Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

sábado, 31 de outubro de 2009

ARTE E FUNCIONALIDADE

"Era uma manhã clara, sem poluição nem grande nevoeiro; o sol brilhava na superfície de piscina que começava do outro lado da parede de vidro do bar e se esparramava até o final do restaurante. Uma garota de maiô colante branco, com um rosto agradável, subia a escada para o trampolim. Olhei a faixa branca que havia entre o bronzeado das coxas e a roupa. Olhei-a sexualmente. Logo ela estava fora do meu ângulo de visão, cortada pela profunda caída do teto. Um momento depois eu a vi cintilar num relance. As gotas subiram a ponto de pegar o sol e formar arco-íris quase tão bonitos quanto a garota. Mas daí ela subiu a escadinha da piscina, tirou a touca branca e a sacudiu. Rebolou até uma mesinha branca e sentou-se perto de um sujeito grande de calças brancas de algodão, óculos escuros e um bronzeado tão escuro, que ele só poderia ser o sujeito encarregado de cuidar da piscina. Ele esticou a mão e deu-lhe umas pancadinhas na coxa. Ela abriu a boca como se fosse um balde, e sorriu. Meu interesse por ela terminou. Não cheguei a ouvir o riso, mas aquela abertura no rosto quando ela mostrou os dentes foi mais do que suficiente." (O longo adeus. L&PM, 2000, p. 96-7. Tradução de Flávio Moreira da Costa.)

Este é um trecho representativo da arte de Raymond Chandler. A descrição sutil de um ambiente; um ser fascinante, quase sempre uma mulher; o prazer visual que sua presença desperta; a sensualidade apenas sugerida, sem maiores voos verbais; a ironia (porque está bronzeado, o cara só pode ser o empregado encarregado da piscina) e a auto-ironia (quando mostra, pela reação do homem, que ele não é um empregado, e pela da garota que ela está com o sujeito e gosta disso) do narrador; a precisão verbal que, discretamente, apresenta um mundo específico, das classes abastadas, representado aqui pelo acúmulo de referências à cor branca, símbolo de bom-gosto e riqueza: maiô branco, faixa branca da pele da garota, touca branca, mesinha branca, sujeito de calças brancas de algodão; a poesia do mundo físico: "profunda caída do teto", "eu a vi cintilar num relance"; e humor: "rebolou até uma mesinha branca", "abriu a boca como se fosse um balde".
Este é Raymond Chandler, seu estilo e sua arte, sua técnica e sua estética. Num breve texto temos tudo o que, nele, se expressa para a funcionalidade das palavras, para o andamento sem entraves da história e também para não-ditos, sugestões, ironias, humor, precisão histórica e uma feliz e eficiente subjetividade.

3 comentários:

Palatus disse...

Mayrant, sempre nos ensinando alguma coisa com suas palavras fortes e objetivas...

Saudade...abraço destas terras paulistas!
Jocenilson

Lidi disse...

Esse é Raymond Chandler e eu ainda não li um livro dele. Que pecado! Preciso fazer isso o mais rápido possível. Um abraço, Mayrant.

Lidi disse...

Ainda bem que, agora, já posso dizer que li Chandler. E virei fã.