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L&PM, 2006. |
Neste relato, publicado em 1951, Simenon inova
e se renova. Deslocando a narrativa da terceira pessoa onisciente e fria para a
primeira, emotiva e confessional, o autor promove o acerto de contas do
personagem Maigret com o seu criador, Simenon. Na ficção imaginada pelo autor,
Maigret decide escrever suas memórias e começa exatamente pelo dia em que ele e
Simenon se conheceram, no Quai des Orfèvres. A construção da pessoa Maigret por
ele próprio, personagem, coincide com a desconstrução do autor, Simenon,
rebaixado à condição de aproveitador e mentiroso. Como acontece a muitos
leitores, Maigret se esquece de que, ao ser transformado em personagem, ele se
tornou outra pessoa, um ser ficcional; que apenas serviu como matriz de outra
vida, que não é mais a sua, e de outro ser, seu duplo, seu outro-mesmo. É só
por isso, esse detalhe trivial, que a empreitada de Maigret fracassa. Mas não a
de Simenon, que escreve um dos livros mais originais da primeira metade do
século XX, e sobretudo no caso de personagem em série e de um gênero ― o
policial ― que prima pela repetição, pela convergência a fórmulas e pelo
cumprimento rígido de suas regras internas. O desfecho, irônico, envolve a Sra.
Maigret, que preenche com seus bilhetinhos providenciais as lacunas de memória
do marido, meio embaraçado com sua empreitada literária.
Publicado originalmente na Verbo 21.