Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

domingo, 18 de outubro de 2009

SEM FLORES DE MAGNÓLIA

Raymond Chandler, além de escrever romances e contos, foi um pensador das formas e tons que esses gêneros adotaram quando a serviço do gênero policial. No ensaio A simples arte de matar, ele faz um contraponto entre a história de detetive clássica (de enigma ou mistério) e o estilo que Hammett implantou, ao deslocar o "assassinato de dentro do vaso veneziano" para "uma ruela qualquer", pois desde o início Hammett "escreveu para pessoas que possuíam uma atitude perspicaz e agressiva perante a vida", pessoas "que não tinham medo do lado menos atraente das coisas; elas viviam nele". E continua: "A violência não as fazia esmorecer; ela se encontrava logo ali, em suas ruas. Hammett devolvia o assassinato para o tipo de gente que o cometia 'por razões', não só para fornecer um cadáver; e com os recursos à mão, não com um duelo de pistolas 'feitas à mão', curare e peixes tropicais. Ele colocava essas pessoas no papel como elas eram e as fazia falar e pensar na linguagem que custumeiramente usavam para esses fins". E toca num ponto sempre controverso, embora não para mim: "Ele tinha estilo, mas seu público não sabia disso, porque estava numa linguagem que supostamente não era capaz de tais refinamentos (...). Hammett era conciso, frugal, duro, mas fez sempre e repetidamente aquilo que só os melhores escritores conseguem fazer: escreveu cenas que parecem nunca terem sido escritas antes". Por fim: "E ainda há muita gente por aí que diz que Hammett não escrevia histórias de detetive; ele teria escrito duras crônicas sobre a vida sórdida nas ruas das grandes cidades, colocando nelas um elemento adicional, de mistério, assim como quem põe uma azeitona num martíni seco. Quem diz isso são as velhas senhoras perturbadas, de ambos os sexos (ou de nenhum sexo) e de quase todas as idades, que gostam de ter seus assassinatos perfumados com flores de magnólia e não querem ser lembradas de que assassinato é um ato de infinita crueldade, mesmo que os criminosos às vezes se pareçam com playboys ou professores universitários ou mulheres simpaticamente maternais de suaves cabelos grisalhos". "Há também uns poucos defensores, bastante assustados, do mistério formal ou clássico, que pensam que uma história não é de detetive se não propõe ao leitor um problema formal e exato, onde os indícios encontram-se arranjados com lindas etiquetas ao redor deste problema." Penso que as palavras acima (de um Chandler senhor de sua matéria) esclarecem, de uma vez por todas, uma dúvida e fecham uma questão: a forma não está no assassinato, como pretendiam Agatha Christie e seus seguidores, mas no texto que o representa; e que é a partir de Hammett que o gênero policial perde a inocência e se acerca de um desejo de consciência do que sejam seu assunto e sua forma. Ora, é exatamente este grau de consciência quanto às suas possibilidades que faz com que uma simples narrativa de ficção (policial ou qualquer outra) deixe de ser um estado de linguagem a serviço de um gênero para ser literatura.

Um comentário:

humberto disse...

Mayrant
Eu já devo ter lido mas não lembro (tanto tempo...). "A Dama do Lago" vale a pena ler de novo?
Ab e ob peo dica, se valer.