Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A DÁLIA AZUL

A Dália Azul é uma curiosa mistura do trabalho de dois artistas fabulosos que ajudaram a moldar a cultura do século 20, temperada com uma forte dose de ironia do destino.
Os artistas são, de um lado, Raymond Chandler, romancista e contista de histórias policiais, um dos pilares para a formação e renovação da literatura contemporânea (não só policial), ao prosseguir com a revolução detonada por outro grande escritor norte-americano, Dashiell Hammett. Juntos, eles trouxeram a figura tradicional e intelectualóide do detetive cerebral (representado por Sherlock Holmes e Hercule Poirot) para a dura realidade do cotidiano urbano, feroz e violento
de nossa época. A guinada que eles proporcionaram determinou e influenciou o cinema, o teatro, a literatura e as demais artes. Em consequência, Chandler escreveu o roteiro do filme A Dália Azul para Hollywood, na década de 40.
De outro lado, Filippo Scózzari, quadrinista italiano que participou da revolução na década de 70 nas artes gráficas, na contra-cultura e nas HQs, pelas páginas da estremecedora revista Frigidaire. Nesta anárquica, anarquizante, deglutidora e vomitória metralhadora cultural, tudo cabia. Exatamente como se fosse uma geladeira, estilo Frigidaire. Portanto, a gozação já começava pelo próprio nome. Subversão era seu lema secreto (nem tão secreto, por certo). Assim, era possível encontrar “uma mistura caótica
e cínica de textos, fotos e quadrinhos a respeito da guerrilha da América Central, Devo, travestis brasileiros, William S. Borroughs, Patagônia, produção de heroína na Tailândia, Bioy Casares, Céline, rock polonês e coisas assim”. Havia um encarte inicial, chamado apropriadamente de Freezer: “uma antologia de fotos de cadáveres, vítimas fatais de atividades eróticas extremas”, conforme revela Rogério de Campos em sua apresentação da edição brasileira de A Dália Azul, pela editora Conrad.
Bueno, Filippo Scózzari teve a incumbência de retomar o roteiro escrito por Chandler e transformá-lo numa HQ, publicada, por fim, em
capítulos, pela Frigidaire.
A grande, enorme ironia disso tudo é que os dois odiaram até o mais profundo de sua alma o que fizeram.
Aliás, há mais uma ironia para “dourar” o seu ódio: tanto o filme quanto a HQ são considerados atualmente clássicos, cada um de seu lado. Talvez seja meio exagero considerar o filme lançado em 1945 como um clássico. Deixo passar. Como diz Rogério de Campos, o tempo, os especialistas e os fãs de Chandler deixaram o filme quieto e quase esquecido.

O fato crucial é que Chandler odiava Hollywood, odiava a high society californiana e cinematográfica, odiava escrever roteiros, principalmente por conta das pressões e cobranças ridículas e medíocres da indústria hollywoodiana; odiava aquele ambiente faiscante, fútil e vazio, e odiava ganhar aquele dinheiro que, em se tratando de tal lugar, significava M-U-I-T-O dinheiro. Teve que se encharcar de álcool e se guardar em regime fechado dentro de casa para escrever o roteiro de A Dália Azul. E em três semanas, pois o astro principal do filme, Alan Ladd, seria convocado pelo Exército e não poderia gravar mais, depois. Chandler suou para dar sentido a uma história que não lhe atraiu desde o começo: logo após a Segunda Guerra Mundial, o ex-soldado Jonnhy Morrison (Allan Ladd) volta afinal para casa e descobre que não só sua mulher Helen (Doris Dowling) o traía como seu filho pequeno morrera em um acidente provocado por ela, quando dirigia embriagada. Agora, Jonnhy estava desempregado, seu casamento era uma piada, não se ajustava mais à vida social, envolve-se num relacionamento complicado com a complicada Joyce (Veronica Lake) e seu melhor amigo estava com problemas mentais sérios por conta de um ferimento na cabeça. Chandler desfilava clichês e mais clichês e se complicava para dar um fecho a todas as pontas levantadas. No meio de tudo, um assassinato explode, pois é claro que deveria ter um assassinato, mortes, suspeitos e investigações, já que afinal de contas se tratava de um filme policial noir e não um drama de guerra.
Chandler xingou, esperneou e reclamou, mas a ironia foi bem mais forte: o filme foi um sucesso de público, até a crítica se resguardou sem incenso, mas também sem lascar o pau. E o roteiro chegou a ser indicado para o Oscar.
Trinta e cinco anos depois foi a vez de Scózzari. Ele pegou o roteiro, leu, considerou chato e boboca, ficou desanimado, mas engoliu em seco e foi em frente. À medida que escrevia e desenhava os capítulos, seu desânimo e impaciência foram crescendo até a exasperação. Não se conformava em trabalhar numa porcaria tão grande, monótona e besta (na sua opinião). Aos poucos foi demonstrando sua insatisfação com pequenos dardos lançados de vez em quando, saía do texto, ironizava, escrachava, proporcionava novos sentidos à história e aos personagens. Só assim suportou o ano inteiro de trabalho que durou a série, até o ponto final, onde pôde expressar todo seu ódio em um epílogo original, todo seu, e absurdamente genial e maravilhoso.
Scózzari nem suporta pensar nisso, mas sua imagem está indissoluvelmente
associada a — “grrrrr!” — Dália Azul.
Podemos ser compreensivos e até entender todos os percalços sofridos por Raymond Chandler e Filippo Scózzari. No entanto, é através de seu sofrimento que podemos, hoje, apreciar o filme (que, se não chega a ser um clássico, também não é tão ruim) e a novela gráfica, exemplo perfeito do que pode conseguir o talento e a genialidade de um artista. Azar dos autores. Sorte, muita sorte, para nós, leitores.

CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista e mora em São Paulo.

Nenhum comentário: