Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

QUATRO MULHERES E MAIGRET

Porto Alegre: L&PM, 2009.
De 8 de abril até ontem, li dez títulos com o comissário Maigret, do escritor belga Georges Simenon. Foram Maigret hesita (1968), Maigret e o fantasma (1964), Maigret e o cliente do sábado (1962), Maigret e a morte do jogador (1967), Maigret (1934), Maigret e o matador (1969), Maigret se defende (1964), Maigret e o mendigo (1963), Os escrúpulos de Maigret (1958) e A taberna dos dois tostões (1931). Os motivos para esta overdose de Maigret foram dois: as longas horas que tive de passar no hospital, em companhia de um parente doente, e o próprio prazer que a leitura de Simenon me proporciona, de modo que, tão logo termino um livro, tenho vontade de começar outro. O leitor de Simenon sabe que o que menos importa nas histórias com Maigret são as tramas. Diferentemente dos demais detetives ou investigadores dos relatos policiais mais tradicionais, Maigret não tem um método específico, segue sua intuição e desvenda os crimes observando o contexto em que ocorreram, não raro mergulhando no interior das pessoas envolvidas ou analisando os seus pertences íntimos. Mesmo assim, vamos tentar reduzir a uma ou duas linhas a trama de cada livro:

1) Maigret tenta evitar um assassinato que se anuncia no seio de uma família burguesa; 2) Maigret investiga o atentado a um policial fracassado, que está internado em estado grave; 3) um homem procura Maigret num sábado e lhe confessa que pretende matar a esposa infiel e seu amante; 4) Maigret investiga a morte de um jogador profissional, frequentador dos grandes cassinos da Europa; 5) embora aposentado, Maigret decide investigar o assassinato de um bandido, pois o suspeito do crime é seu sobrinho, lotado no Quai des Orfèvres; 6) Maigret investiga a morte de um jovem estudante de Letras, que tinha o hábito de gravar as conversas alheias em público; 7) suspenso de suas atribuições, sob acusação de ter molestado sexualmente a sobrinha de um ministro, Maigret perpetra uma investigação pessoal para se defender; 8) um mendigo sofre tentativa de assassinato, e o fato desperta em Maigret a desconfiança de que a vítima detém o segredo de algum crime antigo; 9) um casal procura Maigret para lavar a roupa suja matrimonial e desperta no comissário a certeza de que um crime está por acontecer; 10) numa Paris vazia, pois boa parte da população goza as férias de verão, uma pista leva Maigret à Taberna dos Dois Tostões, onde um crime deverá acontecer.

De maneira geral, os dez livros são de alto nível. Simenon era um virtuose. Dominava sua arte e não abandonava suas escolhas pessoais. Dificilmente escrevia um romance ou um conto que não estivessem acima da média geral. E, mesmo quando se limitava a escrever uma história policial, era diferenciado, porque não hesitava em criar situações reais, com atmosferas convincentes e personagens que pareciam saltar da vida comum para a dimensão das páginas. E seus climas, suas reflexões, os mergulhos psicológicos cheios de nuances e ambiguidades... a ironia, o sarcasmo, o humor... a pintura colorida de cenários vivos, bares, hoteis, ruas, praças, repartições públicas, os lares onde os dramas ocorrem com frequência e que, às vezes, conduzem ao crime, tudo isso colabora para fazer de seus livros documentos humanos que não resistimos bisbilhotar. Dos dez livros, somente um não me empolgou: A taberna dos dois tostões. Os demais são extraordinários, exatamente porque Simenon não admite escrever uma história ao acaso, sem um argumento preciso e que, de imediato, conquiste e impacte o leitor. Neste sentido, Maigret hesitaMaigret e o cliente do sábadoMaigret e a morte do jogadorMaigret se defende e Os escrúpulos de Maigret são os destaques, por causa dos argumentos de exceção que apresentam e por cunhar personagens femininas que, de simples coadjuvantes, se tornam protagonistas; incômodas, diga-se de passagem. Elas exasperam tanto o comissário com sua eloquência, seu silêncio e suas idiossincrasias, que, ao fim, em Os escrúpulos de Maigret, ele perde as estribeiras e, por pouco, não vocifera: "Que ela se f..." Quatro destas mulheres letais, e que se contrapõem à esposa que Maigret tem em casa, sempre pronta a recebê-lo com a melhor das intenções e o melhor prato, são Srta. Vague, Renée Planchon, Evelina Nahour e Gisele Marton. Uma secretária e três esposas, todas amantes. Que o leitor, ao ler, descubra e entenda os motivos. Não são poucos e não são banais.

3 comentários:

Lidi disse...

Bela resenha, Mayrant. Grande Maigret. Já lhe disse que gostaria de ler Simenon, e tantos outros autores, com a mesma frequência que você. Inveja boa! (risos) Um dia, chego lá. Um abraço.

Marcela Soares disse...

Resenha magnífica. Ler Mayrant falando sobre literatura me faz lembrar suas aulas, nas quais cada livro comentado acabava entrando para nossa lista de livros a ler, tamanha era a empolgação que ele nos passava ao falar dos livros. Semana passada indiquei as histórias de Maigret a um aluno que gosta de narrativas policiais. Estou tentando seduzir meus alunos pela leitura o mínimo da grandiosidade que aprendi com o Mestre. Abraço.

Anônimo disse...

Putz, dois anos atrás eu quis fundar um clube de leitores e dar-lhe o nome de Mayrant&UnsLeitores. Porque pouca gente lê um livro como você, Mayrant! Me dei conta disso no dia em que você me contou a história de Palmeiras Selvagens, de William Faulkner. Bom, não fundei Mayrant&UnsLeitores porque a vida acabou me arrastando para outros afazeres. Mas estou fundando agora um outro clube, com outro nome, mas sabendo que uma coisa sempre tem a ver com a outra.
Abraços e parabéns pelas leituras! Rosel Soares.