Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

SANGUE E GELO

Sangue e gelo (Ice) é comumente considerado um dos melhores romances de Ed McBain e até a sua obra-prima. A trama, tradicional, tem início com o assassinato de uma jovem dançarina loura, ao voltar para casa depois de deixar o teatro, onde se exibe na peça Fatback, sucesso da temporada. Sua morte é a primeira de muitas que vão requerer do Distrito 87 atenção total, durante a investigação. Ed McBain, que escreveu sem perder o vigor mais de 50 romances com os detetives do Distrito 87, tem um estilo único, uma mistura de Chandler com Simenon. Em muitas páginas, a investigação permanece em segundo plano, e a vida cotidiana dos detetives ganha relevo, o que acaba por conferir aos seus livros um valor que ultrapassa o simples relato policial. Em Sangue e gelo, especialmente, há o drama paralelo de uma policial cujo único trabalho na corporação é servir de isca para a detenção de estupradores e maníacos sexuais. Num arroubo de desespero e medo, ela chega a confessar, um dia, a um colega, que sonha em ser estuprada, de forma encenada, como no teatro ou no cinema... Ao passo que a trama se desenvolve, o leitor vai conhecendo os detetives e mergulhando em suas vidas, não diferentes das nossas, cheias de receios, dúvidas, traumas, sonhos frustrados e alguns raros momentos de felicidade, como o de Carella, que, no dia dos namorados, descobre que a esposa tatuou, sobre a tatuagem de borboleta que ela já possuía, uma outra borboleta, maior, simbolizando-o e sugerindo, entre eles, um amor perene e de inesgotável desejo sexual. De difícil classificação, por não constituir uma narrativa comum, e impossível de se resumir em poucas linhas, por reunir mais do que uma trama policial, Sangue e gelo proporciona uma proveitosa imersão no universo e estilo do autor, ao mesmo tempo que documenta o cotidiano das grandes metrópoles americanas, das quais a cidade, não nomeada pelo narrador, é uma gélida e legítima alegoria.

sábado, 22 de setembro de 2012

OS INTOCÁVEIS


Os intocáveis, de Boileau-Narcejac, pseudônimo forjado pela dupla de escritores franceses Pierre Boileau e Thomas Narcejac, é um claro exemplo do relato policial de ação. O romance conta a história de dois párias, intocáveis pela desonra: o desempregado Jean-Marie Quéré e o ex-prisioneiro Ronan De Guer. No decorrer da leitura, ficamos sabendo do assassinato do comissário Barbier, cometido dez anos antes por Ronan que, na época, era um ativista político. Após ser solto, este conta com a ajuda de um amigo da juventude, Hervé, para encontrar o paradeiro de Quéré, que, segundo Ronan, o delatou para a polícia, fazendo com que fosse preso e que a sua noiva, Catherine, grávida, cometesse suicídio. Portanto, há também uma investigação. Mas não exatamente como acontece no gênero policial de enigma. O detetive contratado por Hervé não procura o assassino do comissário Barbier, pois este já foi denunciado e punido. O leitor já conhece o assassino e a vítima. A busca é por Quéré, suposto delator. A intenção de cometer um novo crime é anunciada por Ronan desde o início da narrativa. E nós, leitores, acompanhamos toda a ação, nos convertemos em cúmplices do criminoso. E para este assassinato ― que acontece no ponto exato ― não há investigação, nem punição alguma, pois nada disso é necessário. O desfecho é totalmente previsível, como dizem alguns críticos, mas isto também não importa nem um pouco para os leitores sensíveis. O que, de fato, nos interessa é a angústia de Quéré, casado com Hélène, a quem conhecemos através das cartas que este envia para um amigo religioso. O que nos toca é a agonia de um homem desempregado, que se sente inútil e que desistiu da fé. O que nos desperta é a dor; e o desejo de vingança de um rapaz que perdeu a namorada e que apenas tem como meta a morte daquele que acredita tê-lo privado do sentimento que o guiava. O que nos emociona é o desespero, a paralisia de um antigo padre, que, consciente da sua existência absurda, deixa-se assassinar. O novo crime ou sua punição é o que menos interessa. E nem por isto o livro deixa de ser um relato policial genuíno. Apenas o seu tema central não é a elucidação de um enigma, mas, sim, o destino de duas vidas destruídas por um passado comum.

LIDIANE NUNES, uma infiltrada.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

CONTOS DE CRIME

Contos de crime: clássicos escolhidos, organizado por Flávio Moreira da Costa, é uma excelente amostra do que os grandes autores escreveram de melhor no âmbito da literatura policial. A criteriosa antologia ainda desmistifica a ideia de que o relato policial não é Literatura. Ora, se não é, por que Machado de Assis, Guy de Maupassant e Robert Louis Stevenson o praticaram? Para perder tempo e prestígio? Eis o mistério. Antes de expressar seu preconceito, o leitor deve criar seu conceito, e este livro apresenta uma oportunidade para que ele, despido de grilhões e correntes, julgue por si mesmo até que ponto a leitura de relatos policiais entretém, deleita e faz pensar. Entre os autores arrolados pelo organizador estão, além dos três supracitados: Fiódor Dostoiévski, Saki, Ambrose Bierce, Coelho Neto, Guillaume Apollinaire, Sir A. Conan Doyle, Edgar Allan Poe, Ryunosuke Akutagawa, Jacques Frutelle, W. W. Jacobs e Marcel Schwob. Supremacia maciça das literaturas de língua inglesa e francesa, nas quais o arco de recepção do texto literário é maior e mais afeito a considerar as diferenças como ganhos para a sensibilidade e para o conhecimento. Qualquer que seja a preferência do leitor, ou pelo relato de mistério, centrado na investigação do detetive, ou pelo relato de ação, que opta por narrar os passos do criminoso, os contos enfeixados por Flávio Moreira da Costa são a mais pura afirmação de que as más intenções criminosas oferecem, sim, ótima literatura.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

NÃO ENVIEM ORQUÍDEAS PARA MISS BLANDISH

Quando publicado pela primeira vez, em 1938, Não enviem orquídeas para Miss Blandish (No orchids for Miss Blandish) foi considerado um dos mais violentos romances policiais já escritos e granjeou ao seu autor, o inglês James Hadley Chase, uma inopinada celebridade. Exaltado por alguns e muito criticado por outros (o escritor George Orwell foi um dos seus mais veementes opositores), devido à sua crueza, o romance teve poucas edições em português, das quais a mais conhecida é a da antiga Editora Globo, de Porto Alegre, em 1967, inaugurando a Série Amarela da Coleção Catavento, destinada a publicar as mais importantes obras do gênero policial da época. No formato 12x18cm, com berrante capa de Clara Pechansky e tradução de Leonel Vallandro, a edição trazia informações curiosas, como: "Mais de 500.000 exemplares deste livro já foram vendidos em todo o mundo". Na contracapa, o editor aumentava este número para 700.000 e a quantidade de leitores para mais de dez milhões, além de afirmar que o livro de Chase "na opinião dos críticos, dá uma nova dimensão à novela policial", o que não chega a ser exagero, se levarmos em conta que, excetuando-se autores como Chandler, Goodis, Cain e Hammett, os demais eram bem comportados contadores de histórias de detetive. A história pode ser dividida em duas partes: a primeira, tipicamente de ação, acompanha os bandidos e se fixa no sequestro da garota Blandish, que, mesmo depois de pago o resgate por seu pai, permanece em poder dos sequestradores, mantida à base de drogas e diariamente seviciada; a segunda, de mistério, encena as investigações da polícia, de um gângster melindrado e de um detetive particular, contratado pelo pai da moça para achá-la. Na junção dos dois pontos de vistas está a solução da trama, forte, inesperada e, para muitos leitores, desagradável. A linguagem é descarnada, direta e sem arroubos poéticos, centrada no desenvolvimento objetivo da história, cujo assunto já é por si só excessivamente indigesto. Sem edições há décadas no Brasil, como, aliás, toda a obra de James Hadley Chase, Não enviem orquídeas para Miss Blandish merece voltar a público numa tradução moderna e fiel à sua importância para a história do relato policial moderno, e ainda mais porque sua trama, antes violenta, não passa hoje de uma extensão vulgar da sociedade.