Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

DÁLIA NEGRA

Em 1947, há 65 anos, portanto, completados no último dia 15 de janeiro, Elizabeth Ann Short (nascida em Medfort, Massachusetts, EUA, em 29-07-1924) era achada morta num terreno baldio da Rua 39, esquina com a Norton, em Los Angeles. O corpo estava divido em duas partes à altura da cintura, eviscerado (sem intestinos, fígado, estômago e baço) e com um corte de orelha a orelha, que conferia à boca um sorriso permanente e macabro. Outras evidências, como lacerações e queimaduras de cigarro nos seios (um dos quais encontrava-se praticamente solto), remoção a faca de tatuagem na coxa esquerda, fraturas nos dois joelhos (já em processo de cicatrização), um talho longitudinal do umbigo ao púbis (provavelmente para extração de útero, bexiga, ovários e reto), marcas de chicotadas e fraturas profundas no crânio e no rosto, além de vestígios do uso de cordas nos pulsos e tornozelos, indicavam que durante vários dias ela fora torturada, estuprada e sodomizada. E ainda, como se o assassino confessasse, apesar do requinte de crueldade, sua propensão à higiene, o corpo de Elizabeth Short tinha sido lavado em água corrente antes de ser jogado no terreno baldio. O sofrimento que ela passou ninguém pode sequer imaginar. E só, abandonada, impossibilitada de pedir socorro, pois é quase certo que o assassino vinha visitá-la, praticava seus atos ignóbeis e depois a largava entregue à dor e à humilhação. Porque frequentemente ela se vestia de preto, e em analogia a um filme célebre naquele tempo, Elizabeth Short recebeu da imprensa o apelido Dália Negra.

Muitos livros e reportagens foram escritos sobre este crime, mas em termos de ficção o mais importante é, sem dúvida, o romance Dália Negra, de James Ellroy. Ao transformar em ficção o assassinato de Elizabeth Short, que tinha apenas 23 anos, Ellroy construiu um livro que é, antes de tudo, uma reflexão sobre a vida americana e seu gosto pelos crimes hediondos. Sua solução para o enigma é, no mínimo, engenhosa: um policial descobre o assassino, mas não o revela à sociedade, obrigando que a realidade e a ficção coincidam, além de sugerir, metaforicamente, que a polícia na verdade chegou ao assassino, mas, por algum motivo, preferiu esquecê-lo. Desse modo, tanto na vida quanto no livro a Dália Negra ficou sendo apenas mais uma mulher morta, entre tantas outras que perdiam a vida na California dourada. O assassinato de mulheres bonitas era um crime tão recorrente na época, que até a mãe de James Ellroy tornou-se uma das vítimas. Em 1958, ele era apenas um garoto quando ela foi achada sem vida numa estrada de Los Angeles. O assassino jamais foi encontrado. Ellroy demorou a se recuperar deste triste episódio, e isso o levou às drogas e ao crime. Mas, graças à literatura, pôde desviar-se e acabou por se tornar um dos mais importantes autores policiais dos EUA e do mundo, desde que publicou Dália Negra, em 1987, que, não por acaso, ele reporta à mãe, Geneva Hilliker Ellroy (1915-1958): "Mãe: vinte e nove anos depois, esta despedida em sangue".

Um comentário:

Lidi disse...

"O assassinato de mulheres bonitas era um crime tão recorrente na época, que até a mãe de James Ellroy tornou-se uma das vítimas."

Lembrei do conto "A dupla armadilha mortal", de Roberto Arlt, que começa assim: "Tenente Ferrain, a questão é a seguinte: você terá de matar uma mulher bonita", como se fosse algo difícil de se fazer. Mas me parece que não é o caso dos assassinatos da Califórnia e de tantas outras cidades, cheias de criminosos; cenário ideal para os escritores da série negra. Fiquei curiosa em ler "esta despedida em sangue". Abraço, Mayrant.