Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

domingo, 22 de novembro de 2009

AGÊNCIA No.1 DE MULHERES DETETIVES

Talvez seja um lugar-comum dizer o quanto o formato do romance policial é maleável o suficiente para incluir qualquer espécie de discussão, através de suas regras aparentemente simplistas (do crime cometido, da caça ao criminoso, do detetive astuto etc.). Assumo o lugar-comum e o repito, pois ultimamente ele tem sido bem alargado.
As possibilidades parecem ser infinitas. As misturas também: podemos lembrar, assim rapidamente, de alguns clássicos: Rex Stout (romance policial e humor), Ross Macdonald (romance policial, discussão social e conflito de gerações), Harry Kemelman (com um rabino como detetive!), o que já havia sido experimentado por G. K. Chesterton, com o seu Padre Brown. As novas gerações de romancistas policiais têm levado ao extremo as mais recentes tendências socioeconômicas mundiais, como a “absoluta urbanização”, a globalização feroz, a violência (física ou psicossocial), a miséria, a corrupção política e institucional. Se o romance policial é uma forma ou fôrma, está servindo muito bem para caracterizar a humanidade atual. Os modernos James Ellroy, James Lee Burke, o nosso brasileiríssimo Alfredo Garcia-Roza (ambientando suas histórias nas ruas do Rio de janeiro), por exemplo, estão dando conta do recado: refletem, discutem, pensam.
Por outro lado, o “modelo” policial está servindo muito bem para algumas experiências muito interessantes e para a apresentação de alguns novos lugares com suas visões especialmente particulares: o marselhês Jean-Claude Izzo, o sul-africano Henning Mankell, o tcheco Josef Skvorecky, a chilena Marcela Serrano. E, se por acaso, há um certo perigo de exotismo barato, isso tem sido superado por uma característica geral (pelo menos, entre os autores que estou citando): a excelência dos textos.
O Agência No. 1 De Mulheres Detetives, de Alexander McCall Smith, tinha tudo para ser um simples livro exótico, a começar pela ambientação: a pequena e provinciana cidade africana de Gaborone, em Botswana, antigo Protetorado de Bechuanalândia. Botswana é quase que uma exceção no grande painel dos problemas que assolam os países africanos, embora ao mesmo tempo seja representativo dos seus enormes contrastes: enquanto por um lado, Botsuana apresenta um dos índices mais tranqüilos de estabilidade econômica e política, por outro lado é justamente o lugar de maior incidência de casos de AIDS na África e, consequentemente, do mundo.
O "exotismo" poderia continuar pela sua história: a gorda e independente Mma Ramotswe (Mma é o tratamento local para uma mulher; seria uma espécie de "Madame", "Senhora") decide fundar seu próprio negócio com a venda do pecúlio herdado do seu pai, algumas cabeças de gado acumuladas durante a vida. Como o gado é um bom indicativo na escala social, principalmente se estiver com boa saúde, ela consegue um bom preço. Compra uma casa (outro bom indicativo social) e, ao invés de abrir uma loja de roupa ou uma oficina, decide abrir uma agência de detetive. Vejamos bem: não há, nunca houve nenhuma espécie de detetive particular na região (ou, até onde podemos saber, no País), muito menos dirigida e assumida por uma mulher. De tal forma, que nem mesmo ela sabe que tipo de trabalho pode acabar pegando. E seu único auxílio teórico é um livro de um curso de detetive por correspondência e que, na prática, se revela bem inútil.
O que poderia se tornar um romance satírico ou até mesmo infantilóide, se transforma nas mãos de Alexander McCall Smith em uma deliciosa crônica de costumes. O autor consegue, com uma escrita simples e direta, transmitir um bom humor saudável em um perfeito equilíbrio de situações e temas delicados e espinhosos. Seus personagens são tão carismáticos e bem delineados que ficam em nossa memória.
É óbvio que o destaque é Mma Ramotswe. Ela esbanja simpatia, compreensão e um bom-senso invejáveis. É um bom-senso nascido de sua condição de mulher e africana num lugar onde o machismo, o moralismo (falso e hipócrita) e os preconceitos religiosos ainda imperam. Para que nasce uma mulher, se não for para casar, ter filhos e lavar a louça? Ou eventualmente trabalhar fora, se o marido estiver desempregado? Ela transita no meio desses problemas e limitações com desenvoltura e coragem. Ela conhece bem a situação, sabe onde está pisando, já foi casada, já perdeu um filho por conta das surras que recebeu, sabe que isso atinge todas as mulheres independentes de sua condição sociofinanceira.
Todos os outros personagens são bem apresentados, não resvalam para a caricatura nem para uma caracterização extremada. Memoráveis, por exemplo, são o próprio pai de Mma Ramotswe, Obed, que ganhou a vida como mineiro nas minas de carvão na África do Sul, enquanto acumulava dinheiro para comprar gado na sua terra natal, e o Sr. J. L. B. Maketoni, mecânico e melhor amigo de Mma Ramotswe, que sonha ser seu novo marido.
Esse equilíbrio do livro é admirável. Ele não cai nem para o dramatismo nem para a comédia desbragada, e o que poderia ser uma intragável salada africana é coerente e suave como o chá de “rooibos” tomado por Mma Romatswe e sua secretária, a única funcionária da agência. Dessa forma, os "casos" podem nos levar a um crocodilo-assassino (o único assassinato do livro, aliás), à busca de um garoto desaparecido, que levanta o véu sombrio dos feiticeiros africanos ou ao desmascaramento de um médico picareta. Mas todos eles têm em comum a sensibilidade, o vislumbre de pedaços da alma humana.


CLAUDINEI VIEIRA. Contista e infiltrado recorrente deste blogue.

Nenhum comentário: