Num autor regular como Georges Simenon (1903-1989), capaz de escrever até seis romances num só ano, e todos mesclando com eficiência funcionalidade narrativa e estilo literário, não raras vezes com descrições de atmosfera em deliberada prosa poética, é de surpreender que um livro específico, quer seja da série Maigret quer seja do gênero que ele chamava de roman dur, se destaque perante os demais. Mas é o que acontece com Maigret no Picratt's (Maigret au Picratt's, 1951). E causa ainda mais impressão o fato de que, ao olharmos detidamente a capa da edição brasileira, descobrirmos através da informação "inédito" que este romance demorou exatos 61 anos para ser traduzido no Brasil.
Desde o seu início (um dos mais perfeitos primeiros capítulos de um relato policial) até o seu desfecho, este romance é a um só tempo deleite e assombro. De pronto, a narrativa principia sem que Maigret ou o Quai des Orfèvres sejam mencionados. É fim de noite, uma boate cerra as portas, músicos e dançarinas partem para as suas casas, o proprietário e a esposa se recolhem ao leito. A dançarina Arlette, no entanto, não vai para casa. Escora-se num bar, bebe dois cafés com rum e, dali, resolve ir à delegacia fazer uma denúncia: "Um homem vai matar uma condessa". Mais tarde, sóbria, nem ela mesma acredita no que disse. E sua descrença acaba por contribuir para que a polícia não a leve a sério. O resultado é que ainda naquele mesmo dia Arlette será assassinada.
Antes, porém, os colaboradores de Maigret terão a chance ou sorte de poder se impressionar com Arlette, especialmente Lapointe e Lucas, que viu na moça mais do que uma mulher bonita: "Ele lhe abriu a porta, viu-a afastar-se no amplo corredor e hesitar no alto da escada. As pessoas se viravam para olhá-la. Via-se que ela saía do outro mundo, o mundo da noite, e parecia quase indecente à luz crua de um dia de inverno. Na sala, Lucas aspirou o cheiro que ela deixara atrás de si, um cheiro de mulher, quase de cama".
Daí por diante, o crime em si não tem tanta importância. É mais urgente saber quem é a vítima; o que fazia, além de dançar até a nudez total, todas as noites, no Picratt's. Tais informações talvez conduzam ao assassino. Ou talvez sirvam apenas para fazer realizar, no plano mental, as curiosidades ou necessidades eróticas de todos os que se envolvem no caso, civis e policiais. Lapointe, inclusive, estava sentimentalmente envolvido com a vítima. O jovem colaborador de Maigret apaixonara-se por Arlette e, invariavelmente, ia vê-la na boate todas as noites: "Lapointe, naquela noite, havia enterrado seu primeiro amor. E matado seu primeiro homem".
Maigret se estabelece na boate e de lá conduz a investigação. Aos poucos, descobre os segredos de Arlette e compreende que, para alguns, quando o assunto era "sexo por sexo", ela era a única, sem rivais: "Jamais houve uma mulher como ela", é o que se diz, sem sombra de exagero. Tal condição levará Maigret a buscar um sujeito que é a contradição de si mesmo, e certamente foi ele que cometeu os dois assassinatos.
Com um final surpreendente e trepidante, num nível de ação que poucas vezes se vê num relato de Simenon, e com mais uma ironia ao mal-ajambrado inspetor Lognon, Maigret no Picratt's demonstra o quanto seu autor era virtuoso e variado, um escritor de amplos recursos. Não é senão por isso que seus romances permanecem atuais nas estantes, proporcionando proveito e prazer a qualquer leitor, dos mais ingênuos aos mais exigentes.
Antes, porém, os colaboradores de Maigret terão a chance ou sorte de poder se impressionar com Arlette, especialmente Lapointe e Lucas, que viu na moça mais do que uma mulher bonita: "Ele lhe abriu a porta, viu-a afastar-se no amplo corredor e hesitar no alto da escada. As pessoas se viravam para olhá-la. Via-se que ela saía do outro mundo, o mundo da noite, e parecia quase indecente à luz crua de um dia de inverno. Na sala, Lucas aspirou o cheiro que ela deixara atrás de si, um cheiro de mulher, quase de cama".
Daí por diante, o crime em si não tem tanta importância. É mais urgente saber quem é a vítima; o que fazia, além de dançar até a nudez total, todas as noites, no Picratt's. Tais informações talvez conduzam ao assassino. Ou talvez sirvam apenas para fazer realizar, no plano mental, as curiosidades ou necessidades eróticas de todos os que se envolvem no caso, civis e policiais. Lapointe, inclusive, estava sentimentalmente envolvido com a vítima. O jovem colaborador de Maigret apaixonara-se por Arlette e, invariavelmente, ia vê-la na boate todas as noites: "Lapointe, naquela noite, havia enterrado seu primeiro amor. E matado seu primeiro homem".
Maigret se estabelece na boate e de lá conduz a investigação. Aos poucos, descobre os segredos de Arlette e compreende que, para alguns, quando o assunto era "sexo por sexo", ela era a única, sem rivais: "Jamais houve uma mulher como ela", é o que se diz, sem sombra de exagero. Tal condição levará Maigret a buscar um sujeito que é a contradição de si mesmo, e certamente foi ele que cometeu os dois assassinatos.
Com um final surpreendente e trepidante, num nível de ação que poucas vezes se vê num relato de Simenon, e com mais uma ironia ao mal-ajambrado inspetor Lognon, Maigret no Picratt's demonstra o quanto seu autor era virtuoso e variado, um escritor de amplos recursos. Não é senão por isso que seus romances permanecem atuais nas estantes, proporcionando proveito e prazer a qualquer leitor, dos mais ingênuos aos mais exigentes.