Noir francês

A lua na sarjeta (La lune dans le caniveau, 1983), David Goodis por Jean-Jacques Beineix.

terça-feira, 28 de maio de 2013

MAIGRET E O MAIO CORAL

Porto Alegre: L&PM, 2004.
Alguns amigos, às vezes, me perguntam por que todo este meu fascínio pelos livros com o comissário Maigret e, mais ainda, por Simenon. Ora, porque em Simenon a história pouco interessa, ou é mais um crime (relatos com Maigret) ou mais um drama familiar (os romances duros). O mais importante em Simenon é a forma, especificamente o seu estilo, fluido, absorvente, encantatório, e sua tendência a, quando abandona a objetividade, pintar a vida, a vida mais trivial, com pinceladas de poesia. Em Morte na alta sociedade (Maigret et les vieillards, 1960), o início é um dos mais bonitos que ele já escreveu e bem representativo do seu estilo.

"Era um glorioso mês de maio, desses que a gente vê apenas duas ou três vezes na vida e que têm o esplendor, o sabor e o perfume de lembranças da infância. Maigret chamou-lhe um maio 'coral'. Lembrava-lhe, ao mesmo tempo, sua primeira comunhão e sua primeira primavera em Paris, quando tudo parecia novo e maravilhoso.

"Na rua, no ônibus, no escritório, acontecia-lhe parar de repente, tocado por um som distante, um sopro de ar tépido, a cor viva de uma blusa de mulher que o levavam de volta à magia perdida de vinte ou trinta anos atrás.

"Ainda na véspera, ao saírem para jantar com os Pardon, a sra. Maigret lhe perguntara, enrubescendo, confusa: Não fico ridícula, na minha idade, com um vestido assim, estampado de flores?

"Nessa noite, os Pardon inovaram. Ao invés de convidá-los ao apartamento, levaram os Maigret a um pequeno restaurante do Boulevard de Montparnasse, onde os quatro jantaram no terraço.

"Os Maigret trocaram olhares cúmplices. Pois ali, naquele mesmo terraço, os dois tinham jantado pela primeira vez, há quase trinta anos."

Poucos romances policiais se abrem com tanta vida e tanta informação aparentemente sem importância. Poucos também exalam tamanha poesia e apresentam tanto, em tão poucas linhas, sobre os personagens e o ambiente que os cerca.

Temos a representação da primavera em Paris, o fascínio que esta estação promove em Maigret; o caráter sagrado, simbolizado pela lembrança da primeira comunhão e da infância, e o profano, pela recordação da primeira primavera em Paris... Penetramos os sentidos de Maigret, que vê tudo de outra forma e inclinado às cores, percebe os odores e ouve os sons mais cotidianos com uma percepção nova. E, por fim, adentramos a intimidade do casal, suas relações sociais, seu amor de muitos anos e suas lembranças de quando jovens.

A história policial ainda não começou, mas já começou, pois um crime vai acontecer e macular a beleza daquele maio, que o comissário Maigret chamou, poeticamente, um maio coral.

Também publicado na revista Verbo 21. A tradução do texto de Simenon é de Raul de Sá Barbosa.

domingo, 26 de maio de 2013

A COLEÇÃO VERTIGO CRIME

Capa: Lee Bermejo. New Pop, 2012.
No âmbito dos quadrinhos policiais, um dos destaques de 2012 foi a publicação da coleção Vertigo Crime, pela New Pop Editora, com seis títulos em catálogo no Brasil: Calafrio, Morte no Bronx, A cidade da neblina, O executor, A rica indecente e Área 10. Os roteiros são razoavelmente bem articulados, dentro da tradição dos relatos policiais de origem norte-americana e francesa, e os desenhos, ágeis e vistosos, apresentam certa ousadia. Alguns, inclusive, chegam a empolgar o leitor, como Morte no Bronx, com traços que sugerem uma leve influência de Will Eisner, e buscam um diferencial mais artístico, menos aferrado aos anseios de objetividade e realismo da indústria dos quadrinhos.

Vejamos agora um resumo de cada um dos gibis. Calafrio é uma história de assassinato em série, mas com uma deliberada incursão pelo fantástico. A arte de Mick Bertilorenzi é um primor e desenvolve com arrojo o estranho mundo apresentado pelo roteiro de Jason Starr. É, de todas, a trama mais sensual, com imagens de um erotismo franco e sem pudor. A cidade da neblina, talvez a mais noire das seis histórias, pela reprodução dos aspectos que consagraram tal gênero, envereda, no entanto, por questões mais contemporâneas, como homossexualidade e tráfico de imigrantes. O roteiro, de Andersen Gabrych, parece às vezes meio confuso e forçado, defeitos compensados pela arte de traços caricatos, muito embora convencionais, de Brad Rader. Morte no Bronx é a história de um escritor atormentado pelo desaparecimento de sua esposa, com roteiro instigante e fluido de Peter Milligan, e arte sedutora de James RombergerA rica indecente reelabora um dos assuntos recorrentes da narrativa policial, com roteiro assinado pelo aclamado Brian Azzarello: empresário rico designa empregado para vigiar e proteger sua filha, uma jovem tão bela quão perigosa. A arte, de Victor Santos, é burlesca, alternando humor e drama, claro e escuroÁrea 10 é mais uma trama de serial killer, mas introduz temas oriundos da psicologia e da medicina experimental, enriquecendo-se e ao leitor. A arte de Chris Samnee é a menos empolgante das seis, limitando-se à eficiente exposição visual do roteiro de Christos N. Gage. Em O executor, o roteiro (Jon Evans) e a arte (Andrea Mutti) pecam por não seduzir o leitor. O primeiro soa inconvincente, e a segunda, funcional demais, destituída de qualquer audácia. A trama, meio débil, devolve um ex-atleta à sua cidade natal, onde ele reencontra seus antigos colegas de escola, todos de alguma forma envolvidos nos crimes que, nos últimos anos, abalaram a região.

O projeto gráfico é bonito, a impressão em papel branco de 90g é perfeita, e os volumes, no formato 14x20cm, são fáceis de manusear e guardar, como livros. As capas, contudo, assinadas por Lee Bermejo, são horrendas, sem qualquer atração, nem em traço nem em cor, exceção talvez a de A rica indecente e a de Calafrio. Em todos os volumes, há erros aqui e ali, alguns bem graves, como a troca dos autores por outros na quarta capa de Área 10. E o português, de responsabilidade de Ana Luísa Casas! É cada frase mal feita, cada construção bizarra, mesmo quando a intenção é ser coloquial, que passa pela cabeça do leitor sugerir que a mocinha seja devolvida, com urgência, ao curso primário. Faltou um bom revisor à editora, que, infelizmente, confiou demais na competência da tradutora.

Recomenda-se a leitura sobretudo de Morte no Bronx e Calafrio. O primeiro capítulo deste último, aliás, tem uma das mais bonitas aberturas dos quadrinhos atuais. Da página 5 à 20, o leitor vibra, se excita e se comove, sem saber que está diante de uma história a um só tempo sensualíssima e imponderável. 

terça-feira, 21 de maio de 2013

INSTINTO SECRETO OU MR. BROOKS NO CÉU

O fascínio dos leitores ou espectadores por Dexter e Ripley, para citar apenas dois dos mais célebres heróis-assassinos, advém do fato de que todas as pessoas alimentam a fantasia de guardar, sob muitas capas e máscaras, um segredo terrível, que chocasse a família, os amigos, o mundo. Ou seja, através destes personagens damos vazão aos nossos desejos secretos e nos expurgamos para uma vida mais limpa entre os mortais. Nesta linha, um filme surpreendente é Mr. Brooks (2007), que recebeu no Brasil o manjado título Instinto secreto.

O Sr. Brooks é rico, bem-sucedido, bem-apessoado, bom marido, bom pai e bom patrão. Jamais perde a paciência ou sai da linha. É um negociador nato. Sabe quando falar e o que falar, sem que ninguém saia ferido do diálogo. Tem, portanto, uma ficha incorrigível. E, talvez por isso, necessitasse de um segredo, um vida dupla: ele mata por vício, em busca de prazer, como qualquer outro jogador. Estuda as vítimas, sempre pessoas desconhecidas, fora do seu cículo pessoal ou profissional, pessoas quase achadas ao acaso, e numa noite previamente marcada invade suas casas e as mata, num ritual bárbaro mas viciante, pois lhe confere enorme satisfação, a ponto de levá-lo quase ao orgasmo. De repente, por força das circunstâncias, e por ironia da trama, obviamente, ele passa a matar por necessidade, o que demonstra que ele não era assim tão autossuficiente. É como se um ser maior, pai espiritual do Sr. Brooks, decidisse intervir para lhe interpor uma parede entre sua condição de ser humano e a possibilidade divina, com a qual todo homem muito poderoso acaba por flertar, mais cedo ou mais tarde, para tão somente sentir o peso e tombar.

A narrativa costura habilmente cinco destinos, todos manipulados com cruel maestria pelo Sr. Brooks, mas que serão, afinal, o seu calcanhar de Aquiles: sua filha Jane; o Sr. Smith, o bobalhão da história; a detetive Tracy Atwood, encarregada de investigar os Crimes das Digitais; seu ex-marido, do qual está se divorciando com visíveis perdas financeiras; e o bandido que ela mandou para a prisão e que agora, depois de fugir, pretende matá-la. Ao fim, o Sr. Brooks, mais do que nunca, atinge o patamar de demiurgo, a conduzir os cordões de suas marionetes e ler nos jornais as consequências benéficas de seus feitos. Contudo, na cama, ele não é mais o mesmo. Sonha, e seus sonhos são ruins. Não seria demais cogitar que ele agora sofre, de fato, porque sente culpa. Porque o que era vício, um jogo apenas, tornou-se necessidade, paixão, e ele foi obrigado, a sangue e segredo, e com alguma empáfia, a esculpir destinos, entre os quais o seu e o de sua filha. Talvez, ao atingir esta condição, mais próxima de Deus, o Sr. Brooks tenha enfim compreendido sua fraqueza de homem e chegado, por ele mesmo, à cura do seu vício.

Com fotografia noire, ritmo ágil, mas sem exageros, cenas de ação com pretensões estéticas, roteiro irônico, boa direção (de Bruce A. Evans) e performances satisfatórias de todos os atores, Mr. Brooks é um espécime do gênero policial que, passado algum tempo, voltamos a assistir por e com deleite, já sabedores do desfecho e buscando, no curso dos acontecimentos, a coerência de suas afirmações, por mais perversas que sejam.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

CLÁSSICOS SCI-FI | AS POSSUÍDAS

As possuídas, de Ira Levin (São Paulo: Círculo do Livro, 1987; há uma edição mais recente, de 2004, pela Bertrand Brasil, com o título Mulheres perfeitas, que, infelizmente, entrega muito da história), constitui uma ousada metáfora do automatismo das relações, sobretudo entre os cônjuges. Ao ironizar a excessiva dedicação das mulheres ao lar e a expectativa masculina de dominação das esposas, insere-se na linhagem de obras destinadas a levantar as feministas e fazer pensar os machões. Mas sem panfleto, com a elegância que só os grandes clássicos alcançam. O estilo do autor é uma atração à parte: contido e envolvente, límpido e irônico, semeia pela narrativa (não raro, através da fala de um homem) provocações como esta, "Gosto de ver as mulheres no desempenho de pequenas tarefas domésticas", afirmação que representa, de uma feita, um elogio sensual e um indisfarçável desejo de condenação. Inspirou dois filmes. Destaque para Esposas em conflito, de 1975, dirigido por Bryan Forbes, tão controverso e cultuado quanto o livro.

Publicado originalmente na coluna Crítica Rasteira, da Verbo 21.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

JAMILE SOB OS CEDROS

"Pertenço sempre a Omar." (Jamile)
Jamile, seu noivo Khalil Khoury e, de repente, durante um passeio de verão, Omar. Os olhos de Jamille e Omar se encontram e, num tempo único, deles próprios, e que talvez seja a eternidade, mesclam-se, numa união que vai mudar suas vidas e, consequentemente, a do noivo preterido, narrador da história. Este é o argumento de Jamile sob os cedros, uma história supostamente verídica passada no Líbano do século XIX e que inspirou o escritor francês Henry Bordeaux (1870-1963) a escrever um de seus melhores romances. Embora seja uma história de amor, em que os amantes, arrebatados, tudo fazem para ficar juntos, é igualmente um relato policial, pois envolve perseguição, prisão, julgamento, condenação e execução. Semelhantes a Romeu e Julieta, cujas famílias eram inimigas, Jamile e Omar estão separados pela fé, pela raça e pelas tradições que estas duas condições impõem. Ele é muçulmano, e ela, maronita. No período da narrativa, segunda metade de século XIX, os maronitas formavam uma comunidade árabe cristã ligada à Igreja Católica desde o século XII, regida por uma patriarcado autônomo, com sede no Líbano. Neste contexto, os enamorados não poderiam se amar, muito menos casar. Mas ela foge com ele, e seu ato, de amor, deflagra um abalo que vai atingir a todos os envolvidos. Uma punição é preparada pela família da moça e tem que ser imposta, mais cedo ou mais tarde, a qualquer preço. Esta é a história que lemos, numa velocidade de filme de ação, o que demonstra a modernidade de seu autor, bem como a qualidade da boa tradução de Mansour Challita, embora as falhas que o texto apresenta, aqui e ali. Aliás, esta edição, da Associação Cultural Internacional Gibran, merece uma postagem à parte, tanto pelos acertos quanto pelos equívocos. Leitura obrigatória para quem gosta de livros que abordam culturas divergentes da ocidental, quase sempre tomada como regra.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

QUATRO MULHERES E MAIGRET

Porto Alegre: L&PM, 2009.
De 8 de abril até ontem, li dez títulos com o comissário Maigret, do escritor belga Georges Simenon. Foram Maigret hesita (1968), Maigret e o fantasma (1964), Maigret e o cliente do sábado (1962), Maigret e a morte do jogador (1967), Maigret (1934), Maigret e o matador (1969), Maigret se defende (1964), Maigret e o mendigo (1963), Os escrúpulos de Maigret (1958) e A taberna dos dois tostões (1931). Os motivos para esta overdose de Maigret foram dois: as longas horas que tive de passar no hospital, em companhia de um parente doente, e o próprio prazer que a leitura de Simenon me proporciona, de modo que, tão logo termino um livro, tenho vontade de começar outro. O leitor de Simenon sabe que o que menos importa nas histórias com Maigret são as tramas. Diferentemente dos demais detetives ou investigadores dos relatos policiais mais tradicionais, Maigret não tem um método específico, segue sua intuição e desvenda os crimes observando o contexto em que ocorreram, não raro mergulhando no interior das pessoas envolvidas ou analisando os seus pertences íntimos. Mesmo assim, vamos tentar reduzir a uma ou duas linhas a trama de cada livro:

1) Maigret tenta evitar um assassinato que se anuncia no seio de uma família burguesa; 2) Maigret investiga o atentado a um policial fracassado, que está internado em estado grave; 3) um homem procura Maigret num sábado e lhe confessa que pretende matar a esposa infiel e seu amante; 4) Maigret investiga a morte de um jogador profissional, frequentador dos grandes cassinos da Europa; 5) embora aposentado, Maigret decide investigar o assassinato de um bandido, pois o suspeito do crime é seu sobrinho, lotado no Quai des Orfèvres; 6) Maigret investiga a morte de um jovem estudante de Letras, que tinha o hábito de gravar as conversas alheias em público; 7) suspenso de suas atribuições, sob acusação de ter molestado sexualmente a sobrinha de um ministro, Maigret perpetra uma investigação pessoal para se defender; 8) um mendigo sofre tentativa de assassinato, e o fato desperta em Maigret a desconfiança de que a vítima detém o segredo de algum crime antigo; 9) um casal procura Maigret para lavar a roupa suja matrimonial e desperta no comissário a certeza de que um crime está por acontecer; 10) numa Paris vazia, pois boa parte da população goza as férias de verão, uma pista leva Maigret à Taberna dos Dois Tostões, onde um crime deverá acontecer.

De maneira geral, os dez livros são de alto nível. Simenon era um virtuose. Dominava sua arte e não abandonava suas escolhas pessoais. Dificilmente escrevia um romance ou um conto que não estivessem acima da média geral. E, mesmo quando se limitava a escrever uma história policial, era diferenciado, porque não hesitava em criar situações reais, com atmosferas convincentes e personagens que pareciam saltar da vida comum para a dimensão das páginas. E seus climas, suas reflexões, os mergulhos psicológicos cheios de nuances e ambiguidades... a ironia, o sarcasmo, o humor... a pintura colorida de cenários vivos, bares, hoteis, ruas, praças, repartições públicas, os lares onde os dramas ocorrem com frequência e que, às vezes, conduzem ao crime, tudo isso colabora para fazer de seus livros documentos humanos que não resistimos bisbilhotar. Dos dez livros, somente um não me empolgou: A taberna dos dois tostões. Os demais são extraordinários, exatamente porque Simenon não admite escrever uma história ao acaso, sem um argumento preciso e que, de imediato, conquiste e impacte o leitor. Neste sentido, Maigret hesitaMaigret e o cliente do sábadoMaigret e a morte do jogadorMaigret se defende e Os escrúpulos de Maigret são os destaques, por causa dos argumentos de exceção que apresentam e por cunhar personagens femininas que, de simples coadjuvantes, se tornam protagonistas; incômodas, diga-se de passagem. Elas exasperam tanto o comissário com sua eloquência, seu silêncio e suas idiossincrasias, que, ao fim, em Os escrúpulos de Maigret, ele perde as estribeiras e, por pouco, não vocifera: "Que ela se f..." Quatro destas mulheres letais, e que se contrapõem à esposa que Maigret tem em casa, sempre pronta a recebê-lo com a melhor das intenções e o melhor prato, são Srta. Vague, Renée Planchon, Evelina Nahour e Gisele Marton. Uma secretária e três esposas, todas amantes. Que o leitor, ao ler, descubra e entenda os motivos. Não são poucos e não são banais.