Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

domingo, 2 de janeiro de 2011

"MARKHEIM", DE STEVENSON

O fato de classificarmos A cartomante, de Machado de Assis, como um conto policial evidentemente desagrada aos puristas. Aqueles leitores que por ingenuidade acreditam que a ficção policial é uma exclusividade da literatura de consumo ou de entretenimento, e que a chamada "alta literatura" jamais se interessa pelo gênero ou, quando o faz, é com outros propósitos. Não só A cartomante é um conto policial, e dos melhores já escritos, como inúmeros outros "altores" (isso mesmo, com "L", para dar conta de "autores altos", inseridos na alta literatura) incorreram no gênero, e ainda o fazem, e cada vez mais. Ontem, voltando ao meu "regímen" antigo, de ler por dia pelo menos um conto, reli Markheim, de Robert Louis Stevenson, que integra a antologia organizada por Bráulio Tavares Contos fantásticos no labirinto de Borges (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005). Como o conto supracitado de Machado de Assis, este relato de Stevenson é do gênero policial, mas não se restringe a contar ou elucidar um crime. Há um crime, evidentemente, que poderíamos classificar de primeira história, ou história visível, como propõe Ricardo Piglia, e há a história secreta, apresentada em segundo plano, e que se mostra no desfecho, quando o protagonista, um assassino, pela primeira vez decide por si mesmo sobre sua vida. Até então ele ia ao curso dos acontecimentos. Agora, contudo, toma uma séria decisão, e exatamente quando, pressionado pelo mal e por ele instigado, era mais fácil se deixar conduzir. A iconoclastia que durante toda a vida lhe esteve a serviço do crime o fez tomar o caminho oposto, e com isto, em circunstâncias pouco dignas e desfavoráveis, Markheim se redime. No conto, o assassinato e suas consequências, narrados com riqueza de detalhes, serviram como pretexto para um exame mais largo e profundo acerca da condição humana, o que, por outro lado, não o transforma em outra coisa, é ainda um relato policial. Tais características fizeram deste conto um dos preferidos de Borges.

2 comentários:

Lidi disse...

Adorei os "altores". Adoro a tua ironia, Mayrant. E gostaria de entrar também nesse "regímen". Espero conseguir ter esta disciplina. Quanto ao conto "Markheim", ainda não o li, mas fiquei curiosa. Um grande abraço.

Lidi disse...

"No conto, o assassinato e suas consequências, narrados com riqueza de detalhes, serviram como pretexto para um exame mais largo e profundo acerca da condição humana, o que, por outro lado, não o transforma em outra coisa, é ainda um relato policial."

Perfeito! Estou relendo todo o blogue, Mayrant. E acho até que vou imprimir os posts. Vão me ajudar muito! Abraços.