A crítica é quase unânime em afirmar que o único livro do gênero policial-noir capaz de se ombrear com O falcão maltês e até mesmo superá-lo é O longo adeus (The long goodbye), de Raymond Chandler. Os motivos de tal afirmação não são poucos nem gratuitos.
Primeiramente, se O falcão maltês é um romance de ardilosos mentirosos (até o falcão é uma mentira), O longo adeus é uma história de pessoas perdidas, feridas e solitárias. Segundo, se naquele célebre livro de Hammett o dinheiro move a narrativa, impulsionando as personagens em direção ao crime e à mentira, no de Chandler monetariamente todos estão satisfeitos com o que possuem (uma evidência simbólica desta condição é a nota de 5 mil dólares que o detetive Philip Marlowe encerra em seu cofre, pois não precisa gastá-la), mas, por outro lado, estão todos doloridos e desencantados.
É literalmente um romance sobre o vazio, sobre os dias marcantes de um passado que, por mais que os personagens se esforcem, não conseguem esquecer; sobre a falta de amor, a existência fútil e sem horizontes; sobre a falta de sentido humano num ambiente de riqueza, dissolução e promiscuidade. Nesse sentido, a trama desloca-se da sua essência policial para o núcleo da própria condição humana e suas perdas ─ físicas ou psicológicas. E as mortes que ocorrem (e não são poucas) são atos antes de desespero que de cobiça ou capricho criminoso. O crime é uma consequência da vida, das relações, das dores. Todos os personagens ou perderam alguma coisa ou jamais acharam o que procuravam.
Lennox perdeu metade do rosto na Guerra e também a esposa, que jamais voltou a encontrar; além disso, sua esposa atual é uma mulher com muito dinheiro e igualmente muitos homens. Eileen perdeu o único amor de sua vida e vive com um escritor bêbado, Wade, que, por sua vez, perdeu o entusiasmo criativo e pouco a pouco vai perdendo o talento. Philip Marlowe é só um “detetive barato”, quase sem clientes e que tem o estranho hábito de ajudar as pessoas em troca de nada, por um decadente altruísmo ou um sentimentalismo de chá de caridade; também é sozinho, um solitário convicto, que almoça e janta diante de uma cadeira vazia; nem secretária possui. É numa dessas noites de abandono que ele conhece Terry Lennox e dá início a um périplo de álcool, ardis, ciladas, sangue e corpos imóveis.
Um outro aspecto a se ressaltar neste romance de Chandler é o caráter de reflexão. O autor não se satisfaz em criar uma trama policial. Descreve com precisão cirúrgica os cenários, mergulha no pensamento de seus personagens, analisa-os social e psicologicamente, expõe suas virtudes e também seus defeitos. Ninguém ─ nem instituição alguma ─ passa incólume por sua pena e seu olhar. E tudo isso num estilo direto, seco, irônico, analítico e, em muitos trechos, poético. O que em Hammett é só esboço em Chandler comparece em massa de cor, formas, ângulos, sabores, odores e perspectivas. Não é por acaso que se afirma que em Chandler o policial-noir atingiu o patamar de arte. De fato ─ e podemos até sugerir que Hammett, Cain, Goodis e Chandler formam uma espécie de quarteto desta verdade. Cada um, a seu modo, fez pelo policial-noir o que somente os grandes ficcionistas fizeram pela narrativa literária em geral. Claro que o relato policial moderno não se restringe a eles: Patricia Highsmith e Georges Simenon são duas vozes antípodas, duas correntes específicas representadas, cada uma, por um único escritor...
Chandler não chegou a tanto, mas escreveu dois ou três romances ─ e o maior deles talvez seja O longo adeus ─ que, extrapolando o gênero policial, tornaram-se eternos. Retratos de um lugar, um tempo e uma gente ─ a Califórnia dos sonhos frustrados.
2 comentários:
Nossa, pelo que você escreveu, este livro tem tudo que eu gosto de ler. Um abraço, Mayrant.
Por Deus, evocando as palavras de Paulo, minha ignorância sobre o gênero é imensa, absurda. Acho que uma vida não bastaria para ler todos esses caras. Mas é buscar o tempo perdido, e protelar, ainda que inutilemente, o longo adeus. Aquele abraço.
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