Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

OS AMORES DA PANTERA

Um romance, como gênero narrativo, será sempre a representação de um tempo e de um lugar. Os costumes de uma sociedade, os hábitos de um grupo. Não importa que pareçam hoje, ao nosso olhar, anacrônicos ou imprecisos. Sendo ou não verdade o seu assunto, feita a representação romanesca, torna-se a trama um relato e uma realidade possíveis, de modo que, durante a leitura, possamos voltar àquele espaço e compreendê-lo e aos seus indivíduos, que circulam em seu momento como numa eternidade.
 
Em cores impressionistas, é este o efeito que nos transmite a leitura do romance Os amores da Pantera, de José Louzeiro.  Recriação de um dos mais célebres crimes ocorridos do âmago da alta sociedade carioca, seu relato não se contenta em reproduzir a verdade e a representa em tons artísticos, eminentemente literários, obtendo, assim, uma perenidade que poucos romances, e ainda mais os policiais, alcançam. Não somente acreditamos no que lemos como nos sentimos incomodados com suas cenas mais corajosas e violentas.
 
Podemos dividir, para efeito de análise, Os amores da Pantera em três partes: a festa, durante a qual, em meio a um alto consumo de drogas e excessos sexuais, duas moças são assassinadas, como prelúdio do que vai acontecer; a vida, período em que os personagens presentes àquela festa voltam "limpos" ao cotidiano comum, muito embora conscientes de que não serão mais os mesmos, depois de tudo o que aconteceu; e, por fim, a morte, consequência e síntese daquelas duas primeiras incursões, ou períodos, e ponto extremo a que a narrativa deve conduzir o leitor, renunciando a qualquer senso de justiça, pois, num país como o nosso, é assim que acontece: os criminosos ficam impunes, especialmente se integram determinadas classes sociais, como a esfera da política ou a "realeza" franqueada pelo dinheiro. 
 
José Louzeiro não põe maquiagem no fato. Mantém a Pantera como vítima de seus carrascos, mas não deixa de sugerir que, por sua conduta, ela teve igualmente a sua parcela de culpa. Quem não quer se afundar não se acerca da areia movediça. Se no crime americano da Dália Negra moviam-na a solidão e o desespero, no da Pantera, ao contrário, o que a faz se perder é o dinheiro e, em dosagem não menos decisiva, certo prazer pelo risco, alimentado por longas imersões alucinógenas e frequentes orgias.
 
Os criminosos ficaram impunes, mas a vítima, não. Tanto na vida quanto na literatura, há certa coerência nos fatos, sacramentada pela relação de causa e efeito. Qualquer passo dado ou a ausência dele levarão a um termo, a uma consequência. O provérbio não falha: se vou morrer nas montanhas, nem preciso ir lá. Foi esta a lógica da Pantera, que, em certo trecho da narrativa, a intui e não parece se abalar. A sabedoria do não-agir pode ter também as suas consequências nefastas. Ou nosso percurso sobre a Terra, nas palavras de Henri Borel, não é senão isto: "Um homem surge das trevas, sorri por um instante ao clarão da existência, e logo desaparece". Curta ou longa, a vida é a mesma vida.