Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

UM KILLER SENTIMENTAL

É inquestionável que o primeiro "romance" policial da literatura ocidental é a tragédia Rei-Édipo, de Sófocles. Porque o incesto era um crime grave na Grécia antiga, Édipo se pune gravemente, furando os próprios olhos. Mas o que resta a sociedades cujas leis não são levadas a sério e cujos criminosos raramente são punidos gravemente, a não ser que sejam pobres, um rosto anônimo na multidão? Resta a ironia, a sátira, a blague. É com esses recursos que o escritor chileno Luis Sepúlveda escreve suas duas novelinhas policiais, reunidas no volume: Diário de um killer sentimental, seguido de Jacaré (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2006). A peça mais importante do conjunto é sem dúvida o primeiro relato: história de um matador profissional que age em escala mundial. Residente em Paris, ele sai para matar na Espanha, na Alemanha, nos EUA e em outros países, sempre contratado por telefone, numa linguagem em código que joga com as possibilidades do jargão comercial. A vítima é sempre um produto. Fiquei pensando no meu humilde matador Pio Gatilho, protagonista de muitos dos meus contos, e que age nas cercanias de Salvador, BA, quando muito noutra cidade do Estado. Ele não passa de um matador municipal que às vezes chega à escala estadual... Já o seu similar chileno, ele atingiu o ápice e, enquanto mata, passeia pelos países, conhece novas cidades, faz turismo involuntário, ouve outros idiomas, expõe-se a novos climas e tem gratificantes experiências amorosas. É uma matador em escala maior, candidato a um possível Prêmio Nobel por folha de serviços. O que Sepúlveda parece nos dizer, metaforicamente, é que todas as nações matam por encomenda, e todos os povos são um mesmo povo. Nesse aspecto, não há Primeiro nem Terceiro mundos. Somos todos iguais. Pois o Killer Sentimental, de ficha irrepreensível, qualificado, eficaz e que jamais falhou numa missão, está abalado emocionalmente por um caso amoroso que aparentemente chegou ao fim e, afinal, falha. Outra ironia: nada pode parar aquela fria máquina humana de matar, exceto o amor, o mais velho dos sentimentos humanos. Nem o medo da morte, nem o temor de ser apanhado, nem a certeza de que, neste caso, as leis se fariam cumprir (quando não para dar hipocritamente exemplo e salvar as aparências), nada disso é o bastante. Só o amor, e é também o amor que vai redimi-lo.

Um comentário:

João Luiz Peçanha Couto disse...

Menina, nunca tinha pensado em Édipo como uma trama de mistério!...
Obrigado pela visita, moça. Fiquei muito feliz.