cinema e escreveram obras nas quais teorizaram sobre o gênero policial, como Le roman policier. Outros livros importantes: Terminus (1980) e Les intouchables (1980), publicados no Brasil pela editora Globo com os títulos Estação terminal e Os intocáveis.

sábado, 19 de setembro de 2009

O FALCÃO MALTÊS, O LIVRO

É comum que se afirme que O falcão maltês, de Dashiell Hammett, publicado em 1930, é o mais célebre romance policial do século XX, e um dos mais importantes desde que o gênero foi inventado por Edgar Allan Poe, Balzac e mais dois ou três escritores. Mas é raro que alguém esmiuce depois os aspectos que o colocam neste patamar. Um dos mais importantes é que não há, por parte do autor (ou narrador), nenhuma intenção de nos fazer crer que estamos diante de uma trama policial. Diferentemente dos clássicos do gênero, nos quais um crime (em geral, assassinato) é cometido por alguém e precisa ser desvendado pelo detetive, em O falcão maltês os crimes só acontecem depois que o detetive entra na história. Nesse sentido, o crime é apresentado como consequência das relações da vida, e nesta se compreendem: o dinheiro, a ambição e a mentira. Sem dúvida os motores da narrativa. Quando se diz que Hammett criou o romance noir, e O falcão maltês é talvez o seu marco, não é por acaso ou gratuitamente. Os elementos que movem o gênero estão presentes de uma forma bem cristalina: um objeto que se deseja e que vale muito dinheiro, a mulher bela e fatal que vai enredar o protagonista (Sam Spade, detetive particular), a intrincada rede de fatos, intrigas, bandidos e mentiras que constituirá o desenvolvimento da trama e o desfecho, menos firmado na solução dos crimes que na oportunidade do protagonista mostrar o quanto seus valores são maleáveis, consequência da experiência vivida e da necessidade de continuar a viver, e é neste ponto que ele expressa sua visão de mundo, pouco ortodoxa (pois o amor não conta muito) e vazada de ironia: "Vou entregá-la à polícia. É provável que você saia da prisão ainda em vida. Isso significa que estará de volta daqui a vinte anos. Você é um anjo. Vou esperá-la. (...) Se a enforcarem, vou sempre me lembrar de você". Tudo isso virou modelo e foi repetido, com variações, à exaustão, transformando O falcão maltês no antípoda do relato policial clássico, de enigma. O mais importante não é o crime, nem a solução do crime, mas as relações que o movem, as relações que se criam do crime e para a concepção do crime, as nuances psicológicas, a mentira como expediente perfeito para se sobreviver e que expõe a sociedade humana, em corpo e essência. Podemos chegar a dizer que esse é um romance de mentirosos. E, se há alguma verdade entre eles, ela é tão-somente a possibilidade de uma mentira. Até o falcão maltês, o objeto ambicionado por todos durante toda a história, é uma mentira. Mas, para quem acredita em linguagem cifrada, ou em códigos capazes de solucionar uma trama bem construída, aqui está a dica, a fala de Brigid O'Shaudhnessy, a mocinha fatal da história, que diz para Spade: "Se você me amasse, não precisaria ter mais nada no outro prato da balança". O que ela está dizendo, o que ela não está dizendo? Talvez que o falcão original, uma relíquia preciosa, está em seu poder e que, se ele não entregá-la à polícia, viverão felizes no amor e com dinheiro. Mas Spade não é otário. Ou é.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

MÃOS ASSASSINAS

O PROFISSIONAL

Dos assassinos de aluguel era o mais profissional e experiente. Em sua longa carreira de facínora ostentava um rosário de mortes.
O excesso de profissionalismo foi a sua perdição.
Devido a tanta competência, não pode declinar da contratação de seus serviços por parte do seu maior concorrente.
Recebeu adiantado e, profissionalmente, realizou seu último assassínio.
Matou-se.


OS ASTROS NÃO MENTEM

Consultou um astrólogo. Categórico, este lhe disse:
– Vejo em seu futuro algo terrível. Está prestes a acontecer.
– Seja o que for, pode me contar. Não tenho medo.
– Tem inimigos?
– Muitos. Por quê?
– Em breve você matará um homem.
– Matar? Engano seu. Jamais eu faria isso.
– Os astros não mentem.
– Então o mentiroso é você!
– Não me culpe por dizer a verdade.
– Um farsante, isso sim!
– Não sou farsante. Você que é um assassino.
– Além de impostor, um abusado! Como ousa me chamar de assassino? Seu vigarista!
Das palavras a raiva migrou para as mãos.
Agarrando o astrólogo pelo pescoço, apertou-o até vê-lo roxo, a língua saltando para fora.
Largou-o sem vida.

O QUE SERÁ

Marcaram de se encontrar à beira do lago.
O clima seria romântico, não fosse a apreensão estampada no rosto dele.
– E então?
– Deu positivo, ela afirmou.
– Tem certeza?
– Claro que tenho. Trago um filho seu. O nosso filho.
Ele passou as mãos pelo rosto. Na escuridão apenas o ruído de grilos e rãs
marcava o silêncio entre os dois.
Tornou a falar:
– Não está pensando em levar esta gravidez adiante, está?
– E por que não? – ela sorriu.
– Já pensou no futuro que espera essa criança?
– Falando desse jeito parece que o mundo já está perto do fim.
– Neste caos em que vivemos, não é de duvidar. Violência, desemprego... O que será desta criança quando crescer?
– Sei lá, pode ser tanta coisa. Quem sabe um médico. Ou médica, se for menina. Pode ser ainda dentista, modelo...
– Já sei.
– O quê?
– O que ele será. Acabo de pressentir.
– Advogado?
– Não.
– Jogador de futebol?
– Também não.
– Será o quê, então?
– Isto! – respondeu, empurrando-a para dentro d’água. – É isso o que o seu filho vai ser, sua vadia!
E vendo-a desaparecer nas profundezas do lago, revelou:
– Escafandrista!

WILSON GORJ nasceu em 1977, em Aparecida, SP. Em 2007, publicou o livro Sem contos longos, obra de estréia, composta 100 micronarrativas. Tem contos, minicontos e poemas publicados em antologias, revistas e suplementos literários. Contato: pelo blogue O Muro & Outras Páginas, aí ao lado, ou pelo e-mail gorj@jornalolince.com.br.
Imagem: cena do filme Rififi (1955), de Jules Dassin.

domingo, 13 de setembro de 2009

DIZER ADEUS


Os contos do escritor Mayrant Gallo, reunidos no livro Dizer Adeus, publicado pelas Edições K, em 2005, são considerados pelo autor "rituais de crimes", e não narrativas do gênero policial, que lhe parece, machadianamente, um "gênero difícil". Seja como for, tratam-se de narrativas nas quais verificamos a presença da morte (metafórica ou não). Já é quase um dogma a assertiva que defende a verdadeira arte como aquela que mesmo trabalhando com um assunto visitado inúmeras vezes, como a morte, por exemplo, o aborda de uma forma nova, ou seja, é aquela que nos diz a mesma coisa de uma outra maneira. E em Dizer Adeus todos os contos nos prendem de um modo especial. Sim, o modo, a maneira de se tratar um tema, esse é o toque definidor do genuíno artista. E esse modo inovador da escrita percebemos, no autor, em "Mãos Dadas", apenas para citar um conto, o último do seu conjunto meio noir. Logo no início, o que chama a nossa atenção é a estrutura. Os capítulos são divididos por letras. No capítulo A, como nos demais, períodos curtos, o dizer-muito-com-pouco: "Uma criança, um pai. O pai que desce a escada, e a criança que o segue, na noite: Pai, quero ir também... Um rosto que se volta: Não. Passos. Dois pés que descem. Dois pezinhos que sobem." Essa linguagem cinematográfica, imagética, metonímica, fragmentada, nos permite ver toda a cena. E se dermos um salto para o desfecho dessa história, que envolve relacionamento familiar, traição e crime, lemos apenas a seguinte frase: "Sangue na noite". O crime não foi narrado. Não era necessário. O leitor está totalmente satisfeito. E impactado. Depois dessas três palavras, não se precisa escrever mais nada.

LIDIANE NUNES, uma infiltrada.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A SÉRIE NEGRA

No último parágrafo do seu texto Sobre o gênero policial, incluso no livro O laboratório do escritor, Ricardo Piglia tenta chegar a uma conclusão do que seja a série negra, rótulo aplicado ao conjunto de obras dos autores norte-americanos modernos que se dedicaram ao gênero policial. Escreve ele: "Em última instância (penso em Safra vermelha, de Hemmett, em O pequeno César, de Burnett, em Mas não se matam cavalos?, de McCoy), o único enigma que os romances da série noire propõem — e nunca resolvem — é o das relações capitalistas: o dinheiro que legisla a moral e apóia a lei é a única 'razão' destes relatos onde tudo se paga. Neste sentido, eu diria que são romances capitalistas no sentido mais literal da palavra: devem ser lidos, penso eu, sobretudo como sintomas. Textos cheios de contradições, ambíguos, que frequentemente flutuam entre o cinismo (exemplo: James Hadley Chase) e o moralismo (em Chandler tudo está corrompido, menos Marlowe, profissionalmente honesto, que faz bem seu trabalho e não se contamina; na verdade, parece uma realização urbana do cowboy). Acredito que justamente por serem ambíguos estes textos nos causam leituras ambíguas, ou melhor, contraditórias: há os que a partir de uma leitura moralista condenam o cinismo destas histórias; e há também os que dão a estes escritores um grau de consciência que eles nunca tiveram, e fazem deles uma espécie de versão divertida de Bertolt Brecht. Sem ter nada de Brecht — salvo, talvez, Hammett —, acho que estes autores devem ser submetidos, antes, a uma leitura brechtiana. Nesse sentido há uma frase que pode ser um ponto de partida para essa leitura: 'O que é roubar um banco comparado com fundá-lo?', dizia Brecht, e nessa pergunta está — se não me engano — a melhor definição da série noire que conheço". Sem dúvida. Apenas acrescentaríamos que, se o dinheiro é o motor destas histórias — e é, efetivamente — o são também os bens e as coisas que ele permite comprar, depois de obtido: e não somente objetos, homens sobretudo — e o poder que eles disputam e alimentam.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

UNIVERSO NOIR

Nesta maravilhosa coletânea de temas de jazz da Verve, de 2003, estão reunidos alguns dos maiores cantores e cantoras do gênero, como Billy Holiday, Chet Baker, Mel Torme, Peggy Lee, Helen Merrill, Shirley Horn, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Dinah Washington. Todas as gravações se situam nos anos 1950 ou 1960, exceto a de Shirley Horn, datada de 1997, e todas têm como tema o "coração partido", no espírito do título do CD: When love goes wrong (quando o amor acaba mal ou quando o amor dá errado). Mas o que nos interessa mesmo neste disco é a ilustração de sua capa, de autoria de Mark Korsak. A imagem conta uma história, e esta história é tipicamente noir. Duas mulheres, uma sendo levada algemada por um policial, e outra caída, em desespero, envolta num lençol, aos pés de um personagem austero, de terno, pesado sobretudo, chapéu, um cigarro entre os lábios, barba por fazer e olhar indiferente. (Quase me arrisco a dizer que este é Sam Spade ou Philip Marlowe.) Em primeiro plano, o braço e a mão de um homem morto, amante de uma das mulheres e marido da outra, ou amante de ambas, de uma mais pobre e de outra mais rica, e, assim, o que o fez chegar a este fim foi o dinheiro, motor essencial, se não exclusivo, dos entrechos dos romances policiais modernos. A tatuagem em sua mão (um coração flechado) já era um prenúncio de sua horrenda morte. Belas canções e bela capa: uma representação perfeita do universo noir.

ARMADILHA MORTAL

Este é um livro precioso. Com o título original Un argentino entre gangsters, reúne 7 contos policiais publicados por Roberto Arlt (1900-1942) na imprensa argentina, relatos que por muitos anos ficaram confinados às páginas dos periódicos, inacessíveis, portanto, aos leitores modernos do gênero. O conjunto é bem variado, com contos de enigma e também de ação, bem como um excelente relato de espionagem, um dos gêneros variantes do policial de ação e que, se não me engano, deflagra muitos e muitos crimes em nome de causas aparentemente "mais nobres", como patriotismo, defesa dos interesses nacionais, proteção da soberania do país etc. O conto em questão é A dupla armadilha mortal, sem dúvida uma obra-prima, e cujo desfecho se dá em pleno ar, no cenário exíguo de uma carlinga de avião, numa cena que, a meu ver, é uma metáfora da ambiguidade do mundo da espionagem: não há vitórias nem derrotas, vencedores nem vencidos, se na relação belicosa entre os países o ser humano é posto em segundo plano. Bem, que julguem os leitores. Armadilha mortal é simplesmente delicioso, e vivo, e forte, e um grande aprendizado sobre este mundo, que sempre guardará uma filigrana por nos revelar.

domingo, 6 de setembro de 2009

DAVID GOODIS

David Goodis (1917-1967) queria ser um dos grandes da literatura norte-americana. Acabou se tornando um dos grandes da literatura policial norte-americana. O motivo é simples: precisava comer. Não podia se dar o luxo de ser artístico sem dinheiro no bolso e, consequentemente, com a barriga vazia. Nascido na Filadélfia, fez de sua terra natal o palco pestilento e cruel a abrigar vidas infelizes, vencidas e desencantadas. Melancolia, apatia, desespero, solidão e violência são os únicos sentimentos que elas entendem e cultuam. Seu realismo, repleto de brutalidade, não comporta esperança nem finais felizes e, para retratá-lo com fidelidade, Goodis emprega uma linguagem ao mesmo tempo áspera e poética, densa e árida, com frases curtas e estranhas imagens, como a lua, bela e limpa, refletida na poça de uma sarjeta infecta. Entre os muitos romances que escreveu se destacam: Dark passage (1946), Beleza mortal (1947), A garota de Cassidy (1951), O ladrão (1953), Sexta-feira negra (1954), A lua na sarjeta (1954) e Atire no pianista (1956). Também escreveu muitos contos, publicados geralmente em revistas de ficção policial e terror do gênero pulp. Morreu prematuramente, em consequência dos golpes sofridos numa briga de rua e sem se levar a sério como escritor: "No início, queria escrever de modo solene e só abordar os grandes problemas, mas logo compreendi que o problema mais importante era comer, então me conformei em escrever o que os editores queriam". Foram feitos vários filmes baseados em seus livros, entre os quais duas ótimas produções francesas: O tiro no pianista (1960), de Truffaut, e A lua na sarjeta (1983), de Jean-Jacques Benieix. Devem-se a estes filmes, e aos demais inspirados em sua obra, muito do respeito que Goodis alcançou postumamente e sua gradativa redescoberta, que o alinhou ao lado dos escritores encabeçados por Dashiell Hammett, Raymond Chandler e James M. Cain. Foi também, por muitos anos, roteirista de Hollywood.