Porto Alegre: L&PM, 2004. |
"Era um glorioso mês de maio, desses que a gente vê apenas duas ou três vezes na vida e que têm o esplendor, o sabor e o perfume de lembranças da infância. Maigret chamou-lhe um maio 'coral'. Lembrava-lhe, ao mesmo tempo, sua primeira comunhão e sua primeira primavera em Paris, quando tudo parecia novo e maravilhoso.
"Na rua, no ônibus, no escritório, acontecia-lhe parar de repente, tocado por um som distante, um sopro de ar tépido, a cor viva de uma blusa de mulher que o levavam de volta à magia perdida de vinte ou trinta anos atrás.
"Ainda na véspera, ao saírem para jantar com os Pardon, a sra. Maigret lhe perguntara, enrubescendo, confusa: Não fico ridícula, na minha idade, com um vestido assim, estampado de flores?
"Nessa noite, os Pardon inovaram. Ao invés de convidá-los ao apartamento, levaram os Maigret a um pequeno restaurante do Boulevard de Montparnasse, onde os quatro jantaram no terraço.
"Os Maigret trocaram olhares cúmplices. Pois ali, naquele mesmo terraço, os dois tinham jantado pela primeira vez, há quase trinta anos."
Poucos romances policiais se abrem com tanta vida e tanta informação aparentemente sem importância. Poucos também exalam tamanha poesia e apresentam tanto, em tão poucas linhas, sobre os personagens e o ambiente que os cerca.
Temos a representação da primavera em Paris, o fascínio que esta estação promove em Maigret; o caráter sagrado, simbolizado pela lembrança da primeira comunhão e da infância, e o profano, pela recordação da primeira primavera em Paris... Penetramos os sentidos de Maigret, que vê tudo de outra forma e inclinado às cores, percebe os odores e ouve os sons mais cotidianos com uma percepção nova. E, por fim, adentramos a intimidade do casal, suas relações sociais, seu amor de muitos anos e suas lembranças de quando jovens.
A história policial ainda não começou, mas já começou, pois um crime vai acontecer e macular a beleza daquele maio, que o comissário Maigret chamou, poeticamente, um maio coral.
Também publicado na revista Verbo 21. A tradução do texto de Simenon é de Raul de Sá Barbosa.
"Nessa noite, os Pardon inovaram. Ao invés de convidá-los ao apartamento, levaram os Maigret a um pequeno restaurante do Boulevard de Montparnasse, onde os quatro jantaram no terraço.
"Os Maigret trocaram olhares cúmplices. Pois ali, naquele mesmo terraço, os dois tinham jantado pela primeira vez, há quase trinta anos."
Poucos romances policiais se abrem com tanta vida e tanta informação aparentemente sem importância. Poucos também exalam tamanha poesia e apresentam tanto, em tão poucas linhas, sobre os personagens e o ambiente que os cerca.
Temos a representação da primavera em Paris, o fascínio que esta estação promove em Maigret; o caráter sagrado, simbolizado pela lembrança da primeira comunhão e da infância, e o profano, pela recordação da primeira primavera em Paris... Penetramos os sentidos de Maigret, que vê tudo de outra forma e inclinado às cores, percebe os odores e ouve os sons mais cotidianos com uma percepção nova. E, por fim, adentramos a intimidade do casal, suas relações sociais, seu amor de muitos anos e suas lembranças de quando jovens.
A história policial ainda não começou, mas já começou, pois um crime vai acontecer e macular a beleza daquele maio, que o comissário Maigret chamou, poeticamente, um maio coral.
Também publicado na revista Verbo 21. A tradução do texto de Simenon é de Raul de Sá Barbosa.