Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O LONGO ADEUS

A crítica é quase unânime em afirmar que o único livro do gênero policial-noir capaz de se ombrear com O falcão maltês e até mesmo superá-lo é O longo adeus (The long goodbye), de Raymond Chandler. Os motivos de tal afirmação não são poucos nem gratuitos.
Primeiramente, se O falcão maltês é um romance de ardilosos mentirosos (até o falcão é uma mentira), O longo adeus é uma história de pessoas perdidas, feridas e solitárias. Segundo, se naquele célebre livro de Hammett o dinheiro move a narrativa, impulsionando as personagens em direção ao crime e à mentira, no de Chandler monetariamente todos estão satisfeitos com o que possuem (uma evidência simbólica desta condição é a nota de 5 mil dólares que o detetive Philip Marlowe encerra em seu cofre, pois não precisa gastá-la), mas, por outro lado, estão todos doloridos e desencantados.
É literalmente um romance sobre o vazio, sobre os dias marcantes de um passado que, por mais que os personagens se esforcem, não conseguem esquecer; sobre a falta de amor, a existência fútil e sem horizontes; sobre a falta de sentido humano num ambiente de riqueza, dissolução e promiscuidade. Nesse sentido, a trama desloca-se da sua essência policial para o núcleo da própria condição humana e suas perdas ─ físicas ou psicológicas. E as mortes que ocorrem (e não são poucas) são atos antes de desespero que de cobiça ou capricho criminoso. O crime é uma consequência da vida, das relações, das dores. Todos os personagens ou perderam alguma coisa ou jamais acharam o que procuravam.
Lennox perdeu metade do rosto na Guerra e também a esposa, que jamais voltou a encontrar; além disso, sua esposa atual é uma mulher com muito dinheiro e igualmente muitos homens. Eileen perdeu o único amor de sua vida e vive com um escritor bêbado, Wade, que, por sua vez, perdeu o entusiasmo criativo e pouco a pouco vai perdendo o talento. Philip Marlowe é só um “detetive barato”, quase sem clientes e que tem o estranho hábito de ajudar as pessoas em troca de nada, por um decadente altruísmo ou um sentimentalismo de chá de caridade; também é sozinho, um solitário convicto, que almoça e janta diante de uma cadeira vazia; nem secretária possui. É numa dessas noites de abandono que ele conhece Terry Lennox e dá início a um périplo de álcool, ardis, ciladas, sangue e corpos imóveis.
Um outro aspecto a se ressaltar neste romance de Chandler é o caráter de reflexão. O autor não se satisfaz em criar uma trama policial. Descreve com precisão cirúrgica os cenários, mergulha no pensamento de seus personagens, analisa-os social e psicologicamente, expõe suas virtudes e também seus defeitos. Ninguém ─ nem instituição alguma ─ passa incólume por sua pena e seu olhar. E tudo isso num estilo direto, seco, irônico, analítico e, em muitos trechos, poético. O que em Hammett é só esboço em Chandler comparece em massa de cor, formas, ângulos, sabores, odores e perspectivas. Não é por acaso que se afirma que em Chandler o policial-noir atingiu o patamar de arte. De fato ─ e podemos até sugerir que Hammett, Cain, Goodis e Chandler formam uma espécie de quarteto desta verdade. Cada um, a seu modo, fez pelo policial-noir o que somente os grandes ficcionistas fizeram pela narrativa literária em geral. Claro que o relato policial moderno não se restringe a eles: Patricia Highsmith e Georges Simenon são duas vozes
antípodas, duas correntes específicas representadas, cada uma, por um único escritor...
Chandler não chegou a tanto, mas escreveu dois ou três romances ─ e o maior deles talvez seja O longo adeus ─ que, extrapolando o gênero policial, tornaram-se eternos. Retratos de um lugar, um tempo e uma gente ─ a Califórnia dos sonhos frustrados.

2 comentários:

Lidi disse...

Nossa, pelo que você escreveu, este livro tem tudo que eu gosto de ler. Um abraço, Mayrant.

Hitch disse...

Por Deus, evocando as palavras de Paulo, minha ignorância sobre o gênero é imensa, absurda. Acho que uma vida não bastaria para ler todos esses caras. Mas é buscar o tempo perdido, e protelar, ainda que inutilemente, o longo adeus. Aquele abraço.