De volta à estante, o romance que inspirou um dos melhores filmes policiais de todos os tempos, Anatomia de um crime (1959), de Otto Preminger, com James Stewart, Lee Remick e Ben Gazzara, em início de carreira. O filme foi indicado a sete categorias do Oscar, inclusive a de melhor filme.
O livro homônimo estava esgotado no Brasil há várias décadas, era uma raridade editorial só encontrada nos sebos e a preços pouco convidativos. A José Olympio Editora acaba de lançar uma nova edição, com tradução da escritora Sônia Coutinho. Escrito por um ex-promotor, Robert Traver, e baseado numa história real, Anatomia de um crime se passa numa cidadezinha do Meio-Oeste americano, onde o advogado Paul Biegler, com a carreira comprometida, tem a oportunidade de se reabilitar perante a sua categoria profissional, defendendo o tenente Frederick Manion, acusado de assassinar o homem que supostamente teria estuprado sua esposa. Mas o caso não é assim tão simples. Houve realmente estupro? O que houve, na verdade? E qual é o grau de envolvimento da mulher com o homem que foi morto?
Se Alfred Hitchcock afirmava que livros ruins davam bons filmes, o inverso também é verdade. Mas o caso aqui é de um ótimo livro que originou um ótimo filme. Em tempos de romances de qualidade duvidosa, e pretensiosos filmes policiais que, ao fim, não passam de um saco de tiros, sopapos, correria, perseguição de carros e explosões pirotécnicas, leia e depois veja Anatomia de um crime. A perenidade de ambos não é por acaso.
Noir francês
A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.
terça-feira, 17 de maio de 2011
quarta-feira, 11 de maio de 2011
ATIRE NO PIANISTA
Um pianista exímio, mas estragado para a vida pelo suicídio da esposa; seus dois irmãos bandidos; a garçonete do bar onde ele toca; um brutamontes; dois misteriosos bandidos que perseguem um de seus irmãos; uma casa remota na floresta, aonde os personagens chegam, para um embate violento e decisivo... Não há uma trama propriamente dita neste que é um dos mais célebres e melancólicos romances de David Goodis, e que François Truffaut transformou num excelente filme. Mas sobra miséria, solidão, desespero. Uma fatalidade que engole todos os personagens, como um ralo que, recém-aberto, traga com sofreguidão a água armazenada. Se o leitor espera encontrar uma história policial convencional, nem abra o livro. Não há um crime relevante, nem tampouco uma investigação complexa. A polícia mal aparece na história, e não há diferença entre os bandidos e as demais pessoas. O crime não é uma escolha pessoal, nem muito menos uma condenação. O crime compreende a própria vida e com ela se confunde. É um simples expediente. Um passo na vida pode ser um passo para dentro do crime; e um passo neste, um passo para fora da vida. Não é por acaso que o título em inglês é Down there, algo assim como Na pior ou Para baixo. De fato, todos os personagens estão na pior, caindo, indo abaixo, desabando. Como disse Rainer Maria Rilke, num de seus mais belos poemas: "Olha em redor: cair é a lei geral". Talvez esta seja a epígrafe para Atire no pianista. E uma proveitosa orientação de leitura para o leitor impaciente.
domingo, 8 de maio de 2011
DAVID GOODIS NO BRASIL
Dos autores norte-americanos que mudaram o gênero policial na primeira metade do século XX, talvez David Goodis (1917-1967) seja aquele que teve a aceitação mais discreta no Brasil, com a publicação recorrente de apenas quatro dos dezenove romances que escreveu. Bem ou mal, desde a década de 1980, saem por aqui: A lua na sarjeta (editoras Abril, Brasiliense e L&PM), Atire no pianista (Abril e Brasiliense), A garota de Cassidy (L&PM) e Sexta-feira negra (L&PM). São estes, aliás, os únicos títulos em catálogo no momento, todos pela Coleção L&PM Pocket, da editora gaúcha.
Possivelmente nos anos 1960 ou 1970, vieram a público também entre nós, pela chancela da antiga editora Tecnoprint, alguns outros livros do autor, como Paixão criminosa (Of tender sin), volume 6 da coleção Seleção Criminal. O ladrão, pela mesma coleção, e Fogo na carne, pela coleção Seleção Policial, aparecem nas folhas de propaganda da editora. O primeiro é, seguramente, a tradução de The burglar (1953), mas o segundo, desconfio que talvez seja somente um outro título em português que se atribuiu, na época, a The moon in the gutter (1953).
Estes livros da Tecnoprint (hoje Ediouro) eram muito populares naqueles anos, impressos em papel ordinário, que enferrujava e rasgava facilmente, com capa que logo se tornava quebradiça e vendidos em rodoviárias, aeroportos, bancas de revista e nas lojas da própria editora. Procurar por essas edições, depois de mais de cinquenta anos, é mesmo uma missão quase impossível, pois não eram livros que se guardassem; como os gibis, eram descartados tão logo eram lidos. Mesmo assim, recentemente achei por acaso um exemplar de Paixão criminosa em surpreendente estado de conservação, e foi através dele que descobri que Goodis vem sendo publicado no Brasil há bem mais tempo do que se supunha, que não foram os filmes O tiro no pianista, de François Truffaut, e A lua na sarjeta, de Jean-Jacques Benieix, que o projetaram entre nós.
Para o leitor que admira Goodis, conhecido pelo epíteto "poeta da violência e da solidão", há também as edições portuguesas. A Editorial Caminho, na sua coleção Caminho Policial, publicou pelo menos Disparem sobre o pianista (Down there, 1956) e O ladrão (The burglar). E as Edições 70, Beleza mortal (Behold this woman, 1947).
Como há neste momento um certo interesse do leitor brasileiro pelas obras importantes do gênero policial, que definitivamente não visa apenas ao entretenimento, à leitura rápida e descartável, esperamos que tanto a L&PM quanto outras editoras passem a traduzir mais livros de Goodis no Brasil, como tem ocorrido com seus pares Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Ross MacDonald e Cornell Woolrich, que, em edições bonitas e bem cuidadas, invadiram as livrarias.
Possivelmente nos anos 1960 ou 1970, vieram a público também entre nós, pela chancela da antiga editora Tecnoprint, alguns outros livros do autor, como Paixão criminosa (Of tender sin), volume 6 da coleção Seleção Criminal. O ladrão, pela mesma coleção, e Fogo na carne, pela coleção Seleção Policial, aparecem nas folhas de propaganda da editora. O primeiro é, seguramente, a tradução de The burglar (1953), mas o segundo, desconfio que talvez seja somente um outro título em português que se atribuiu, na época, a The moon in the gutter (1953).
Estes livros da Tecnoprint (hoje Ediouro) eram muito populares naqueles anos, impressos em papel ordinário, que enferrujava e rasgava facilmente, com capa que logo se tornava quebradiça e vendidos em rodoviárias, aeroportos, bancas de revista e nas lojas da própria editora. Procurar por essas edições, depois de mais de cinquenta anos, é mesmo uma missão quase impossível, pois não eram livros que se guardassem; como os gibis, eram descartados tão logo eram lidos. Mesmo assim, recentemente achei por acaso um exemplar de Paixão criminosa em surpreendente estado de conservação, e foi através dele que descobri que Goodis vem sendo publicado no Brasil há bem mais tempo do que se supunha, que não foram os filmes O tiro no pianista, de François Truffaut, e A lua na sarjeta, de Jean-Jacques Benieix, que o projetaram entre nós.
Para o leitor que admira Goodis, conhecido pelo epíteto "poeta da violência e da solidão", há também as edições portuguesas. A Editorial Caminho, na sua coleção Caminho Policial, publicou pelo menos Disparem sobre o pianista (Down there, 1956) e O ladrão (The burglar). E as Edições 70, Beleza mortal (Behold this woman, 1947).
Como há neste momento um certo interesse do leitor brasileiro pelas obras importantes do gênero policial, que definitivamente não visa apenas ao entretenimento, à leitura rápida e descartável, esperamos que tanto a L&PM quanto outras editoras passem a traduzir mais livros de Goodis no Brasil, como tem ocorrido com seus pares Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Ross MacDonald e Cornell Woolrich, que, em edições bonitas e bem cuidadas, invadiram as livrarias.
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sábado, 7 de maio de 2011
IRRESISTÍVEL PAIXÃO
Elmore Leonard é um dos mestres atuais do relato policial norte-americano. Um mestre também da literatura de fronteira, mais conhecida entre nós como "histórias de faroeste". Nos relatos ambientados no Oeste americano do século XIX, publicou algumas obras-primas, que figuram hoje no cânone do gênero, como os romances Hombre e Valdez vem aí, e os contos Os cativos e 3:10 para Yuma. No gênero policial, a lista de livros importantes é extensa, entre os quais se destacam Pronto, Cárcere privado, Ponche de rum e Irresistível paixão, cujo título original é o mais adequado "Out of sight". A trama põe em contato e sob o efeito de uma paixão irrefreável dois personagens antípodas: o assaltante de bancos Jack Foley e a agente federal Karen Sisco. Ao fugir da cadeia, Foley acaba encerrado no porta-malas de um carro ao lado de Karen. Os dois estão ali, lado a lado, braços e pernas que se tocam, o calor dos corpos se confundindo, e de repente descobrem que possuem um gosto comum: o cinema. Alguns filmes se destacam, entre os muitos que os dois comentam ao longo da narrativa: Três dias do condor, Bonnie e Clyde, Um assaltante trapalhão, Pulp fiction, Repo man, A morte num beijo, Estranhos no paraíso. Separados, não esquecem mais um do outro, mas sabem que qualquer união, por mais rápida que seja, é impossível. Ele praticamente estaria se entregando à lei, e ela seria acusada de colaborar com um criminoso procurado... Não há mesmo o que fazer quando o amor surpreende duas pessoas que não se encaixam. E é isso que Karen Sisco (personagem retomada mais tarde por Leonard no conto Karen namora) deixa evidente, no desfecho, embora de maneira indireta, metafórica: "Quero que saiba que acho você um sujeito e tanto. Nem por um minuto achei que fosse velho demais para mim. Mas tenho medo de pensar de modo diferente daqui a uns trinta anos". Irresistível paixão é um romance policial imprevisível e improvável, que Elmore Leonard parece ter escrito com a mesma paixão que consome sem piedade os personagens. Sabemos, no entanto, que não é assim. Às vezes, o texto espontâneo, que tanto fascinou o autor, não conquista os leitores; às vezes ocorre o inverso: o texto que exigiu esforço tremendo, a ponto de quase fazer o autor desistir de sua empreitada, recebe dos leitores um acolhimento caloroso. Não sei qual o caso deste romance; sei, porém, que, tanto pelo estilo (preciso, direto, repleto de citações cinematográficas, com poucas descrições de ambientes, mas ótimas análises sobre a vida cotidiana) e pelo assunto (o amor impossível entre seres que se acham em polos opostos da existência) é uma história arrebatadora, que não consegui largar senão ao virar a última página. E quem me conhece sabe que raramente faço isso: costumo economizar, durante a leitura, os livros que admiro.
quarta-feira, 4 de maio de 2011
O INVASOR
“Um homem diante de um deserto pode, ao menos, caminhar em qualquer direção.” Esta é, talvez, a chave para decifrar a metáfora da novela O invasor, de Marçal Aquino, recém-publicada em formato “quase de bolso” pela Companhia das Letras, na coleção Má Companhia.
Alguns leitores podem argumentar que não há nada naquela história para ser decifrado. Mas há sim, pois a narrativa é em primeira pessoa. É um testemunho pessoal do personagem: é ele quem escreve tudo o que viveu, porque está vivo, ou esteve por um tempo, o suficiente para escrever sua história, em algum lugar. Não hesito em afirmar que, no deserto do seu drama, ele tomou outra direção, se corrompeu de todo, pois todo homem tem seu preço, que se mede ou em dinheiro ou em oportunidades. Neste sentido, no desfecho, foi oferecida a Ivan uma nova chance, e ele a agarrou, destituído de seu último fiapo de moral: quem suja as mãos uma vez suja duas.
O argumento de O invasor, que constituiu a base do filme homônimo de Beto Brant, uma das melhores produções brasileiras do final dos anos 1990, põe em pauta a afirmação — terrível — de que qualquer problema no Brasil pode, com proveito, ser resolvido a bala. O diálogo entre as partes faz perder tempo e dinheiro, e não passa de um vício socrático. Se alguém não concorda com você ou o está atrapalhando, elimine-o. Com isso, você ganhará tempo e economizará dinheiro, pois um matador de terceira categoria faz o serviço por qualquer trocado — e vida que segue. É assim entre parentes, entre vizinhos, políticos, sócios. Os jornais, a tevê e a internet estão cheios de histórias parecidas, cunhadas com base nesta fórmula.
E não foi de outro modo que Alaor (Giba, no filme) e Ivan decidiram resolver suas diferenças com Estêvão, sócio de ambos na construtora Araújo & Associados. Pagaram a Anísio para resolver seu problema, matando Estêvão. Só não contavam com o fato de que Anísio, depois, também se tornaria um problema, ao invadir suas vidas. E agora, quem vai matar quem? Retrato de nossa época, e não apenas no Brasil, O invasor é, além de uma ágil narrativa policial, um ótimo exame de quem somos nas situações extremas do cotidiano. Alguns (talvez a maioria) ainda preferem o diálogo, o acerto de contas verbal, mas há quem prefira encomendar um corpo, como se telefonasse e pedisse uma pizza.
Alguns leitores podem argumentar que não há nada naquela história para ser decifrado. Mas há sim, pois a narrativa é em primeira pessoa. É um testemunho pessoal do personagem: é ele quem escreve tudo o que viveu, porque está vivo, ou esteve por um tempo, o suficiente para escrever sua história, em algum lugar. Não hesito em afirmar que, no deserto do seu drama, ele tomou outra direção, se corrompeu de todo, pois todo homem tem seu preço, que se mede ou em dinheiro ou em oportunidades. Neste sentido, no desfecho, foi oferecida a Ivan uma nova chance, e ele a agarrou, destituído de seu último fiapo de moral: quem suja as mãos uma vez suja duas.
O argumento de O invasor, que constituiu a base do filme homônimo de Beto Brant, uma das melhores produções brasileiras do final dos anos 1990, põe em pauta a afirmação — terrível — de que qualquer problema no Brasil pode, com proveito, ser resolvido a bala. O diálogo entre as partes faz perder tempo e dinheiro, e não passa de um vício socrático. Se alguém não concorda com você ou o está atrapalhando, elimine-o. Com isso, você ganhará tempo e economizará dinheiro, pois um matador de terceira categoria faz o serviço por qualquer trocado — e vida que segue. É assim entre parentes, entre vizinhos, políticos, sócios. Os jornais, a tevê e a internet estão cheios de histórias parecidas, cunhadas com base nesta fórmula.
E não foi de outro modo que Alaor (Giba, no filme) e Ivan decidiram resolver suas diferenças com Estêvão, sócio de ambos na construtora Araújo & Associados. Pagaram a Anísio para resolver seu problema, matando Estêvão. Só não contavam com o fato de que Anísio, depois, também se tornaria um problema, ao invadir suas vidas. E agora, quem vai matar quem? Retrato de nossa época, e não apenas no Brasil, O invasor é, além de uma ágil narrativa policial, um ótimo exame de quem somos nas situações extremas do cotidiano. Alguns (talvez a maioria) ainda preferem o diálogo, o acerto de contas verbal, mas há quem prefira encomendar um corpo, como se telefonasse e pedisse uma pizza.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
O MISTERIOSO CASO DE STYLES
Com este romance, Agatha Christie fez sua estreia na literatura policial, em 1917. E foi com ele também que ela forjou seu estilo (direto, dialogado e analítico, voltado exclusivamente para o desenvolvimento da trama) e seu método: narrar uma história policial, geralmente de assassinato, em que vários suspeitos são minuciosamente examinados por um detetive excêntrico e sagaz, quase sempre Hercule Poirot, que constitui seu personagem mais recorrente e um dos mais populares do gênero, ao lado de Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, e Jules Maigret, de Georges Simenon. A história é simples e se tornou uma fórmula à qual a autora retornará sempre, com variações de cenário, personagens, clima e atmosfera. Um casarão antigo, num lugar remoto, o proprietário ou proprietária, seus moradores habituais, incluindo os criados, seus hóspedes frequentes e os visitantes de passagem. Um crime acontece, em situação e local que desafiam a inteligência mais aguçada, e todos se tornam suspeitos. Nesta aventura inicial, a Sra. Inglethorp morre envenenada com estricnina, e os suspeitos são seu marido, seus dois enteados John e Lawrence, sua nora Mary, a agregada Cynthia, o Dr. Bauerstein e Evelyn Howard, espécie de faz-tudo da casa. Poirot, o promotor público e a Scotland Yard investigam o caso, mas é Poirot, obviamente, quem o resolve, surpreendendo a todos com seu método preciso e detalhista: a polícia, os personagens, o promotor, o juiz, os leitores e, talvez, até a própria autora, já que esta era a sua primeira incursão no gênero. Pelo que propõe, e como propõe, O misterioso caso de Styles transformou-se num marco do romance policial, sempre citado por críticos e estudiosos, ainda que Agatha Christie, com sua capacidade de variação e virtuosismo, o tivesse superado mais tarde com romances bem melhores.
sábado, 29 de janeiro de 2011
OS PECADOS DOS PAIS
Os pecados dos pais é um dos melhores romances de Lawrence Block, um dos principais representantes da terceira plêiade de escritores policiais norte-americanos, se concordarmos que o gênero nos EUA começou com Edgar Allan Poe, no século XIX, prosseguiu com James M. Cain, Raymond Chandler, David Goodis, Dashiell Hammett e outros, na primeira metade do século XX, até chegar a Lawrence Block e seus pares, nas décadas seguintes.
O argumento deste romance, que é um dos mais breves do autor, é tradicional e, ao mesmo tempo, surpreende pelo deslocamento que promove na construção narrativa, mais precisamente no foco da investigação. Uma jovem (bonita, evidentemente) é encontrada morta em seu apartamento. É óbvio que foi assassinada, e o principal suspeito é um de seus amigos mais próximos, que morava com ela e é detido na rua em estado de choque, as roupas cobertas de sangue. O pai da moça, inconformado com o resultado das investigações da polícia, contrata o detetive particular Matthew Scudder. É então que o relato torna-se precioso: o detetive começa a investigar o crime em busca do assassino, mas, gradativamente, deixa-se atrair pela vida pregressa da jovem morta, cheia de detalhes inesperados e incursões sensuais.
Formado na tradição do relato policial angloamericano, de investigação pura (Poe, Agatha Christie) ou embate corporal com os bandidos (Hammett, Chandler), Lawrence Block, neste romance, flerta com o método de criação do belga George Simenon, que, na figura do seu célebre detetive, o comissário Maigret, preferia enfatizar a vida das pessoas que transitavam em volta da vítima, em detrimento do crime em si, para ele uma simples consequência de atos humanos e corriqueiros.
O desfecho, no entanto, reconduz a narrativa a um fluxo mais coerente com a formação de Block, e não é incomum que vejamos, no último ato do detetive, um reflexo do procedimento de vida do investigador particular Philip Marlowe, de Chandler. Como Marlowe, Scudder é um homem solitário, desencantado, cínico e, com alguma frequência, mostra-se um moralista incurável, um romântico aprisionado à servidão de si mesmo: um sujeito sem ilusões pessoais. Tais características emolduram a sugestão de autopunição que ele oferece ao assasssino, e que este, fragilizado e seduzido, segue à risca.
Mas isso não é demérito ao livro nem ao seu autor. Pelo contrário: sendo o detetive quem é, um católico, e depois de viver o esfacelamento da própria família, é natural que ele aja daquele jeito: com a noção, equívoca, de que pode consertar e reger o mundo.
O argumento deste romance, que é um dos mais breves do autor, é tradicional e, ao mesmo tempo, surpreende pelo deslocamento que promove na construção narrativa, mais precisamente no foco da investigação. Uma jovem (bonita, evidentemente) é encontrada morta em seu apartamento. É óbvio que foi assassinada, e o principal suspeito é um de seus amigos mais próximos, que morava com ela e é detido na rua em estado de choque, as roupas cobertas de sangue. O pai da moça, inconformado com o resultado das investigações da polícia, contrata o detetive particular Matthew Scudder. É então que o relato torna-se precioso: o detetive começa a investigar o crime em busca do assassino, mas, gradativamente, deixa-se atrair pela vida pregressa da jovem morta, cheia de detalhes inesperados e incursões sensuais.
Formado na tradição do relato policial angloamericano, de investigação pura (Poe, Agatha Christie) ou embate corporal com os bandidos (Hammett, Chandler), Lawrence Block, neste romance, flerta com o método de criação do belga George Simenon, que, na figura do seu célebre detetive, o comissário Maigret, preferia enfatizar a vida das pessoas que transitavam em volta da vítima, em detrimento do crime em si, para ele uma simples consequência de atos humanos e corriqueiros.
O desfecho, no entanto, reconduz a narrativa a um fluxo mais coerente com a formação de Block, e não é incomum que vejamos, no último ato do detetive, um reflexo do procedimento de vida do investigador particular Philip Marlowe, de Chandler. Como Marlowe, Scudder é um homem solitário, desencantado, cínico e, com alguma frequência, mostra-se um moralista incurável, um romântico aprisionado à servidão de si mesmo: um sujeito sem ilusões pessoais. Tais características emolduram a sugestão de autopunição que ele oferece ao assasssino, e que este, fragilizado e seduzido, segue à risca.
Mas isso não é demérito ao livro nem ao seu autor. Pelo contrário: sendo o detetive quem é, um católico, e depois de viver o esfacelamento da própria família, é natural que ele aja daquele jeito: com a noção, equívoca, de que pode consertar e reger o mundo.
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Romances
sábado, 8 de janeiro de 2011
BADLANDS, O FIM DO SONHO AMERICANO
Não são muitos, na ficção norte-americana e mundial, os textos inspirados no assassinato do presidente John Kennedy, o terceiro mais importante evento da história dos EUA durante o século XX: o primeiro seria o ataque japonês a Pearl Harbor e a derrota no Vietnam. Romances de valor sobre aquele crime, se acreditarmos verdadeiras as palavras de Jonathan Vankin, há dois: Libra, de Don Delillo, e Tabloide americano, de James Ellroy. Ambos muito elogiados e pilares em seu gênero. Nos quadrinhos, especialmente, havia um hiato, até que surgiu, em 2003, quarenta anos após a morte de Kennedy, Badlands, o fim do sonho americano, de Steven Grant (roteiro) e Vince Giarrano (arte).
A narrativa é fluente, e o enfoque, inédito: Lee Harvey Oswald não matou Kennedy; foi posto na história, e na História, como um curinga de baralho, porque o verdadeiro assassino desapareceu e era preciso oferecer um culpado à nação e ao mundo. Quanto aos verdadeiros responsáveis pelo crime, certamente o financiou a esfera política insatisfeita com o desempenho do presidente, com suas gafes, suas trapalhadas. Os desenhos, num P&B cinematográfico, são realistas e movimentados, com ângulos que surpreendem e obrigam o leitor a se deter um instante, ao mesmo tempo fascinado e avaliando o que viu.
Um outro aspecto do qual o leitor tira enorme proveito reside no fato de que a história não se esgota na primeira leitura: do tipo enquadrado e com muitos vaivéns no espaço e no tempo, apresenta uma montagem que a princípio não parece coerente ou, pelo menos, soa canhestra. Mas esse é o propósito: deixar a cargo do leitor organizar a narrativa, conforme a recepção das partes e o encadeamento dos quadros em sua mente. Badlands é ainda valiosa por intercalar em sua representação de um evento histórico, e com bastante coesão, sem parecer uma ferramenta postiça, referências precisas à vida corrente dos anos 1960, como a música popular (especialmente Beatles), a contracultura, o amor livre, a Guerra Fria, o mundo burguês endinheirado (com sua afetação e suas manias) e os hippies nômades.
Mal terminei de ler Badlands, já sabia que a leria de novo, em breve, o que só muito raramente ocorre com uma HQ, e em geral com aquelas que apresentam um grau mais elevado de arte, ou por seus desenhos ou por seu assunto: Eisner, Berardi & Milazzo, Pratt, Moebius, Manara. Talvez não tenha sido esta a intenção dos criadores de Badlands, mas é inegável que, como HQ policial baseada num acontecimento histórico dos mais relevantes dos EUA, a versão que ela sugere é original e duradoura: Kennedy não foi assinado por um louco, nem eram loucos aqueles que o assassinaram; houve premeditação profissional e havia um agente que apertou o gatilho e que, por uma interferência irônica mais interna que aleatória, escapou ao seu destino de bode expiatório.
Com isso quererá nos dizer que não se pode manipular a contento uma cadeia de eventos? Não sei, afinal de contas é só uma HQ.
A narrativa é fluente, e o enfoque, inédito: Lee Harvey Oswald não matou Kennedy; foi posto na história, e na História, como um curinga de baralho, porque o verdadeiro assassino desapareceu e era preciso oferecer um culpado à nação e ao mundo. Quanto aos verdadeiros responsáveis pelo crime, certamente o financiou a esfera política insatisfeita com o desempenho do presidente, com suas gafes, suas trapalhadas. Os desenhos, num P&B cinematográfico, são realistas e movimentados, com ângulos que surpreendem e obrigam o leitor a se deter um instante, ao mesmo tempo fascinado e avaliando o que viu.
Um outro aspecto do qual o leitor tira enorme proveito reside no fato de que a história não se esgota na primeira leitura: do tipo enquadrado e com muitos vaivéns no espaço e no tempo, apresenta uma montagem que a princípio não parece coerente ou, pelo menos, soa canhestra. Mas esse é o propósito: deixar a cargo do leitor organizar a narrativa, conforme a recepção das partes e o encadeamento dos quadros em sua mente. Badlands é ainda valiosa por intercalar em sua representação de um evento histórico, e com bastante coesão, sem parecer uma ferramenta postiça, referências precisas à vida corrente dos anos 1960, como a música popular (especialmente Beatles), a contracultura, o amor livre, a Guerra Fria, o mundo burguês endinheirado (com sua afetação e suas manias) e os hippies nômades.
Mal terminei de ler Badlands, já sabia que a leria de novo, em breve, o que só muito raramente ocorre com uma HQ, e em geral com aquelas que apresentam um grau mais elevado de arte, ou por seus desenhos ou por seu assunto: Eisner, Berardi & Milazzo, Pratt, Moebius, Manara. Talvez não tenha sido esta a intenção dos criadores de Badlands, mas é inegável que, como HQ policial baseada num acontecimento histórico dos mais relevantes dos EUA, a versão que ela sugere é original e duradoura: Kennedy não foi assinado por um louco, nem eram loucos aqueles que o assassinaram; houve premeditação profissional e havia um agente que apertou o gatilho e que, por uma interferência irônica mais interna que aleatória, escapou ao seu destino de bode expiatório.
Com isso quererá nos dizer que não se pode manipular a contento uma cadeia de eventos? Não sei, afinal de contas é só uma HQ.
domingo, 2 de janeiro de 2011
"MARKHEIM", DE STEVENSON
O fato de classificarmos A cartomante, de Machado de Assis, como um conto policial evidentemente desagrada aos puristas. Aqueles leitores que por ingenuidade acreditam que a ficção policial é uma exclusividade da literatura de consumo ou de entretenimento, e que a chamada "alta literatura" jamais se interessa pelo gênero ou, quando o faz, é com outros propósitos. Não só A cartomante é um conto policial, e dos melhores já escritos, como inúmeros outros "altores" (isso mesmo, com "L", para dar conta de "autores altos", inseridos na alta literatura) incorreram no gênero, e ainda o fazem, e cada vez mais. Ontem, voltando ao meu "regímen" antigo, de ler por dia pelo menos um conto, reli Markheim, de Robert Louis Stevenson, que integra a antologia organizada por Bráulio Tavares Contos fantásticos no labirinto de Borges (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005). Como o conto supracitado de Machado de Assis, este relato de Stevenson é do gênero policial, mas não se restringe a contar ou elucidar um crime. Há um crime, evidentemente, que poderíamos classificar de primeira história, ou história visível, como propõe Ricardo Piglia, e há a história secreta, apresentada em segundo plano, e que se mostra no desfecho, quando o protagonista, um assassino, pela primeira vez decide por si mesmo sobre sua vida. Até então ele ia ao curso dos acontecimentos. Agora, contudo, toma uma séria decisão, e exatamente quando, pressionado pelo mal e por ele instigado, era mais fácil se deixar conduzir. A iconoclastia que durante toda a vida lhe esteve a serviço do crime o fez tomar o caminho oposto, e com isto, em circunstâncias pouco dignas e desfavoráveis, Markheim se redime. No conto, o assassinato e suas consequências, narrados com riqueza de detalhes, serviram como pretexto para um exame mais largo e profundo acerca da condição humana, o que, por outro lado, não o transforma em outra coisa, é ainda um relato policial. Tais características fizeram deste conto um dos preferidos de Borges.
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