Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

terça-feira, 30 de julho de 2013

MEMÓRIAS DE MAIGRET

L&PM, 2006.
Neste relato, publicado em 1951, Simenon inova e se renova. Deslocando a narrativa da terceira pessoa onisciente e fria para a primeira, emotiva e confessional, o autor promove o acerto de contas do personagem Maigret com o seu criador, Simenon. Na ficção imaginada pelo autor, Maigret decide escrever suas memórias e começa exatamente pelo dia em que ele e Simenon se conheceram, no Quai des Orfèvres. A construção da pessoa Maigret por ele próprio, personagem, coincide com a desconstrução do autor, Simenon, rebaixado à condição de aproveitador e mentiroso. Como acontece a muitos leitores, Maigret se esquece de que, ao ser transformado em personagem, ele se tornou outra pessoa, um ser ficcional; que apenas serviu como matriz de outra vida, que não é mais a sua, e de outro ser, seu duplo, seu outro-mesmo. É só por isso, esse detalhe trivial, que a empreitada de Maigret fracassa. Mas não a de Simenon, que escreve um dos livros mais originais da primeira metade do século XX, e sobretudo no caso de personagem em série e de um gênero ― o policial ― que prima pela repetição, pela convergência a fórmulas e pelo cumprimento rígido de suas regras internas. O desfecho, irônico, envolve a Sra. Maigret, que preenche com seus bilhetinhos providenciais as lacunas de memória do marido, meio embaraçado com sua empreitada literária.

Publicado originalmente na Verbo 21.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

AS FÉRIAS DE MAIGRET

L&PM, 2004.
O comissário Jules Maigret, gozando férias em Sables-d'Olonne com a esposa, vê sua rotina mudar radicalmente quando a Sra. Maigret é hospitalizada às pressas para uma cirurgia. Este evento fortuito altera o cotidiano ocioso de Maigret, que, mesmo desinteressado dos acontecimentos que o enredam e insatisfeito com o rumo de sua diletante investigação, vai solucionar mais um mistério e agarrar mais um criminoso. Neste romance, publicado em 1948, e que é um dos melhores da série, Simenon reflete sobre as consequências do ciúme amoroso na vida de um homem, bem como sobre o aprisionamento a que o excesso de beleza pode conduzir uma mulher. Uma das melhores personagens do livro ― e em torno da qual toda a trama se constrói ― ironicamente não aparece nem para Maigret nem para o leitor. Quando afinal se obtém a chave que dá acesso aos seus aposentos íntimos, “onde se ouvia a respiração regular de uma mulher adormecida", o romance termina. Tal característica faz deste relato um dos mais simbólicos e subjetivos já escritos por Simenon.

Publicado originalmente na Verbo 21.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

O ALVO MÓVEL

L&PM, 2007.
Com este romance, publicado em 1949, Ross Macdonald, considerado por muitos o autor que refinou o material deixado por Dashiell Hammett e Raymond Chandler, inaugurou a saga de Lew Archer, "um novo tipo de detetive", como ele próprio se define. O enredo é simples e foi por demais imitado, tanto por Macdonald quanto por seus epígonos. Lew Archer é contratado por uma ricaça para investigar o paradeiro de seu marido, que fugiu ou foi sequestrado. Tal empresa coloca Archer em contato com uma linda adolescente mimada, seu pretendente atlético, um advogado apaixonado, uma atriz decadente, um guru idiota e uma súcia de malfeitores, dispostos a qualquer ação para ganhar alguns milhares de dólares. O estilo de Macdonald é seco, direto, como Hammett, mas inclinado a reflexões, muitas vezes poéticas, à maneira de Chandler: "O dinheiro é a energia vital desta cidade. Se você não tem, só está meio vivo". Do primeiro, absorveu ainda a tendência a criar personagens ambíguos, pendentes entre o bem e o mal, a verdade e a mentira; do segundo, certa propensão à melancolia e à piedade. Outra das características marcantes dos romances e contos de Ross Macdonald é a movimentação constante. Archer jamais para, está sempre em movimento, ou de carro, o que é mais comum, ou a pé. O autor parece indicar com isso que, de uma vez por todas, os detetives abandonaram a dedução em favor da observação in situ. É no calor dos fatos que o mistério se esclarece. Além disso, um destino específico é reservado às mulheres, que deixam de ser meros coadjuvantes, objetos de prazer ou motores de desejos fatais e interferem diretamente na trama, ou com ações e reações ou através de falas que enriquecem a narrativa ou a desviam do curso comum: "Gostaria de não ter dinheiro nem sexo. Para mim os dois dão mais problemas do que valem", dispara uma das mulheres de O alvo móvel, que inspirou o filme Harper (1966), com Paul Newman interpretando o detetive. Para os leitores que apreciam começar do princípio, este é o livro de entrada para o universo das investigações nada ortodoxas de Lew Archer.

domingo, 7 de julho de 2013

A CASA DO PENHASCO

L&PM, 2011.
Hercule Poirot, já aposentado, passa os dias ensolarados de verão no litoral da Cornualha. Hastings, de volta de uma longa temporada na América do Sul, encontra-se ao seu lado e o auxilia a resolver o enigma do assassinato de uma jovem, prima da proprietária da Casa do Penhasco. Supostamente, a moça foi morta em lugar da prima, que vinha sofrendo atentados, um dos quais na presença de Poirot. Em trama bem urdida, e cheia de surpresas, Agatha Christie consegue, com A casa do penhasco (Peril at end house), publicado em 1932, deter a atenção dos leitores e, ao mesmo tempo, desafiar a sua perspicácia. Numa situação em que todos os envolvidos são potencialmente suspeitos, apontar o criminoso é tão difícil para o leitor quanto para Poirot, que, em alguns momentos, sente-se impotente e ludibriado, a ponto de proferir o seguinte desabafo metalinguístico: "Por que ninguém nunca tem certeza de nadaNos livros de detetives, tudo é líquido e certo, claro. Mas a vida real é uma eterna confusão. Será que eu mesmo tenho certeza de alguma coisaNão, não, mil vezes não!" Sem chegar a ser um dos romances mais celebrados da autora, A casa do penhasco proporciona, sobretudo aos leitores aficionados pelo gênero, algumas horas de autêntico prazer.