Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

SEM AFETAÇÃO

"O maxilar de Spade era largo e ossudo, seu queixo era um V muito pronunciado, abaixo do V mais suave, formado pela boca. As narinas se arqueavam para trás para formar um outro V, menor. Os olhos amarelo-cinzentos eram horizontais. O tema do V era retomado pelas sobrancelhas um tanto peludas que se erguiam a partir de duas rugas gêmeas acima do nariz adunco, e o cabelo castanho-claro tombava – de suas têmporas altas e retas – em uma ponta, por cima da testa. De modo bem ameno, ele parecia um satã louro." (São Paulo: Companhia das Letras, 2001.)

Este primeiro parágrafo de O falcão maltês é até hoje motivo de exame e referência entre escritores e leitores atentos do gênero policial. E serve para rebater aqueles que insistem em afirmar que tais autores não têm cuidado com a língua, nem buscam um estilo (soma de técnica e estética) que os diferencie dos demais escritores. Ora, eles apenas não se exibem. A funcionalidade do texto está em primeiro plano. Se podem ser diferentes, não hesitam em ir por este caminho, mas sem jamais perder de vista a funcionalidade. O estilo pode ser a "festa da linguagem" às vezes, mas no geral é uma ferramenta "em serviço", para um fim específico: o estabelecimento de uma escrita legível e sobre a qual o leitor não se detenha em excesso. No trecho de Hammett, temos a descrição de um personagem – motivo recorrente do gênero –, mas a forma é incomum, inesperada, insistentemente em V, e conclui com uma observação singular: "De modo bem ameno, ele parecia um satã louro"; metaforicamente já se espera, desde então, as artimanhas que serão a marca de Spade. Isso é estilo. Só não é afetação. Não pretende exibir-se. A discrição – não parecer "um estilo"– é sua meta.

3 comentários:

Victor Mascarenhas disse...

Grande Mayrant, obrigado pela visita lá no blog e parabéns pelo Infiltrados. Excelentes textos sobre um gênero que ainda tem gente que torce o nariz. Aguardo com ansiedade alguma coisa sobre Graham Greene, um dos meus favoritos.

humberto disse...

Mayrant
Tenho um trauma de infância e não consigo ler Graham Greene. Um tio chato, que era carola e de direita quando me via lendo livros de autores controversos como os beats, Hesse, Huxley ou Orwell, por exemplo, me presenteava com um Greene ("o cristão"). Isto me deixava puto. Tinha uns 16/17 anos. Até hoje me vingo...

Carmen Filgueiras disse...

Adorei o blog! Estou fazendo uma tese na PUC sobre o gênero policial e com certeza vou frequentar os Infiltrados!