Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

DUAS VEZES CAIN

Uma edição que constitui um dos mais felizes acertos de um editor de literatura policial no Brasil. Em 1984, na Série Mistério e Suspense, a Abril Cultural reuniu, nada mais nada menos, que os dois mais célebres e controversos romances do norte-americano James M. Cain (1892-1977): O destino bate à sua porta (The postman always rings twice, 1934) e Dupla indenização (Double indemnity, 1936). O curioso é que o primeiro ― também o primeiro livro de Cain ― comemorava cinquenta anos de publicado. Não há, porém, nesta edição, nenhuma referência ao cinquentenário.
Ambos narram histórias de assassinatos premeditados, e ambos reúnem esposas que, friamente, auxiliadas por seus amantes, se livram de seus maridos. O palco do primeiro é uma lanchonete de beira de estrada, enquanto, no segundo, é um trem em movimento, embora o crime tenha sido elaborado, com bastante antecedência, numa mansão de Hollywood, Califórnia. Em ambos tira-se proveito monetário da morte alheia, e em ambos o leitor se identifica com os assassinos, torce para que sejam bem sucedidos em sua empresa, não demonstrando a mínima consideração pelos que morrem e pouco se importando se os culpados serão punidos ou não. Tal inversão, ou perversão, de valores impôs às duas obras um destino a um só tempo duradouro e obsceno, pois são até hoje consideradas excessivamente pesadas e sem similares que se lhes equiparem, tampouco que as superem.
O racionalismo na preparação dos crimes e a frieza de sua execução ainda são capazes de chocar, mesmo que romances mais atuais e filmes bem mais apelativos no gênero invistam, ano após ano, em entrechos semelhantes. Talvez o estilo de Cain, cru e meio cínico, colabore em acentuar a brutalidade das duas histórias, autênticos estudos de comportamento dos indivíduos da moderna sociedade americana, presas fáceis do irrefreável desejo de enriquecer e conseguir, a todo custo, um lugar ao sol na tão badalada american way of life.
As traduções, ainda fluentes e fieis ao estilo do autor, são, respectivamente, de Evelyn Kay Massaro e Aldo Bocchini Neto. E a capa reproduz imagens do filme O destino bate à sua porta, de Bob Rafelson, com Jessica Lange e Jack Nicholson nos papeis dos amantes assassinos; simplesmente a quarta adaptação cinematográfica do livro, em quase oito décadas de ininterruptas edições. Ano que vem, aos 80 anos, o carteiro voltará a bater? Talvez.

Publicado originalmente na Verbo 21. 

Um comentário:

Lidi disse...

Eu tive a sorte de ler esses dois excelentes livros de Cain, ambos indicados por você, Mayrant. Através de uma dica sua, também, conferi o filme "Pacto de sangue", de Billy Wilder, baseado no livro "Dupla indenização". Só me falta assistir ao filme "O destino bate à sua porta", de Bob Rafelson. Mas a sugestão já está anotada. Obrigada. Um grande abraço.