Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

MAIGRET

Maigret é alto, troncudo, de ombros largos, está sempre com um cachimbo entre os lábios, e um enorme sobretudo escuro, que são como uma marca registrada. Quase nunca perde a calma (embora, quando perde, seja algo digno de se ver), típica de sua origem humilde em uma província pobre do interior da França. Sua antiga pretensão fora ser médico e chegara a fazer alguns anos de faculdade, quando seu pai morreu, e ele precisou de uma profissão que lhe permitisse um rendimento imediato. Por isso, entrou para a PJ, a Polícia Judiciária, como é conhecido o corpo policial de Paris. Inteligente, perspicaz, mesmo que com uma enorme timidez, destacou-se rápido. Os anos de rua lhe permitiram conhecer como ninguém os becos parisienses e seus habitantes: prostitutas, pequenos comerciantes, hoteleiros, mecânicos, os bares, as boates, as pensões, os relojoeiros, banqueiros, Ministros de Estado, os solitários e os bon-vivants, os pequenos e os grandes contrafeitores, as pequenas e as grandes paixões dos seres humanos. E é isso o que mais lhe interessa: além das pistas eventuais e toscas, as pegadas e os álibis (que sempre precisam e são checados, sem dúvida), o que mais lhe importa é conhecer as atitudes, os pensamentos, seus apetites, as suas motivações internas para o crime.
Nada de psicologismos baratos ou interpretações psiquiátricas, nada disso. Maigret vai atrás dos pequenos hábitos, do cotidiano, do usual, do costumeiro. Gosta de se sentar na mesma cadeira que a vitima costumava se sentar, tomar dos mesmos aperitivos, impregnar-se do clima da casa onde ela vivia. "Clima", aliás, é uma palavra muitas vezes associada aos livros de Maigret, de uma forma talvez até que meio abusada, mas creio que bem válida. Ele não se preocupa em fazer deduções, tirar grandes teorias. Ele não deduz, sente. Ao final do caso, não sabemos somente quem foi o assassino ou as circunstancias que o levaram ao crime. Ficamos conhecendo, sobretudo, um pouco mais do próprio ser humano. Ou, em outras palavras, de nós mesmos.
Criado em 1931 por Simenon, o inspetor Maigret foi um divisor de águas na revolução que estava se processando na literatura policial. Finalmente, o detetive era um ser humano falível, que tinha dúvidas morais e preocupações existenciais. Do outro lado do oceano, nos Estados Unidos, Dashiell Hammett havia arregaçado as convenções do gênero, ao retratar o cotidiano violento e brutal das grandes cidades, com heróis e detetives que vinham de uma realidade nua, crua, que todas as pessoas podiam constatar em seu próprio dia-a-dia. Georges Simenon, escritor e jornalista belga radicado na França, por um ângulo completamente diferente, completava o trabalho, e acrescentava uma dimensão artística que nunca havia sido vista antes. Na verdade, apesar do imediato e estrondoso sucesso que o acompanhou desde sua estréia, Maigret conseguia deixar perplexos tanto aos amantes do gênero policial (onde o detetive super-inteligente, charmoso e infalível? onde o supervilão? os enredos mirabolantes, as histórias fantásticas? todos substituídos por hoteleiros, barqueiros, velhos aposentados, seres comuns), quanto os cultores das "belas-letras", um público para quem o romance policial era sinônimo de literatura rasteira, rasa, "popular", de péssima qualidade. Simenon conseguia o que parecia impossível: misturava o enredo policial com alta qualidade literária, o que demorou muito para ser reconhecido.


CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista. Seu conto ÔNIBUS-IA foi premiado e publicado em caderno especial de O Estado de São Paulo, em janeiro de 2003.

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