Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

sábado, 31 de outubro de 2009

ARTE E FUNCIONALIDADE

"Era uma manhã clara, sem poluição nem grande nevoeiro; o sol brilhava na superfície de piscina que começava do outro lado da parede de vidro do bar e se esparramava até o final do restaurante. Uma garota de maiô colante branco, com um rosto agradável, subia a escada para o trampolim. Olhei a faixa branca que havia entre o bronzeado das coxas e a roupa. Olhei-a sexualmente. Logo ela estava fora do meu ângulo de visão, cortada pela profunda caída do teto. Um momento depois eu a vi cintilar num relance. As gotas subiram a ponto de pegar o sol e formar arco-íris quase tão bonitos quanto a garota. Mas daí ela subiu a escadinha da piscina, tirou a touca branca e a sacudiu. Rebolou até uma mesinha branca e sentou-se perto de um sujeito grande de calças brancas de algodão, óculos escuros e um bronzeado tão escuro, que ele só poderia ser o sujeito encarregado de cuidar da piscina. Ele esticou a mão e deu-lhe umas pancadinhas na coxa. Ela abriu a boca como se fosse um balde, e sorriu. Meu interesse por ela terminou. Não cheguei a ouvir o riso, mas aquela abertura no rosto quando ela mostrou os dentes foi mais do que suficiente." (O longo adeus. L&PM, 2000, p. 96-7. Tradução de Flávio Moreira da Costa.)

Este é um trecho representativo da arte de Raymond Chandler. A descrição sutil de um ambiente; um ser fascinante, quase sempre uma mulher; o prazer visual que sua presença desperta; a sensualidade apenas sugerida, sem maiores voos verbais; a ironia (porque está bronzeado, o cara só pode ser o empregado encarregado da piscina) e a auto-ironia (quando mostra, pela reação do homem, que ele não é um empregado, e pela da garota que ela está com o sujeito e gosta disso) do narrador; a precisão verbal que, discretamente, apresenta um mundo específico, das classes abastadas, representado aqui pelo acúmulo de referências à cor branca, símbolo de bom-gosto e riqueza: maiô branco, faixa branca da pele da garota, touca branca, mesinha branca, sujeito de calças brancas de algodão; a poesia do mundo físico: "profunda caída do teto", "eu a vi cintilar num relance"; e humor: "rebolou até uma mesinha branca", "abriu a boca como se fosse um balde".
Este é Raymond Chandler, seu estilo e sua arte, sua técnica e sua estética. Num breve texto temos tudo o que, nele, se expressa para a funcionalidade das palavras, para o andamento sem entraves da história e também para não-ditos, sugestões, ironias, humor, precisão histórica e uma feliz e eficiente subjetividade.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O LONGO ADEUS

A crítica é quase unânime em afirmar que o único livro do gênero policial-noir capaz de se ombrear com O falcão maltês e até mesmo superá-lo é O longo adeus (The long goodbye), de Raymond Chandler. Os motivos de tal afirmação não são poucos nem gratuitos.
Primeiramente, se O falcão maltês é um romance de ardilosos mentirosos (até o falcão é uma mentira), O longo adeus é uma história de pessoas perdidas, feridas e solitárias. Segundo, se naquele célebre livro de Hammett o dinheiro move a narrativa, impulsionando as personagens em direção ao crime e à mentira, no de Chandler monetariamente todos estão satisfeitos com o que possuem (uma evidência simbólica desta condição é a nota de 5 mil dólares que o detetive Philip Marlowe encerra em seu cofre, pois não precisa gastá-la), mas, por outro lado, estão todos doloridos e desencantados.
É literalmente um romance sobre o vazio, sobre os dias marcantes de um passado que, por mais que os personagens se esforcem, não conseguem esquecer; sobre a falta de amor, a existência fútil e sem horizontes; sobre a falta de sentido humano num ambiente de riqueza, dissolução e promiscuidade. Nesse sentido, a trama desloca-se da sua essência policial para o núcleo da própria condição humana e suas perdas ─ físicas ou psicológicas. E as mortes que ocorrem (e não são poucas) são atos antes de desespero que de cobiça ou capricho criminoso. O crime é uma consequência da vida, das relações, das dores. Todos os personagens ou perderam alguma coisa ou jamais acharam o que procuravam.
Lennox perdeu metade do rosto na Guerra e também a esposa, que jamais voltou a encontrar; além disso, sua esposa atual é uma mulher com muito dinheiro e igualmente muitos homens. Eileen perdeu o único amor de sua vida e vive com um escritor bêbado, Wade, que, por sua vez, perdeu o entusiasmo criativo e pouco a pouco vai perdendo o talento. Philip Marlowe é só um “detetive barato”, quase sem clientes e que tem o estranho hábito de ajudar as pessoas em troca de nada, por um decadente altruísmo ou um sentimentalismo de chá de caridade; também é sozinho, um solitário convicto, que almoça e janta diante de uma cadeira vazia; nem secretária possui. É numa dessas noites de abandono que ele conhece Terry Lennox e dá início a um périplo de álcool, ardis, ciladas, sangue e corpos imóveis.
Um outro aspecto a se ressaltar neste romance de Chandler é o caráter de reflexão. O autor não se satisfaz em criar uma trama policial. Descreve com precisão cirúrgica os cenários, mergulha no pensamento de seus personagens, analisa-os social e psicologicamente, expõe suas virtudes e também seus defeitos. Ninguém ─ nem instituição alguma ─ passa incólume por sua pena e seu olhar. E tudo isso num estilo direto, seco, irônico, analítico e, em muitos trechos, poético. O que em Hammett é só esboço em Chandler comparece em massa de cor, formas, ângulos, sabores, odores e perspectivas. Não é por acaso que se afirma que em Chandler o policial-noir atingiu o patamar de arte. De fato ─ e podemos até sugerir que Hammett, Cain, Goodis e Chandler formam uma espécie de quarteto desta verdade. Cada um, a seu modo, fez pelo policial-noir o que somente os grandes ficcionistas fizeram pela narrativa literária em geral. Claro que o relato policial moderno não se restringe a eles: Patricia Highsmith e Georges Simenon são duas vozes
antípodas, duas correntes específicas representadas, cada uma, por um único escritor...
Chandler não chegou a tanto, mas escreveu dois ou três romances ─ e o maior deles talvez seja O longo adeus ─ que, extrapolando o gênero policial, tornaram-se eternos. Retratos de um lugar, um tempo e uma gente ─ a Califórnia dos sonhos frustrados.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A DÁLIA AZUL

A Dália Azul é uma curiosa mistura do trabalho de dois artistas fabulosos que ajudaram a moldar a cultura do século 20, temperada com uma forte dose de ironia do destino.
Os artistas são, de um lado, Raymond Chandler, romancista e contista de histórias policiais, um dos pilares para a formação e renovação da literatura contemporânea (não só policial), ao prosseguir com a revolução detonada por outro grande escritor norte-americano, Dashiell Hammett. Juntos, eles trouxeram a figura tradicional e intelectualóide do detetive cerebral (representado por Sherlock Holmes e Hercule Poirot) para a dura realidade do cotidiano urbano, feroz e violento
de nossa época. A guinada que eles proporcionaram determinou e influenciou o cinema, o teatro, a literatura e as demais artes. Em consequência, Chandler escreveu o roteiro do filme A Dália Azul para Hollywood, na década de 40.
De outro lado, Filippo Scózzari, quadrinista italiano que participou da revolução na década de 70 nas artes gráficas, na contra-cultura e nas HQs, pelas páginas da estremecedora revista Frigidaire. Nesta anárquica, anarquizante, deglutidora e vomitória metralhadora cultural, tudo cabia. Exatamente como se fosse uma geladeira, estilo Frigidaire. Portanto, a gozação já começava pelo próprio nome. Subversão era seu lema secreto (nem tão secreto, por certo). Assim, era possível encontrar “uma mistura caótica
e cínica de textos, fotos e quadrinhos a respeito da guerrilha da América Central, Devo, travestis brasileiros, William S. Borroughs, Patagônia, produção de heroína na Tailândia, Bioy Casares, Céline, rock polonês e coisas assim”. Havia um encarte inicial, chamado apropriadamente de Freezer: “uma antologia de fotos de cadáveres, vítimas fatais de atividades eróticas extremas”, conforme revela Rogério de Campos em sua apresentação da edição brasileira de A Dália Azul, pela editora Conrad.
Bueno, Filippo Scózzari teve a incumbência de retomar o roteiro escrito por Chandler e transformá-lo numa HQ, publicada, por fim, em
capítulos, pela Frigidaire.
A grande, enorme ironia disso tudo é que os dois odiaram até o mais profundo de sua alma o que fizeram.
Aliás, há mais uma ironia para “dourar” o seu ódio: tanto o filme quanto a HQ são considerados atualmente clássicos, cada um de seu lado. Talvez seja meio exagero considerar o filme lançado em 1945 como um clássico. Deixo passar. Como diz Rogério de Campos, o tempo, os especialistas e os fãs de Chandler deixaram o filme quieto e quase esquecido.

O fato crucial é que Chandler odiava Hollywood, odiava a high society californiana e cinematográfica, odiava escrever roteiros, principalmente por conta das pressões e cobranças ridículas e medíocres da indústria hollywoodiana; odiava aquele ambiente faiscante, fútil e vazio, e odiava ganhar aquele dinheiro que, em se tratando de tal lugar, significava M-U-I-T-O dinheiro. Teve que se encharcar de álcool e se guardar em regime fechado dentro de casa para escrever o roteiro de A Dália Azul. E em três semanas, pois o astro principal do filme, Alan Ladd, seria convocado pelo Exército e não poderia gravar mais, depois. Chandler suou para dar sentido a uma história que não lhe atraiu desde o começo: logo após a Segunda Guerra Mundial, o ex-soldado Jonnhy Morrison (Allan Ladd) volta afinal para casa e descobre que não só sua mulher Helen (Doris Dowling) o traía como seu filho pequeno morrera em um acidente provocado por ela, quando dirigia embriagada. Agora, Jonnhy estava desempregado, seu casamento era uma piada, não se ajustava mais à vida social, envolve-se num relacionamento complicado com a complicada Joyce (Veronica Lake) e seu melhor amigo estava com problemas mentais sérios por conta de um ferimento na cabeça. Chandler desfilava clichês e mais clichês e se complicava para dar um fecho a todas as pontas levantadas. No meio de tudo, um assassinato explode, pois é claro que deveria ter um assassinato, mortes, suspeitos e investigações, já que afinal de contas se tratava de um filme policial noir e não um drama de guerra.
Chandler xingou, esperneou e reclamou, mas a ironia foi bem mais forte: o filme foi um sucesso de público, até a crítica se resguardou sem incenso, mas também sem lascar o pau. E o roteiro chegou a ser indicado para o Oscar.
Trinta e cinco anos depois foi a vez de Scózzari. Ele pegou o roteiro, leu, considerou chato e boboca, ficou desanimado, mas engoliu em seco e foi em frente. À medida que escrevia e desenhava os capítulos, seu desânimo e impaciência foram crescendo até a exasperação. Não se conformava em trabalhar numa porcaria tão grande, monótona e besta (na sua opinião). Aos poucos foi demonstrando sua insatisfação com pequenos dardos lançados de vez em quando, saía do texto, ironizava, escrachava, proporcionava novos sentidos à história e aos personagens. Só assim suportou o ano inteiro de trabalho que durou a série, até o ponto final, onde pôde expressar todo seu ódio em um epílogo original, todo seu, e absurdamente genial e maravilhoso.
Scózzari nem suporta pensar nisso, mas sua imagem está indissoluvelmente
associada a — “grrrrr!” — Dália Azul.
Podemos ser compreensivos e até entender todos os percalços sofridos por Raymond Chandler e Filippo Scózzari. No entanto, é através de seu sofrimento que podemos, hoje, apreciar o filme (que, se não chega a ser um clássico, também não é tão ruim) e a novela gráfica, exemplo perfeito do que pode conseguir o talento e a genialidade de um artista. Azar dos autores. Sorte, muita sorte, para nós, leitores.

CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista e mora em São Paulo.

domingo, 25 de outubro de 2009

A CHAVE DE VIDRO

Dashiell Hammett (1894-1961), nascido em St. Mary's Country, Maryland, cresceu e foi criado na Filadélfia e em Baltimore. Abandonando os estudos aos 14 anos, passou a exercer as mais variadas e díspares profissões: foi menino de recados, jornaleiro, balconista, apontador, manobrista, operador de máquinas, estivador e, por fim, detetive, atividade que interrompeu quando convocado para a Primeira Grande Guerra, durante a qual alcançou o posto de sargento. Com a saúde afetada, perambulou por hospitais até poder retornar ao trabalho na Pinkerton's Detective Agency. Dedicando-se depois à literatura, logo conquistou brilhante êxito, tendo muitas de suas histórias imediatamente transpostas para o cinema.
Por ocasião do último conflito mundial, voltou aos campos de batalha, outra vez como sargento, servindo a maior parte do tempo nas Aleutas. Perseguido pelo macartismo, foi vítima da "caça às bruxas", falecendo pouco depois desse episódio, que lhe afetou mais ainda a saúde.
André Gide, que o leu por sugestão de André Malraux, assim como Sinclair Lewis, Robert Graves e Louis Untermeyer, entre outos intelectuais de projeção, admiravam muito os seus romances. Na verdade, Dashiell Hammett foi considerado, desde logo, um mestre indiscutível da ficção policial, não só pela estrutura das histórias, por sua prosa limpa e direta, inteiriça e econômica, como também pela caracterização, precisa, exata e ágil, da psicologia dos personagens.
Além dos enredos intrincados e intrigantes, que fascinam pelo suspense e pela ação, sem nunca, porém, ultrapassarem os limites da credibilidade, há algo de novo na literatura de Dashiell Hammett: o seu conteúdo social. É talvez o único autor desse gênero de ficção preocupado em retratar, com realismo e verdade, as mazelas da sociedade. Seus críticos acentuam mesmo que foi ele um agudo observador da corrupção e um sensível sismógrafo da subjacente violência que a toda hora solapa a vida americana.
A chave de vidro é bem um exemplo desse aspecto da obra de Dashiell Hammett. Nesse livro, ele conta a história de uma cidade dominada por uma quadrilha de gângsteres políticos. A partir do assassinato do filho de um senador, vai o romancista descrevendo como os fora-da-lei exerciam e impunham o terror e a violência. O jogador Ned Beaumont, amigo do infortunado pai e eminente cidadão, é quem vai descobrir os assassinos do jovem, enfrentando toda a sorte de perigos e ardis. As cenas que se sucedem até a elucidação do caso são duras, ásperas, brutais mesmo. Graças, porém, à eficaz comunicabilidade de Dashiell Hammett, que escrevia sobre o que conhecia, que se baseava nas suas vivências pessoais, nenhum leitor abandona o volume. Vai até o final devorando-o emocionado, chocado e esclarecido.

MARIANO TORRES, na orelha à primeira edição brasileira: Civilização Brasileira, 1970.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O HOMEM MAGRO

O homem magro (The thin man) é o último de um total de apenas cinco romances de Dashiell Hammett que provocaram uma verdadeira revolução no mundo da literatura.
Em um período de onze anos, Hammett modificou todo o conceito do que fosse um romance policial. Isto é: aquelas histórias em que um detetive supergênio, contando somente com a força do seu intelecto (e desdenhando do laborioso e "incompetente" esforço das forças policiais), resolvia seus casos simplesmente sentado no sofá e fumando cachimbo, foram de um momento para outro ultrapassadas e tornadas ridículas.
Pela primeira vez, sentia-se que o detetive era uma pessoa de carne e osso que também apanhava, levava tiro ou ficava resfriado. Pela primeira vez, percebia-se que o mundo onde essa pessoa caminhava era o mesmo que o do leitor, com toda a sua violência, corrupção e feiúra. E que ele respondia na mesma moeda, tal qual o leitor adoraria também fazer, se tivesse a mesma coragem, competência ou experiência.
Experiência Hammett certamente possuía. Depois de passar anos trabalhando (ou tentando trabalhar) em empregos os mais diversos (de office-boy a estivador, de roteirista de Hollywood a professor de inglês), ele próprio foi detetive da quase mitológica agência Pinkerton, onde ficou mais de dez anos. Não foi lá um grande detetive, memorável, mas quando percebeu que podia passar isso para o papel... Bem, foi o equivalente a um verdadeiro terremoto.
Começou publicando contos em revistas de papel barato e grande distribuição, a chamada pulp fiction, termo que ficou famoso entre nós pelo filme do Quentin Tarantino, uma franca homenagem a este tipo de literatura. Em 1929 publicou seu primeiro romance, The dain curse, que, na verdade, era um conto um pouco mais extenso do personagem principal de histórias anteriores, o detetive da agência Continental Op.
Seu livro mais famoso é, sem dúvida, O falcão maltês. De qualquer forma, foi o mais glorificado, incensado e copiado. E quando foi refilmado (pela terceira vez!) ajudou, de quebra, a alicerçar um novo gênero de filme, o Cinema Noir, alavancando a carreira do diretor John Houston e transformando em astro um ator de filminhos B, um tal de Humphrey Bogart.
O homem magro foi publicado pela primeira vez em 1934 e se tornou um dos seus mais permanentes sucessos. Também foi filmado e teve várias continuações. Virou uma série de rádio (lembremos do grande poder de comunicação que o rádio possuía na época) que durou décadas e, quando a televisão começou a ocupar espaço, também virou telessérie. Foi uma fonte de renda constante para Hammett, que viveu dos direitos autorais destas adaptações até o final da sua vida.
Os personagens principais, Nick Charles, e sua esposa Nora, esbanjam charme e simpatia, mesmo com sua cínica visão da realidade, enquanto transitam entre marginais do baixo mundo e festas na alta sociedade. Para eles, a linha divisória entre estes dois mundos é extremamente tênue. Sem querer entrar numa discussão sobre qual seria sua obra-prima, Hammett está aqui em sua melhor forma. Os diálogos estão mais secos, cortantes e duros do que nunca, o humor negro é sempre mordaz e cáustico, e o timing e o ritmo da ação estão perfeitos. Para degustar ainda mais este livro, melhor não esquecer um bom copo de Martini na mão. Seco, obviamente.
Depois da publicação deste livro, no auge do seu sucesso e fama, respeitado pelos críticos e adorado pelo público até sua morte em 1961, Hammett não escreveu mais uma linha sequer, exceto algumas paginas do que seria um novo romance (que, ironicamente, não parecia ser um romance policial).
Discute-se muito a razão disso, muito embora a bebida tenha sido um motivo mais do que suficiente. Ele literalmente "bebeu" a fama e o dinheiro que foi possível ou que sua mulher permitiu. No final de sua vida, tentou desesperadamente escrever roteiros e peças de teatro que nunca foram levadas adiante.
Sua última grande atuação foi durante a perseguição do macarthismo, quando disse não conhecer o nome dos contribuintes de um grupo com suspeitas de ligações comunistas, do qual ele era simplesmente um dos secretários da tesouraria. Mais "hammettiano" do que isso, impossível.


CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista, com incursões também pelo relato policial. Publicou Desconcerto (São Paulo: Demônio Negro, 2008).

domingo, 18 de outubro de 2009

SEM FLORES DE MAGNÓLIA

Raymond Chandler, além de escrever romances e contos, foi um pensador das formas e tons que esses gêneros adotaram quando a serviço do gênero policial. No ensaio A simples arte de matar, ele faz um contraponto entre a história de detetive clássica (de enigma ou mistério) e o estilo que Hammett implantou, ao deslocar o "assassinato de dentro do vaso veneziano" para "uma ruela qualquer", pois desde o início Hammett "escreveu para pessoas que possuíam uma atitude perspicaz e agressiva perante a vida", pessoas "que não tinham medo do lado menos atraente das coisas; elas viviam nele". E continua: "A violência não as fazia esmorecer; ela se encontrava logo ali, em suas ruas. Hammett devolvia o assassinato para o tipo de gente que o cometia 'por razões', não só para fornecer um cadáver; e com os recursos à mão, não com um duelo de pistolas 'feitas à mão', curare e peixes tropicais. Ele colocava essas pessoas no papel como elas eram e as fazia falar e pensar na linguagem que custumeiramente usavam para esses fins". E toca num ponto sempre controverso, embora não para mim: "Ele tinha estilo, mas seu público não sabia disso, porque estava numa linguagem que supostamente não era capaz de tais refinamentos (...). Hammett era conciso, frugal, duro, mas fez sempre e repetidamente aquilo que só os melhores escritores conseguem fazer: escreveu cenas que parecem nunca terem sido escritas antes". Por fim: "E ainda há muita gente por aí que diz que Hammett não escrevia histórias de detetive; ele teria escrito duras crônicas sobre a vida sórdida nas ruas das grandes cidades, colocando nelas um elemento adicional, de mistério, assim como quem põe uma azeitona num martíni seco. Quem diz isso são as velhas senhoras perturbadas, de ambos os sexos (ou de nenhum sexo) e de quase todas as idades, que gostam de ter seus assassinatos perfumados com flores de magnólia e não querem ser lembradas de que assassinato é um ato de infinita crueldade, mesmo que os criminosos às vezes se pareçam com playboys ou professores universitários ou mulheres simpaticamente maternais de suaves cabelos grisalhos". "Há também uns poucos defensores, bastante assustados, do mistério formal ou clássico, que pensam que uma história não é de detetive se não propõe ao leitor um problema formal e exato, onde os indícios encontram-se arranjados com lindas etiquetas ao redor deste problema." Penso que as palavras acima (de um Chandler senhor de sua matéria) esclarecem, de uma vez por todas, uma dúvida e fecham uma questão: a forma não está no assassinato, como pretendiam Agatha Christie e seus seguidores, mas no texto que o representa; e que é a partir de Hammett que o gênero policial perde a inocência e se acerca de um desejo de consciência do que sejam seu assunto e sua forma. Ora, é exatamente este grau de consciência quanto às suas possibilidades que faz com que uma simples narrativa de ficção (policial ou qualquer outra) deixe de ser um estado de linguagem a serviço de um gênero para ser literatura.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A CURIOSIDADE MATOU UM GATO

Um pacato cidadão de província, infenso à política, a mexericos e a discussões mais acaloradas, recebe uma carta anônima capaz de fazer qualquer pessoa gelar. Lacônica, certeira como uma flechada no coração e irrevogável como o destino de um personagem de tragédia grega, a mensagem avisa: “Esta carta é a tua sentença de morte, por aquilo que fizeste morrerás”. A reação inicial do destinatário da correspondência é de surpresa, depois de medo e, por último, de reconfortante tranquilidade. Afinal, revendo toda a sua vida, não consegue se lembrar de nada de grave que fizera no passado e que justificasse sua morte.
Dias depois da ameaça, o homem é assassinado, juntamente com um amigo com quem saíra para caçar lebres e perdizes. Mas seria ele mesmo o alvo principal do assassino, ou dos assassinos, já que a sequência da história indica um terrível complô? Por que os dois foram mortos? Quem os matou e por quais motivos? A polícia local começa a investigar o crime, mas não faz nenhum avanço, como se não desejasse mesmo fazer qualquer avanço...
Então entra em cena um tímido professor de literatura e história, que começa a juntar as peças do quebra-cabeça e passa investigar o caso, por conta própria, mais por curiosidade intelectual do que pela vontade de fazer justiça. Porém, é aí, na curiosidade desmedida (a curiosidade matou o gato, já diz um ditado popular), que mora o perigo. Essa é a trama do romance A cada um o seu, do italiano Leonardo Sciascia, uma história policial que se lê de uma sentada, seja pela brevidade do relato seja pela interesse em desvendar os assassinatos que impactaram o retraído professor.
Não somente um romance policial. Também uma história de corrupção, arrivismo político-social e traição; uma patologia (ainda que em recorte) da máfia siciliana, já que a história se passa na Sicília, umas das regiões mais pobres da Itália pós-Mussolini. O paulatino desvendar dos personagens, pelo professor-detetive, parece confirmar a máxima do pároco local: “Estamos sempre entre vermes”. O desfecho da história certamente seria diferente, se o curioso professor tivesse dado ouvidos às palavras de um velho ocultista, pai de um dos homens assassinados: “Certas coisas, certos fatos, é melhor deixá-los na escuridão em que se encontram”.
Um thriller, de leitura obrigatória, que mistura assassinato, polícia e política, tão pródigos na vida real.


ELIESER CESAR, um infiltrado, é escritor, professor e jornalista. Autor de A garota do outdoor (2007).

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

SEM AFETAÇÃO

"O maxilar de Spade era largo e ossudo, seu queixo era um V muito pronunciado, abaixo do V mais suave, formado pela boca. As narinas se arqueavam para trás para formar um outro V, menor. Os olhos amarelo-cinzentos eram horizontais. O tema do V era retomado pelas sobrancelhas um tanto peludas que se erguiam a partir de duas rugas gêmeas acima do nariz adunco, e o cabelo castanho-claro tombava – de suas têmporas altas e retas – em uma ponta, por cima da testa. De modo bem ameno, ele parecia um satã louro." (São Paulo: Companhia das Letras, 2001.)

Este primeiro parágrafo de O falcão maltês é até hoje motivo de exame e referência entre escritores e leitores atentos do gênero policial. E serve para rebater aqueles que insistem em afirmar que tais autores não têm cuidado com a língua, nem buscam um estilo (soma de técnica e estética) que os diferencie dos demais escritores. Ora, eles apenas não se exibem. A funcionalidade do texto está em primeiro plano. Se podem ser diferentes, não hesitam em ir por este caminho, mas sem jamais perder de vista a funcionalidade. O estilo pode ser a "festa da linguagem" às vezes, mas no geral é uma ferramenta "em serviço", para um fim específico: o estabelecimento de uma escrita legível e sobre a qual o leitor não se detenha em excesso. No trecho de Hammett, temos a descrição de um personagem – motivo recorrente do gênero –, mas a forma é incomum, inesperada, insistentemente em V, e conclui com uma observação singular: "De modo bem ameno, ele parecia um satã louro"; metaforicamente já se espera, desde então, as artimanhas que serão a marca de Spade. Isso é estilo. Só não é afetação. Não pretende exibir-se. A discrição – não parecer "um estilo"– é sua meta.

domingo, 11 de outubro de 2009

O FALCÃO MALTÊS

Este é sem dúvida um dos dez melhores filmes policiais de todos os tempos, um modelo recorrente, além de integrar a lista dos cem melhores filmes americanos. É também um dos mais fiéis ao livro que o inspirou, O falcão maltês, de Dashiell Hammett. O entrecho, o ritmo, a dicção, a ironia, as frases de efeito, a frieza dos personagens, a ambiguidade que os movimenta, tudo isso já estava previamente no livro. Coube a Huston dar vida e estilo às cenas e dirigir tão rigososamente os atores, que nem nos lembramos de que são simples personagens. Se Pacto de sangue, de Billy Wilder é considerado a primeira obra-prima genuinamente noire, com os elementos que vão caracterizar o gênero (a mulher fatal que enreda o protagonista, a paixão desenfreada que o arrasta e obriga a cometer o crime, a atmosfera de desencanto com a existência, o sonho de riqueza e a solidão final como punição), o filme de Huston, por sua vez, é historicamente o primeiro a esboçar com consistência tais elementos. Constitui, portanto, um marco, o ponto de partida de um gênero que por duas décadas se inventou e reinventou, culminando com Rififi (1955), de Jules Dassin. Título original: The maltese falcon. Direção e Roteiro: John Huston. Ano e país de produção: 1941, EUA. Fotografia e duração: p&b, 100'. Atores principais: Humphrey Bogart, Peter Lorre, Mary Astor e Lee Patrick.

sábado, 10 de outubro de 2009

OS VINHEDOS DE SALOMÃO

Este romance, considerado muito forte em sua época, mesmo se tratando de um espécime do gênero policial, deve sua estrutura (com variantes, obviamente) a O falcão maltês, de Dashiell Hammett. O detetive particular Karl Craven chega à cidade de Paulton, onde seu sócio foi assassinado em missão: resgatar a sobrinha de um milionário do interior de uma instituição de fanáticos religiosos, denominada Vinhedos de Salomão. A garota está ali aparentemente por vontade própria, mas é mantida sob drogas, nas nuvens. Craven aos poucos mergulha no cotidiano da cidade, se envolve com uma loura que atende pelo epíteto de Princesa, entra em choque com um gângster, com um advogado suspeito, deflagra um tiroteio terrível, que até hoje inspira escritores e cineastas, e é obrigado, se quiser continuar vivo, a mentir e matar. Como Sam Spade, de Hammett, seu método reúne mentira, sarcasmo e imoralidade na dose certa para fazer justiça e resgatar a garota, a estatueta valiosa e rara da história. E no desfecho, como em O falcão maltês, Craven abdica do seu amor por uma mulher, descartando-a em favor da justiça, embora à sua maneira espirituosa, cruel e nada ortodoxa. Com esse espírito noir, era inevitável que Karl Craven fosse admitido na seleta galeria dos grandes detetives durões e solitários, encabeçados por Sam Spade e Philip Marlowe. Publicado na Inglaterra em 1941, Os vinhedos de Salomão saiu nos EUA na década de 1950 com cortes substanciais, por causa de suas cenas de violência, sadomasoquismo, alcoolismo, cinismo, humor negro e seu vocabulário baixo, arrancado das ruas, até ser resgatado na íntegra trinta anos depois e redescoberto como um clássico do gênero e, possivelmente, a obra-prima do autor. Curiosidade: a breve introdução do romance é assinada pelo próprio Karl Craven, que garante que tudo no livro é verdade, apesar de inacreditavelmente "barra-pesada", e que o autor apenas escreveu o que ele disse.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

VERONICA MARS

No relato policial clássico, o crime em geral é uma excentricidade, um capricho do caráter, oriundo de uma mente excepcional ou doentia, e cabe ao detetive desvendar o delito e esclarecer os motivos por que seu autor o praticou; não raro sem sair de seu escritório ou sua biblioteca, legando a outros, sem falsa modéstia, a honra de prender o facínora. No relato policial de ação, por sua vez, o crime está nas ruas, na vida cotidiana, e envolve qualquer pessoa, inclusive o detetive, que não está livre de ambição por dinheiro ou poder, nem de se apaixonar por uma linda mulher, que o levará ao coração do crime ou o fará cometê-lo, por amor. Já em Veronica Mars, série policial de tevê, em sua primeira temporada, houve um duplo deslocamento: o crime nem é uma excentricidade nem está nas ruas, no calor das relações. O crime está na escola e na família. Ou seja, educamos duplamente nossos filhos para o crime: instintivamente na família e formalmente na escola. Logo no primeiro episódio sabemos que Veronica Mars (interpretada por Kristen Bell), de apenas 17 anos, perdeu a virgindade "para alguém", quando estava "apagada", numa noite de drogas na casa de uma colega de escola, e que, não muito depois, sua melhor amiga, Lilly, irmã do seu namorado na época, foi assassinada. Agora, ela tem dois motivos bem pessoais para auxiliar seu pai na agência de detetives que ele montou ao ser demitido do cargo de xerife: descobrir quem a estuprou e encontrar o assassino de Lilly. Sua ação como investigadora, daí por diante, vai se dividir em dois cenários: a escola em que estuda, abarrotada de jovens ricos, e as casas de suas famílias, tão afeitas ao crime quanto as piores famílias da Máfia. A série mescla policial de enigma com policial de ação e faz da jovem Veronica Mars uma heroína precoce. Recheada de citações e homenagens aos clássicos americanos da série noire, como Hammett e Chandler, e ambientada na cidade de Neptune, California, Veronica Mars é uma série cativante, inteligente, ousada (esteticamente, inclusive) e a prova visível de que o gênero policial, seja no cinema, na literatura ou na tevê, pode se renovar por muitas trilhas e surpreendentes desvios.