Nada de psicologismos baratos ou interpretações psiquiátricas, nada disso. Maigret vai atrás dos pequenos hábitos, do cotidiano, do usual, do costumeiro. Gosta de se sentar na mesma cadeira que a vitima costumava se sentar, tomar dos mesmos aperitivos, impregnar-se do clima da casa onde ela vivia. "Clima", aliás, é uma palavra muitas vezes associada aos livros de Maigret, de uma forma talvez até que meio abusada, mas creio que bem válida. Ele não se preocupa em fazer deduções, tirar grandes teorias. Ele não deduz, sente. Ao final do caso, não sabemos somente quem foi o assassino ou as circunstancias que o levaram ao crime. Ficamos conhecendo, sobretudo, um pouco mais do próprio ser humano. Ou, em outras palavras, de nós mesmos.
Criado em 1931 por Simenon, o inspetor Maigret foi um divisor de águas na revolução que estava se processando na literatura policial. Finalmente, o detetive era um ser humano falível, que tinha dúvidas morais e preocupações existenciais. Do outro lado do oceano, nos Estados Unidos, Dashiell Hammett havia arregaçado as convenções do gênero, ao retratar o cotidiano violento e brutal das grandes cidades, com heróis e detetives que vinham de uma realidade nua, crua, que todas as pessoas podiam constatar em seu próprio dia-a-dia. Georges Simenon, escritor e jornalista belga radicado na França, por um ângulo completamente diferente, completava o trabalho, e acrescentava uma dimensão artística que nunca havia sido vista antes. Na verdade, apesar do imediato e estrondoso sucesso que o acompanhou desde sua estréia, Maigret conseguia deixar perplexos tanto aos amantes do gênero policial (onde o detetive super-inteligente, charmoso e infalível? onde o supervilão? os enredos mirabolantes, as histórias fantásticas? todos substituídos por hoteleiros, barqueiros, velhos aposentados, seres comuns), quanto os cultores das "belas-letras", um público para quem o romance policial era sinônimo de literatura rasteira, rasa, "popular", de péssima qualidade. Simenon conseguia o que parecia impossível: misturava o enredo policial com alta qualidade literária, o que demorou muito para ser reconhecido.
CLAUDINEI VIEIRA, um infiltrado, é contista. Seu conto ÔNIBUS-IA foi premiado e publicado em caderno especial de O Estado de São Paulo, em janeiro de 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário